IDPJ e sua aplicabilidade às execuções fiscais, por Fernando Ferreira Rebelo de Andrade

CPC/2015, em seus artigos 133 a 137, criou a figura do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ). O objetivo deste artigo é tratar da controvérsia instaurada pelas procuradorias fazendárias, em torno da suposta incompatibilidade entre o microssistema das execuções fiscais e o referido incidente.
O diferencial do IDPJ está no fato de funcionar como um instrumento para viabilizar o contraditório prévio, o que tem sido muito festejado pelos contribuintes. No entanto, como costuma ocorrer quando uma novidade normativa traz benefícios e prejuízos para lados antagônicos, a reação natural das Fazendas Públicas foi no sentido de defender a inaplicabilidade do IDPJ às execuções fiscais, sobretudo porque a instauração do Incidente suspende automaticamente o processo executivo até a sua resolução, além de permitir o contraditório sem a garantia do crédito executado.
A alegada incompatibilidade entre o IDPJ e as execuções fiscais parte da premissa de que, nos termos do art. 16 da Lei de Execuções Fiscais – LEF, para que haja suspensão do processo executivo, o executado deve se defender pela via dos embargos à execução e, além disso, garantir integralmente o juízo executivo. Partindo dessa premissa, a conclusão fazendária é de que a instauração do IDPJ, nos executivos fiscais, traria vantagem indevida à pessoa atingida pelos efeitos jurídicos e patrimoniais da desconsideraçãopois ela poderia se defender sem a prévia garantia do crédito executado e, assim, suspender automaticamente a execução fiscal.
O argumento fazendário é engenhoso e sedutor, pela sua aparente simplicidade lógica e, talvez por isso já tenha sido acolhido por decisões esparsas de alguns Tribunais Regionais Federais[1]. Há, por outro lado, precedentes admitindo o IDPJ em executivos fiscais[2], o que revela o caráter ainda controvertido da matéria e justifica o seu exame por meio de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) – como, aliás, ocorre no TRF da 3a Região[3].
O equívoco da tese fazendária parte de uma premissa verdadeira, para chegar a uma conclusão falsa, que termina distorcendo o alcance e a finalidade pretendidos com a criação do IDPJ.
A premissa verdadeira é que, para haver a suspensão da execução fiscal, a defesa do executado, em regra, deve ser exercida por meio de embargos à execução, após a prévia garantia do juízo executivo; a conclusão falsa, supostamente decorrente dessa premissa, é que o IDPJ não poderia ser aplicado  aos executivos fiscais, porque, se o fosse, estar-se-ia permitindo que o executado obtivesse a suspensão do processo sem a prévia garantia do juízo executivo e sem o manejo de embargos à execução ou de outra ação de conhecimento.
Precisamente, o equívoco do raciocínio fazendário está na indevida equiparação, à condição de executado, da pessoa física ou da sociedade que será atingida pelos efeitos jurídicos e patrimoniais da desconsideração da personalidade jurídica. E isso porque, na verdade, a pessoa que sofre os efeitos da despersonificação é um mero terceiro que, por não integrar a lide executiva na condição de parte, não pode ser juridicamente qualificado e nem equiparado ao executado ou ao co-executado, indicados no título executivo extrajudicial (CDA).
Aliás, é o próprio CPC quem atribui, à pessoa juridicamente atingida pela despersonalização, a qualificação de terceiro, ao regulamentar o IDPJ no TÍTULO III, denominado DA INTERVENÇÃO DE TERCEIROS.
Em execução fiscal, a qualificação jurídica de parte só pode ser atribuída a quem conste no título executivo extrajudicial (CDA), na condição de executadocoexecutado ou responsável tributário, cuja inclusão no polo passivo se dá pela via do redirecionamento. Se a pessoa afetada pela eficácia jurídica e patrimonial da desconsideração da personalidade jurídica não figura na CDA ou não há hipótese de responsabilidade tributária, não há título executivo apto a presumir a sua legitimidade passiva. Trata-se, portanto, de um terceiro na lide executiva, que não pode ser equiparado ao executado ou coexecutado.
Logo, se esse terceiro não ostenta a posição de parte executada, não lhe pode ser dispensado o mesmo tratamento jurídico que o art. 16 da LEF prescreve apenas para os sujeitos que têm contra si presunção legal relativa da sua condição de legitimados passivos e responsáveis tributários, por estarem indicados na CDA ou já terem sido incluídos na lide, por meio de redirecionamento deferido antes da vigência do IDPJ.
O exame do cabimento do IDPJ às execuções deve ser feito de forma sistemática e não pode perder de vista que, nos embargos à execução, a exigência de prévia garantia e a ausência de efeito suspensivo automático são salvaguardas do credor fazendário que se justificam e se condicionam exatamente pela presunção de certeza, liquidez e exigibilidade atribuída à CDA. E, como se sabe, essa presunção legal é derivada ou de confissão do próprio sujeito passivo ou de um prévio processo administrativo destinado à constituição do crédito tributário, no qual é oportunizado ao sujeito passivo o exercício de ampla defesa e do contraditório.
Daí porque, se não houver título executivo presumindo a legitimidade passiva do terceiro e nem decisão judicial ou administrativa constituindo a sua responsabilidade tributária, a salvaguarda deve se inverter em seu favor, para lhe permitir que, por meio da instauração do IDPJ, exerça o contraditório previamente à desconsideração da personalidade jurídica e à constrição do seu patrimônio.
Na realidade, se o IDPJ não for aplicado às execuções fiscais, sujeitos que ocupam posições processuais bem diferentes receberão indevidamente idêntico tratamento jurídico: o terceiro que não tem contra si presunção legal de legitimidade passiva se sujeitará às mesmas regras aplicáveis ao executado ou coexecutado, cuja legitimidade é presumida, porque seus nomes estão indicados na CDA ou já foram incluídos na lide por força de redirecionamento. A quebra de isonomia fica evidente na tese fazendária, na medida em que iguala sujeitos em situações manifestamente desiguais, sem observar a exigência de tratamento paritário estabelecida pelo art. 7o do CPC.
Além disso, tal posicionamento se distancia do espírito da Constituição da República e do próprio CPC, que, alinhado com as garantias fundamentais veiculadas pelo art. 5º, LIV e LV da CF/88, reafirmou o prévio contraditório como princípio fundamental de observância obrigatória (arts. 7o, 9o e 10o, do CPC). Haverá subversão do devido processo legal, caso se deixe de aplicar o IDPJ às execuções e se permita que um terceiro ainda não integrante da lide executiva seja atingido pelos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, sem a sua prévia defesa e por meio de uma decisão unilateralmente concedida, com provável repercussão patrimonial.
Nessa ordem de ideias, não temos dúvida de que em havendo pedido de desconsideração de personalidade jurídica em ação de execução fiscal contra pessoas físicas ou jurídicas não indicadas na CDA, a instauração do IDPJ surge como etapa processual obrigatória, destinada à assegurar o exercício do contraditório e da ampla defesa, previamente ao exame judicial da pretensão fazendária.

———————————–
[1] Nesse sentido, os acórdãos proferidos pelo TRF da 4a Região, nos Agravos nº 5020670-63.2016.404.0000 e nº 5047499-81.2016.404.0000.
[2] Assim decidiu o TRF da 3a Região no agravo de instrumento 592718/ SP. 0022670-51.2016.4.03.0000
[3] A questão será examinada no processo piloto de nº 0017610-97.2016.4.03.0000.

Comentários