Procurador municipal deve ser regra, escritório a exceção, por Raphael D. Serafim Vieira

O STF definirá, em regime de repercussão geral (RE 656.558 SP), se os contratos firmados entre os Municípios e escritórios de advocacia estariam imunes à incidência do art. 37, §4º, da Constituição Federal, que prevê a responsabilização por ato de improbidade administrativa.
O debate foi levantado a partir da condenação de um escritório de advocacia por improbidade administrativa, após ter formalizado contrato com um Município do interior de São Paulo, para a prestação de serviços jurídicos.
No caso, a contratação foi tida como irregular pelo Superior Tribunal de Justiça, por inobservância dos critérios legais para a contratação direta, nos seguintes termos:
“a contratação de escritório de advocacia quando ausente a singularidade do objeto contratado e a notória especialização do prestador configura patente ilegalidade, enquadrando-se no conceito de improbidade administrativa, nos termos do art. 11 caput e inciso I […] (Resp 488.842-SP).
Paralelamente, tramita no STF a ADC n. 45, sob a relatoria do Min. Luis Roberto Barroso, em que se discute a constitucionalidade dos dispositivos da Lei de Licitações que permitem a contratação de advogados por entes públicos. A tendência é que o julgamento do recurso extraordinário (RE 656.558 SP) seja adiado com pedido de vistas do Min. Barroso, que já expressou a sua intenção de examinar ambos os processos conjuntamente.
Apesar disto, o tema pendente revela nuances fulcrais de uma discussão ainda maior, que transborda os limites da aplicabilidade ou não da Lei de Improbidade a essas contratações.
A discussão, ainda por vir, diz respeito à definição do que seria ‘regularidade’ para fins de contratações diretas com os entes públicos, especialmente quando o serviço técnico contratado seja aquele previsto no art. 13, V, da Lei n. 8.666, ou seja, o assessoramento jurídico do ente político.
Os artigos 13, V, e 25, II, da Lei 8.666/93 permitem extrair da norma, sem maior esforço, que é possível a contratação de serviços técnicos, dentre os quais os de patrocínio de causas judiciais ou administrativas, desde que patente a sua natureza singular e que o profissional contratado seja de notória especialização na área.
Apesar de a interpretação da norma se apresentar, a priori, demasiadamente simples, a sua aplicação merece extremo cuidado e rigor, sobretudo quanto à delimitação da “natureza singular” do serviço, que, por se tratar de um conceito jurídico indeterminado, demanda do operador do direito uma análise minuciosa do caso concreto.
A conclusão, portanto, sobre a existência de improbidade ou não irá sempre demandar um juízo de subsunção da norma ao caso concreto, em que o intérprete se deparará com a prova viva da “natureza singular” do serviço e da “notória especialização” do profissional contratado.
No entanto, a tese proposta pelo Conselho Federal da OAB é a de que a escolha pela contratação direta de advogados, nesses casos, seria determinada simplesmente por sua “confiabilidade subjetiva”. Por esta perspectiva, o alcance do pré-requisito “natureza singular” se bastaria no juízo de preferência pessoal do administrador, pautado em sua opinião acerca das virtudes e características pessoais do causídico que pretende contratar.
Tal raciocínio implica uma generalização do quesito da ‘singularidade’ para todos os chamados serviços “jurídicos”, visto que sempre prestados por advogados.
Com isso, criar-se-ia uma discriminação em face dos demais serviços técnicos especializados listados no art. 13, da Lei 8.666, já que, em relação a eles, a ‘singularidade’ continua a ser exigida para fins de contratação direta.
Além disso, sob esse viés, a regularidade da contratação de escritórios de advocacia jamais poderia ser desafiada, esvaziando-se a aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa nesses casos.
O debate travado neste julgamento, portanto, diz respeito ao próprio conteúdo desses contratos de advocacia, pois a vulgarização do que se entende por “natureza singular” poderia transformar em regra sua própria exceção.
A questão mereceu o olhar atento do Min. Barroso, que, também preocupado com a vulgarização da condicionante legal, alerta que “a natureza singular refere-se ao objeto do contrato, ao serviço a ser prestado, que deve escapar à rotina do órgão contratante e da própria estrutura de advocacia pública que o atende”. Como consequência, o Ministro entende que a demonstração da “inadequação da prestação do serviço pelo quadro próprio do Poder Público” seria elemento jurídico indispensável para aferir a concreta singularidade do serviço (Inq. 3.074-SC).
Neste sentido, o Supremo Tribunal deverá fixar a tese paradigmática com redobrada prudência, para que o enunciado de sua conclusão não propicie um salvo-conduto para a perpetuação de milhares de contratos irregulares entabulados entre Administrações e escritórios de advocacia.
De fato, se, por um lado não se pode pré-determinar a contratação de escritório de advogados como “ato de improbidade”, por outro, não se pode, igualmente, isentá-la, aprioristicamente, da incidência da Lei de Improbidade Administrativa.
Até porque, tal espécie de contratação nasceu como uma exceção que deve ser controlada. E, como exceção, merece ser tratada, aplicando-se, no caso, os requisitos legais, com o rigor que todo regime excepcional demanda.
Não é por menos que o emprego específico dessa modalidade excepcional de contratação vem chamando a atenção da jurisprudência e da comunidade jurídica envolvida.
De fato, existe uma prática ilegal que arvorou a contratação de escritórios de advocacia em uma regra, apesar de sua excepcionalidade congênita, sendo esta aplicada no dia a dia da Administração Pública, a despeito dos mandamentos legais restringindo os casos de sua incidência.
Assumiram, portanto, tais contratações, o status de ‘regra’, passando a ocupar lugar que não lhes pertencia, visto que não destinado pelo constituinte de 1988, nem pelo legislador ordinário.
A realidade local, todavia, consolidou esse estado de fato, denotando uma grave distorção do modelo constitucional engendrado nos demais entes da federação: enquanto no âmbito da União, dos Estados e do DF, a regra é a prestação dos serviços jurídicos por procuradores concursados, nos municípios, os dados demonstram que essa tem sido a exceção.
A ausência de institucionalização do assessoramento jurídico nos municípios brasileiros ficou comprovada estatisticamente com o “1º Diagnóstico da Advocacia Pública Municipal”, realizado ao longo do ano de 2016, pela Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM), em parceria com a Consultoria Herkenhoff & Prates, contratada para conduzir a coleta, consolidação de dados e análise dos resultados da pesquisa.
De acordo com os dados da pesquisa, infere-se que apenas 34,4% dos municípios brasileiros contam com ao menos um procurador municipal ativo, efetivado por meio de concurso público específico para a carreira. Em números absolutos, isso significa dizer que, do total de 5.570 municípios, em apenas 1.916 o assessoramento jurídico é prestado por servidor público concursado.
Por outro lado, em 65,6%, os serviços jurídicos são prestados, exclusivamente, por servidores extraquadros ou por escritórios privados de advocacia. Portanto, existem mais de 3.600 Prefeituras que, por não disporem de um procurador concursado sequer, se potencializam como clientela interessada na contratação de escritórios de advocacia, e este segmento, por sua vez, se empenha na flexibilização dos requisitos legais destes contratos.
Nesse sentido, inúmeras ações de improbidade administrativa, como a mencionada, questionam o desvio verificado na aplicação de tais contratações, em escancarado desrespeito aos requisitos legais incidentes.
Por outro lado, é cediço que a regra, no que tange à prestação de serviços comuns e rotineiros da Administração, é que estes sejam realizados por servidor público, devidamente aprovado em concurso público de provas e títulos (art. 37, II, CF) e inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (art. 3º da Lei 8.906/90).
Deste modo, o exercício das funções típicas de advocacia do Estado deve ser realizado por servidor público concursado, devidamente inscrito na Ordem, e não sob o primado de contratações de escritórios de advocacias. Outrossim, a quase totalidade das atividades jurídicas do dia-a-dia do Poder Público podem ser naturalmente atribuídas ao Procurador efetivo.
O próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de reconhecer que a função de assessoramento jurídico do Poder Executivo deve ser exercida, exclusivamente, por procuradores de carreira com ingresso mediante concurso público (ADI 4261/RO, de relatoria do Ministro Ayres Britto).
Assim, a mitigação das exigências legais para a contratação sem licitação (art. 25, II, Lei 8.666/93), notadamente a singularidade do serviço, desvirtuam claramente o propósito do constituinte de erigir o concurso público enquanto regra de acesso às funções públicas no âmbito da Administração (art. 37, II).
Tendo isso em mente, a contratação de advogados pela Administração para prestar serviços jurídicos comuns, além de configurar burla ao requisito da dispensa de licitação consubstanciado na “natureza singular” (art. 25, II da Lei 8.666/93), é inconstitucional, uma vez que a atividade jurídica de entes públicos deve ser realizada por titulares de cargos públicos efetivos (art. 37, II).
Ao Supremo caberá, portanto, decidir esse paradoxo, em que se intenta a aplicação de um regime ‘excepcional’ a atividades jurídicas comuns e rotineiras na Administração Pública.
Finalmente, impende destacar que o caso, além de impactar diretamente em uma centena de processos sobrestados em função da admissão do próprio RE, constituirá um dos marcos regulatórios no que diz respeito aos serviços jurídicos prestados no âmbito do Poder Público Municipal. Análise essa que perpassa o estudo do Pacto Federativo, com suas implicações de igualdade entre os entes, bem como o exame da concretização do Estado de Direito no âmbito municipal.
Esperamos que a Corte esteja sensível para a importância da matéria, na perspectiva de estabelecer um filtro que impeça contratações impróprias e que coloque em risco a segurança jurídica da administração pública municipal.

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