Inovações na arbitragem: aeroportos, rodovias e ferrovias, por Cesar Pereira

1- Introdução
A Lei no 13.448, oriunda da conversão em lei da Medida Provisória no 752, introduziu novidades relevantes no regime da arbitragem envolvendo a Administração Pública no Brasil. Embora se trate de mecanismos aplicáveis apenas a contratos de determinados setores específicos, produzem uma inovação significativa.
As duas alterações estão no art. 15, III, e no art. 31. São inovadoras por razões distintas. A primeira prevê uma hipótese de arbitragem obrigatória, desconhecida no direito brasileiro até o momento. A própria lei exige que o aditivo contratual destinado a formalizar a chamada “relicitação” contenha um compromisso arbitral para resolver conflitos relativos à apuração da indenização pela extinção do contrato a ser relicitado.
A segunda prevê a possibilidade de os contratantes privados, concessionárias e parceiros em certos contratos administrativos optarem de modo unilateral pela resolução de determinadas disputas com a Administração Pública Federal por meio da arbitragem, ainda que os contratos envolvidos não contenham cláusula compromissória. Desse modo, veicula uma oferta de arbitragem por parte do Poder Público, à qual o particular pode anuir de modo unilateral. Esta inovação possui especial relevância, uma vez que o Brasil não é signatário da Convenção de Washington de 1965, que constituiu o International Centre for Settlement of Investment Disputes (ICSID), e nunca assinou ou ratificou qualquer tratado oferecendo sistemas de Investor State Dispute Settlement (ISDS)[1]. Conforme se expõe adiante, o art. 31 da Lei no 13.448 (antigo art. 25 da MP no 752, com algumas alterações) prevê agora um mecanismo semelhante àqueles previstos em leis nacionais de investimento no âmbito dos sistemas de ISDS.
Esta leitura do art. 31 da Lei no 13.448 não é a única possível. Muitos especialistas veem no art. 31 apenas uma regra confirmatória, com alterações pontuais, do regime geral da arbitragem com a Administração Pública. Mesmo para os que reputam ainda necessário que a arbitragem esteja prevista em cláusula do contrato original ou de aditivo contratual (ou em compromisso arbitral, hipótese admitida em termos gerais pela Lei no 9.307), o dispositivo contém novidades significativas como a definição normativa de certas hipóteses de direitos patrimoniais disponíveis passíveis de resolução por arbitragem. Até a edição da Lei no 13.448, apenas a Lei no 10.848 previa que determinados direitos seriam considerados patrimoniais disponíveis (art. 4o, § 7o).
2) As hipóteses de arbitragem na Lei no 13.448
A possibilidade de arbitragem envolvendo a Administração Pública no Brasil já é um tema superado em diversos aspectos. Corresponde à prática corrente em muitos setores da atividade administrativa. Há previsão legal expressa e abrangente da utilização da arbitragem na Lei de PPPs (Lei no 11.079, de 2004), na Lei de Concessões (Lei no 8.987, alterada para este fim em 2005) e na própria Lei de Arbitragem (Lei no 9.307, alterada para este fim em 2015). Há também numerosas previsões em leis e regulamentos setoriais.
Portanto, a alusão da Lei no 13.448 a arbitragem nos contratos cobertos por suas previsões não representaria novidade. Nos setores de aeroportos, rodovias e ferrovias, a previsão de arbitragem nos contratos realizados pela Administração Pública federal ou por delegação desta já há muito é possível e corresponde ao que ocorre na realidade. A inovação está justamente no tratamento que a lei deu à arbitragem. Foi além do que previam as normas até então vigentes e optou de modo decisivo pela arbitragem como forma adequada de solução de controvérsias nos setores cobertos pelo novo texto legal.
3) Art. 15, III, da Lei no 13.448: arbitragem na relicitação
Para os fins deste artigo, não cabe examinar com detalhes o conceito de relicitação, apenas destacar que a figura é diretamente relacionada com a previsão de arbitragem do art. 15, III. A chamada “relicitação” é definida como “procedimento que compreende a extinção amigável do contrato de parceria e a celebração de novo ajuste negocial para o empreendimento, em novas condições contratuais e com novos contratados, mediante licitação promovida para este fim” (art. 4o, III).[2]
O art. 15 prevê que a instauração do processo de relicitação será formalizada em um termo aditivo. Este deve tratar de pelo menos três aspectos, referidos nos incisos I, II e III. Este último trata do compromisso arbitral.
A possibilidade de litígios relativos a contratos administrativos abrangidos pela Lei no 13.448 serem resolvidos por arbitragem não gera qualquer dúvida. Estão cobertos pela previsão do art. 1o da Lei no9.307. A novidade é o inc. III do art. 15 prever que o aditivo conterá um compromisso arbitral (art. 9o da Lei no 9.307) “entre as partes com previsão de submissão, à arbitragem ou a outro mecanismo privado de resolução de conflitos admitido na legislação aplicável, das questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente, relativamente aos procedimentos estabelecidos por esta Lei”.
Trata-se de hipótese de arbitragem de previsão contratual obrigatória, até então desconhecida no direito brasileiro. O cálculo das indenizações não poderá ser revisto pelo Poder Judiciário, exceto se ambas as partes renunciarem expressa ou implicitamente à arbitragem. Isso impõe às partes que preferencialmente disciplinem, no aditivo, as condições para instauração da arbitragem (escolha de instituição arbitral, por exemplo). Se não o fizerem, ainda assim o art. 15, III, terá as eficácias positiva e negativa da convenção de arbitragem (arts. 4o a 8o da Lei no 9.307). Excluirá a matéria do conhecimento pelo Poder Judiciário e possibilitará a uma parte suprir a omissão da outra e obter judicialmente a instauração da arbitragem – inclusive, se for o caso, mediante decisão judicial que designe instituição arbitral competente, conforme precedentes do Judiciário paulista.[3] A edição do art. 31 da Lei no 13.448 não impede que a arbitragem do art. 15, III, se desenvolva segundo os critérios gerais da Lei no 9.307 – sem prévia decisão final de autoridade competente ou sem que ocorra o credenciamento de instituições arbitrais. Se o contrato já contiver cláusula compromissória, esta permanecerá vigente e eficaz. Mesmo que haja o aditivo do art. 15, este poderá adotar a câmara já escolhida como idônea pelas partes. Se o Poder Judiciário for chamado a suprir a omissão na escolha bilateral das partes, deverá escolher a câmara já mencionada no contrato ou justificar especificamente a escolha de outra.
O compromisso do inc. III do art. 15 pode ou não incluir outros mecanismos, como mediação. Mas a solução definitiva de qualquer conflito (“questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente”) será obrigatoriamente por arbitragem, exceto se ambas as partes renunciarem à arbitragem.
Esta última ressalva deriva do fato de que o art. 15, III, incorpora o regime da arbitragem com todas as suas características. Uma delas é a possiblidade de as partes renunciarem tácita ou expressamente à convenção de arbitragem. Esse regime não é afastado pelo art. 15, III. Por exemplo, se, a despeito da convenção de arbitragem, o contratado impugna o cálculo da indenização perante o Poder Judiciário, este só poderá remeter as partes à arbitragem se houver exceção do réu nesse sentido (art. 337, §§ 5o e 6odo CPC/2015). Caso contrário, terá havido renúncia limitada à arbitragem e o litígio será resolvido pelo Judiciário. O regime da arbitragem se aplica ao art. 15, III, em sua integralidade.
Por outro lado, a omissão das partes em firmar o compromisso veiculado por meio do aditivo pode ser suprida judicialmente. Pode-se obter ordem judicial para impor a assinatura do compromisso ou suprir a sua ausência por meio da ação do art. 7o da Lei no 9.307.
4) Arbitragem do art. 31 da Lei no 13.448: “contratos”, nãcontratos de parceria
A segunda hipótese compreende, em termos gerais, os litígios decorrentes de contratos nos setores cobertos pela Lei no 13.448. Há duas subcategorias. Se as condições estabelecidas pelo artigo 31 forem preenchidas, o dispositivo opera como uma oferta unilateral de arbitragem pela Administração Pública. Se tais condições não forem cumpridas, a arbitragem poderá ainda ser cabível se prevista no contrato original ou incluída por um aditivo como o referido no art. 31, §1º, sem as condições específicas referidas no art. 31 como um todo.[4]
Uma distinção importante é que o art. 15, III, se aplica a “contratos de parceria”; o art. 31 alude apenas a “contratos”, sem o qualificativo. Essa alteração foi feita durante a tramitação da MP no 752 na Câmara de Deputados. Com isso, o regime do PPI e as formalidades correspondentes estão presentes apenas nas arbitragens do art. 15, III. A Lei no 13.448 preocupou-se também sob esse aspecto em separar as duas previsões legais de arbitragem, destacando que apenas o art. 15, III, é específico para uma das medidas típicas (relicitação) instituídas pela Lei no 13.448. A previsão do art. 31 aplica-se de modo abrangente.
Desse modo, a aplicação do art. 31 não depende do enquadramento previsto no art. 2o da Lei no 13.448, nem mesmo depende de estar caracterizado um “contrato de parceria”. Quaisquer contratos com a Administração Pública federal (diretamente ou por delegação) nos setores de aeroportos, rodovias e ferrovias estão, em tese, sujeitos ao art. 31.
O art. 31 estabelece regras específicas sobre diversos aspectos do cabimento e do procedimento da arbitragem, inclusive quanto a custas, delimitação de direitos patrimoniais disponíveis e credenciamento de instituições arbitrais. O dispositivo tem a seguinte redação:
Art. 31.  As controvérsias surgidas em decorrência dos contratos nos setores de que trata esta Medida Provisória após decisão definitiva da autoridade competente, no que se refere aos direitos patrimoniais disponíveis, podem ser submetidas a arbitragem ou a outros mecanismos alternativos de solução de controvérsias.
§ 1º Os contratos que não tenham cláusula arbitral, inclusive aqueles em vigor, poderão ser aditados a fim de se adequar ao disposto no caput deste artigo.
§ 2º As custas e despesas relativas ao procedimento arbitral, quando instaurado, serão antecipadas pelo parceiro privado, e, quando for o caso, serão restituídas conforme posterior deliberação final em instância arbitral.
§ 3º A arbitragem será realizada no Brasil e em língua portuguesa.
§ 4º Consideram-se controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis, para fins desta Lei:
I – as questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos;
II – o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de concessão; e
III – o inadimplemento de obrigações contratuais por qualquer das partes.
§ 5ºAto do Poder Executivo regulamentará o credenciamento de câmaras arbitrais para os fins desta Lei.
5) Alterações introduzidas pelo art. 31
Durante a tramitação do projeto de conversão da MP no 752, diversas questões foram objeto de discussão. Algumas foram tratadas nas emendas 005, 023 e 078 à MP no 752 e serão objeto de consideração expressa no processo de aprovação da Lei no 13.448. As emendas propostas exigiam que a arbitragem fosse de direito e aplicasse o direito brasileiro (Emenda 005), eliminavam do caput do então art. 25 da MP no 752 a exigência de prévio exaurimento da via administrativa (Emenda 023) e previam a participação da AGU na arbitragem e em eventual transação (Emenda 078).
Todas as emendas foram rejeitadas. As duas alterações do texto final do art. 31 em relação ao art. 25 da redação original da MP no 752 consistiram na eliminação da referência a “contratos de parceria” no caput e à modificação do § 4o para que passasse a definir “controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis”.
A primeira alteração eliminou a submissão dos contratos abrangidos pelo art. 31 ao regime do PPI (Lei no 13.334) e à exigência de enquadramento do art. 2o da Lei no 13.448 – a qual persiste, evidentemente, para os fins próprios daquele dispositivo (prorrogação e relicitação).
A segunda aprimora a redação do dispositivo para denotar que a arbitrabilidade se refere à controvérsia (aspecto processual), não aos direitos a ela subjacentes (aspecto material). Trata-se de definição importante, uma vez que a convenção de arbitragem tem a natureza de negócio jurídico processual e que a disponibilidade referida no § 4o do art. 31 refere-se ao meio de solução do conflito (ou seja, à controvérsia), não aos direitos materiais objeto da controvérsia. Embora pudesse parecer irrelevante e sem consequência, a alteração do § 4o corresponde a uma compreensão precisa do enfoque a ser adotado em relação ao conceito de disponibilidade inserido na Lei no 9.307 como um dos elementos da arbitrabilidade objetiva.
O art. 31 contém definições que favorecem a adoção da arbitragem, como (i) a possibilidade de submissão de conflitos a arbitragem independentemente de cláusula compromissória inserida em contrato; (ii) a exigência legal de que a arbitragem seja institucional; (iii) amplitude da segurança jurídica para o parceiro privado, em vista da maior celeridade do processo arbitral e da expertise dos árbitros; (iv) a predeterminação quanto ao adiantamento das custas e despesas relativas ao procedimento arbitral pelo parceiro privado; e (v) a predeterminação das matérias arbitráveis no âmbito do PPI.[5]
6) O art. 31 como oferta unilateral de arbitragem
A principal inovação do art. 31 é a introdução, no Brasil, de um mecanismo conhecido na experiência internacional para a proteção de investimentos. No âmbito da Convenção de Washington de 1965, da qual o Brasil não é signatário, e da arbitragem de investimento em geral, um Estado pode oferecer genericamente aos seus investidores estrangeiros a possibilidade de submeter os litígios correspondentes a arbitragem. Essa oferta unilateral reflete o consentimento do Estado soberano[6] e é geralmente formulada por meio de acordos multilaterais, acordos bilaterais[7] ou leis nacionais de proteção de investimento.[8] O investidor aceita essa oferta e aperfeiçoa o consentimento necessário para a existência de uma convenção de arbitragem por meio de uma ampla variedade de manifestações, inclusive por sua conduta – como, por exemplo, pela mera apresentação do pedido de instauração da arbitragem.
Como se apontou em tópico anterior, esta não é a única leitura possível do art. 31. Ao contrário, as manifestações acerca do dispositivo têm-se baseado na premissa de que a aplicação do dispositivo pressupõe a celebração de uma convenção de arbitragem (compromisso ou cláusula compromissória) com base no § 1o do art. 31. A interpretação ora defendida reputa que essa leitura não é compatível com o texto e o sentido do art. 31, pelos fundamentos expostos neste tópico, especialmente no item 10.4 abaixo.
6.1) Oferta e aceitação
Segundo Jeswald Salacuse, as disposições em tratados de investimento (e o mesmo vale para leis de proteção de investimento) não são elas próprias a convenção de arbitragem, mas, sim, correspondem a uma oferta unilateral e irrevogável de arbitragem, passível de aceitação pela contraparte: “An investor may accept that offer in different ways, including the submission of a request for arbitration or some other mechanism offered in the treaty. The offer includes the various terms and conditions contained in the applicable investment treaty.”[9]
O art. 31 da Lei no 13.448 estabeleceu sistema similar a este no direito brasileiro, aplicável indistintamente a partes brasileiras ou estrangeiras, desde que no âmbito material coberto pela própria Lei no 13.448. A leitura do caput e dos §§ 1º a 3º do art. 31 leva desde logo a essa conclusão. O caputprevê que determinadas “controvérsias surgidas em decorrência dos contratos de parceria nos setores de que trata esta Medida Provisória (…) podem ser submetidas à arbitragem ou a outros mecanismos de solução de controvérsias”. O âmbito material da Lei no 13.448 já foi examinado em tópicos anteriores.
6.2) Requisitos do artigo 31: eventos que desencadeiam a proposta para a arbitragem
O dispositivo estabelece dois requisitos. Primeiro, a necessidade de decisão definitiva da autoridade competente prévia à arbitragem prevista no caput (ou seja, cabe a arbitragem após encerrada a discussão administrativa). Depois, a arbitragem deve dizer respeito a direitos patrimoniais disponíveis previstos no § 4º: a arbitrabilidade objetiva, para os fins dessa oferta unilateral, é limitada aos direitos patrimoniais disponíveis especificados no dispositivo.[10]
Preenchidas tais condições, o caput do art. 31 deve ser compreendido como manifestação unilateral e definitiva da Administração Pública de seu consentimento em submeter o litígio em questão a arbitragem. Essa manifestação, por parte da Administração Pública, é completa e definitiva, condicionada apenas aos dois requisitos estabelecidos no próprio dispositivo. O que falta para o aperfeiçoamento da convenção de arbitragem é a manifestação da contraparte – concessionário ou parceiro privado, conforme o caso.
A situação das outras formas de solução extrajudicial também referidas genericamente no dispositivo é distinta, em face da variedade de suas possíveis manifestações. Mas a sujeição à arbitragem por parte da Administração Pública é já plenamente eleita e consolidada pela redação do art. 31. Seu aperfeiçoamento como convenção de arbitragem depende apenas da manifestação de consentimento do concessionário ou parceiro privado.
6.3) Aperfeiçoamento da convenção de arbitragem: consentimento do contratado
O consentimento da parte privada pode ser manifestado por meio de aditivo a contrato que não contenha cláusula arbitral (§ 1º do art. 31) ou mesmo por outras vias, como a própria formulação do pedido de instauração da arbitragem – ou mesmo uma declaração unilateral de assentimento à oferta de arbitragem. Havendo a concordância da parte privada com a submissão do litígio à arbitragem, o particular passa a integrar uma convenção de arbitragem ou a ter direito ao seu aperfeiçoamento, conforme o caso. Esse direito pode conduzir diretamente à instauração da arbitragem, inclusive por meio do sistema estabelecido pelos arts. 6o e 7o da Lei 9.307/96 para a instauração da arbitragem diante de controvérsia já existente. Ou pode, se esta for a preferência do particular, assegurar-lhe o direito de exigir a celebração do aditivo referido no art. 31, § 1o, da Lei no 13.448 para a inclusão de cláusula arbitral no contrato para a solução de controvérsias futuras. Neste caso, os eventuais impasses existentes na definição das condições do aditivo – por exemplo, quanto à escolha da instituição arbitral – deverão ser resolvidos pelo Judiciário.
6.4) Ainda a configuração de oferta vinculante
Essa compreensão do caput e do § 1o do art. 31 é confirmada por sua própria redação. Nada no caput induz a conclusão de que a autorização para solução da controvérsia por arbitragem é condicionada ao aditivo previsto no § 1o[11]. Teria sido simples ao legislador estabelecer esta condição, mas não o fez.
Pelo contrário, a própria redação do § 1o alude a contratos que já contenham cláusula compromissória. Em relação a esses, a Lei no 13.448 não pode ter efeito retroativo, estabelecendo requisitos que a convenção estipulada pelas partes não contém. Por decorrência, o art. 31 deve ser entendido como veiculando algo distinto do que já resulta do regime geral da arbitragem. Esse objeto distinto é justamente a oferta unilateral de arbitragem nas condições que estabelece.
Por outro lado, embora os dispositivos também nada digam expressamente acerca da necessidade de consentimento do particular interessado, este consentimento é conatural à convenção de arbitragem. Em tese, poderia ser – em casos excepcionais – dispensado por uma previsão expressa e clara de arbitragem obrigatória em setores específicos. Isso existe em diversos países e, de certo modo, no Brasil no setor de comercialização de energia elétrica – Lei no 10.848; em alguma medida, o próprio art. 15, III, da Lei no 13.448 contém hipótese de convenção obrigatória de arbitragem. Isso dependeria de previsão explícita e não se extrai nem de modo indireto da redação do art. 31. Nesse sentido, o consentimento do particular é um requisito para a aceitação da oferta unilateral de arbitragem contida no artigo 31.
A interpretação proposta também é confirmada pela redação dos §§ 2o e 3o do dispositivo em questão. Ambos estabelecem condições da arbitragem (antecipação das despesas, realização no Brasil e em língua portuguesa) de modo categórico, não condicionado ao aperfeiçoamento da convenção de arbitragem.
Porém, a confirmação decisiva desse entendimento deriva da interpretação sistemática do art. 31 e seu § 1o. A mera previsão de que os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis podem ser objeto de uma convenção de arbitragem entre a Administração Pública e seus parceiros privados ou concessionários já consta expressamente da Lei no 11.079 (Lei de PPPs) e da Lei no 8.987 (Lei de Concessões) desde, respectivamente, 2004 e 2005. Foi consagrada também, inclusive antes disso, em diversas leis setoriais aplicáveis a tais contratados. E foi expressamente reiterada pela alteração da Lei no9.307 introduzida pela Lei no 13.129. Não se pode supor que o legislador (Poder Executivo), por meio da Lei no 13.448, tenha apenas repetido aquilo que historicamente já havia sido construído e consagrado pelos diversos diplomas que culminaram na reforma legislativa de 2015.
Esse entendimento dá sentido à previsão do caput de que a submissão à arbitragem é possível “após decisão definitiva da autoridade competente”. Essa condição gerou certa perplexidade. Discutiu-se se implicaria uma restrição de acesso à jurisdição (era este o enfoque da emenda 23 à MP 752, não acolhida na conversão em lei) ou qual a conduta impedida pela inexistência de tal decisão: a celebração de uma convenção de arbitragem (compromisso), a própria celebração do aditivo previsto no § 1o ou apenas a instauração efetiva da arbitragem.
A interpretação do dispositivo é clara, simples e incontroversa quando se compreende que esta é apenas a condição para a oferta unilateral de arbitragem pela Administração Pública. O dispositivo estabelece que, havendo já uma decisão administrativa, a questão pode ser levada à arbitragem nos termos do art. 31; não existindo essa decisão, o regime excepcional do art. 31 não se aplica, mas nada impede a aplicação do regime geral de arbitragem se houver convenção de arbitragem.
6.5) Possibilidade de arbitragem fora do sistema do artigo 31: a aplicação do regime geral
A previsão do art. 31 não exclui o regime geral, consagrado inclusive no art. 1o da Lei no 9.307. Independentemente das condições do artigo 31, as partes sempre poderão celebrar uma convenção de arbitragem (compromisso arbitral ou cláusula compromissória) nos termos da lei geral aplicável (art. 1oda Lei no 9.307, cumulado ou não com as leis de PPPs e de concessões).
Ou seja, dentro do âmbito material da Lei no 13.448 e desde que tenha havido decisão definitiva da autoridade competente, a oferta unilateral de arbitragem do art. 31, caput, torna-se eficaz e pode ser objeto de aceitação (também unilateral) pelo particular interessado. Fora dessas condições, aplica-se o regime geral. Isso explica por que pode existir compromisso arbitral ou cláusula compromissória mesmo fora das condições do caput, aplicando-se o regime geral. Também explica por que é válida e não implica ofensa ao direito de acesso à jurisdição a condição (prévia decisão administrativa) prevista no caput. Trata-se da mínima garantia para a União Federal de que sua oferta unilateral de arbitragem pressuporá a prévia existência de uma decisão administrativa.
6.6) Arbitragem com Estados, Distrito Federal ou Municípios delegatários
Alguns empreendimentos no âmbito dos setores de aeroportos, rodovias e ferrovias podem ser promovidos por Estados, Distrito Federal ou Municípios sob o regime de delegação ou associação com a União Federal. Nesses casos, os governos locais envolvidos estão vinculados pelo artigo 31 da Lei no13.448 e, portanto, sujeitos à manifestação de consentimento e à oferta unilateral de arbitragem. Se o particular contratado pretender iniciar procedimento arbitral, poderá formular pedido de arbitragem diretamente com base no art. 31 em face da União Federal ou do ente político delegado competente, conforme o caso.
6.7) Definição de “decisão definitiva da autoridade competente
A noção de decisão definitiva da autoridade competente também exige pequeno aclaramento. O que se exige, para a aplicação do caput, é apenas que exista alguma decisão administrativa. A matéria não pode jamais ter sido objeto de decisão administrativa e ser inovadoramente resolvida de modo definitivo pelo juízo arbitral.
Porém, o seu caráter definitivo não exige que tenha sido proferida pela autoridade mais elevada nem que tenham sido exauridos todos os recursos possíveis. Basta que o particular interessado renuncie à discussão administrativa e, com isso, dê caráter definitivo (na via administrativa) à decisão impugnada.
Por outro lado, os prazos estabelecidos na legislação federal de processo administrativo (especialmente na Lei 9.784/99) se aplicam. Uma vez exauridos os prazos para decisão, o silêncio da Administração terá preenchido o requisito da prévia decisão administrativa para o efeito de se tornar eficaz a oferta unilateral de arbitragem contida no caput. Isso não impede que, havendo interesse do particular em provocar uma efetiva decisão administrativa antes de aceitar a oferta unilateral de arbitragem contida no caput, este promova medida judicial destinada a obter tal decisão efetiva (por exemplo, um mandado de segurança contra a omissão administrativa). Essa conduta não implica qualquer renúncia ao direito de oportuna aceitação da oferta unilateral de arbitragem, uma vez que diz respeito ao momento anterior (“decisão definitiva da autoridade competente”), estabelecido como condição de eficácia dessa oferta pela União Federal.
6.7) O credenciamento de instituições arbitrais
O § 5o do art. 31 prevê o credenciamento de instituições arbitrais, o que deve ser objeto de regulamento. O dispositivo é criticável por haver introduzido um fator de burocratização e de risco para a capacidade da Administração Pública de ter acesso às instituições arbitrais mais conceituadas, hábeis e experientes. Em artigo sobre a escolha de instituições arbitrais pela Administração Pública, Marçal Justen Filho critica a ideia de credenciamento:
12.8 – O desastre do credenciamento
  1. Outra solução que também não pode ser adotada é a do credenciamento. Aliás, o credenciamento pode gerar efeitos muito mais desastrosos do que as soluções antes examinadas.
12.8.1 – A figura do credenciamento
  1. O credenciamento consiste num ato administrativo unilateral por meio do qual a Administração estabelece requisitos de habilitação de potenciais interessados em contratar com ela, promovendo contratações sucessivas, de modo indistinto, com os diversos credenciados.
12.8.2 – O tratamento isonômico para todos os credenciados
  1. Em termos práticos, o credenciamento resulta numa situação de ausência de diferenciação entre os diversos credenciados. Todos os que preencherem os requisitos de credenciamento devem ser tratados de modo isonômico, inclusive para o efeito de serem contratados em condições razoavelmente aleatórias.
12.8.3 – O credenciamento de árbitros
  1. Ainda em termos práticos, o credenciamento de árbitros e de câmaras de arbitragem se traduziria numa espécie de “banco de dados” contendo nomes de sujeitos distintos. Em cada situação concreta, haveria a escolha de um desses nomes – presumindo-se que todos os que se encontram credenciados dispõem de condições de idêntica performance.
12.8.4 – O problema enfrentado
  1. O problema produzido pela adoção do credenciamento é a ausência de possibilidade de seleção fundada em critérios específicos, especialmente a avaliação fundada em razões diferenciadas. Há o enorme risco de admissão de credenciamento a sujeitos que dispõem de documentos de habilitação exigidos, mas que não se encontram em condições de desempenho satisfatório.
12.8.5 – Ainda o problema da existência de contrato
  1. Ressalte-se que o credenciamento também é uma solução descabida porque se destina a resolver questões de natureza contratual. Portanto, propicia resultados inadequados em vista da arbitragem. No credenciamento, não existe licitação, mas há contrato com a Administração Pública.
12.8.6 – Ainda e sempre o problema da licitação
  1. Também a solução do credenciamento é uma prática orientada a evitar disputas relativamente a licitações. Trata-se de um meio para evitar o questionamento quanto à escolha de sujeitos determinados para o desempenho de funções para a Administração Pública”.[12]
Assim, o regulamento do art. 31, § 5o, terá o papel de redefinir o credenciamento para eliminar qualquer dúvida acerca da existência de um suposto direito adquirido das instituições credenciadas a uma espécie de rodízio entre os credenciados. O credenciamento, em seu conceito clássico, pressupõe que todos os preços serão iguais e que a escolha de um dos prestadores se fará de modo indiferentes. Não é o caso da escolha de instituição arbitral, em que as taxas, honorários e outros valores variam fortemente e há diferenças sensíveis entre as atividades realizadas pelas diversas instituições e na respeitabilidade e reputação de cada uma delas. Melhor será se o regulamento contiver critérios mínimos de aceitabilidade, de modo que o credenciamento seja um mero cadastro dentro do qual as partes escolheriam a instituição adequada no momento da celebração do contrato (ou do edital, conforme o caso). O regulamento também deverá conter critérios abertos. Tanto quanto possível, deverá ser construído de modo a possibilitar que a Administração identifique a instituição adequada, mesmo se não credenciada – como vêm fazendo as administrações públicas da União e de vários Estados e municípios brasileiros, elegendo instituições como a CCI – Câmara de Comércio Internacional, CAM-CCBC, CAMARB, CAMFIEP, ARBITAC, CAESP e outras instituições de prestígio. Cabe admitir indiferentemente instituições brasileiras e estrangeiras, desde que aptas a conduzir processos no Brasil. A previsão de credenciamento não pode ser um limitador do acesso da Administração Pública às instituições mais apropriadas para a solução do litígio.
8) Conclusão
Pelo exposto, conclui-se que os arts. 15, III, e 31 da Lei no 13.448 trazem profundas e importantes inovações no sistema jurídico brasileiro relativo à arbitragem envolvendo a Administração Pública. Por meio do primeiro dispositivo, institui hipótese de celebração obrigatória de convenção de arbitragem. Pelo segundo, a União Federal manifesta de modo unilateral seu consentimento (extensivo aos delegatários de atividades federais) para submissão a arbitragem das controvérsias relativas a contratos abrangidos pela Lei no 13.448 em que tenha já havido decisão definitiva pela autoridade administrativa competente.
A configuração dessa condição prevista no caput do art. 31 pode ser precipitada pela renúncia, pelo particular interessado, à impugnação administrativa de decisão já existente, ainda que em tese passível dessa impugnação. Também pode ser configurada pelos efeitos do silêncio administrativo diante do descumprimento de prazos normativos para decisão, como os da Lei 9.784. Não havendo definição prévia das condições para a realização da arbitragem ofertada unilateralmente pelo caput do art. 31, aplica-se o regime dos arts. 6o e 7o da Lei 9.307/96, cabendo ao Poder Judiciário suprir os elementos necessários para a instauração da arbitragem que não tenham sido definidos pelas partes.

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