O poder jurígeno das partes: a autonomia da vontade como fonte de norma processual/procedimental, por Rudney Teixeira Bezerra e Odasir Piacini Neto

Convenção, acordo ou negócio jurídico processual são termos comumente utilizados para designar o encontro de vontades de duas ou mais partes a fim de modificar os atos processuais antecedentes ou incidentes em uma demanda.

publicização sofrida pelo processo civil acabou por levar ao dominante entendimento de que ele pertence ao ramo do direito público, considerando que o Estado-Juiz é parte da relação jurídico processual.

Por essa razão, as partes interessadas da relação processual sempre tiveram um limitado poder de regular, por suas próprias vontades, os procedimentos e atos do processo.

CPC/15, sob o marco do sistema cooperativo processual, confere especial valor aoprincípio do respeito ao autoregramento da vontade. Assim, não apenas o direito material pode ser objeto de consenso entre as partes, mas também as regras processuais por meio da utilização do instituto dos negócios jurídicos processuais.

De modo claro, imagine-se a possibilidade de na celebração de um contrato (paritário ou por adesão) as partes, além de ajustarem acordos relativos ao direito material (preço, pagamento, local, garantias, multas e etc.), convencionarem sobre regras processuais atinentes àquele contrato. Por exemplo, escolha do juízo, distribuição do ônus da prova, não penhorabilidade de certo bem, não execução por certo período, ordem da constrição patrimonial, limitação à utilização dos recursos, entre outros.

A potencialidade do instituto está intimamente ligada a autonomia das partes, que se materializa no poder de convencionar regras em relação a atos, efeitos e/ou procedimento de uma futura (ou já em curso) demanda. Advém daí o título o poder jurígeno das partes1, capacidade de gerar um direito.

Em verdade, o tema não é novo, está normatizado desde o regulamento 737 de 18502. O próprio 
Código Civil de 1916 já previa o foro de eleição, bem como o CPC/73, que de certa forma trouxe novas possibilidades de negócios processuais típicos, como a convenção probatória (art. 333, §1º).

Contudo, muitos autores negavam (alguns ainda negam) a validade/possibilidade das convenções processuais (Chiovenda, Liebman3, Dinamarco4, Mitidiero5 e Freitas Câmara6).

Reflexo desse engessamento do processo (normativos cogentes) é a verificação das pouquíssimas possibilidades de os litigantes poderem avençar questões procedimentais no CPC/73, com destaque da influência de Chiovenda, que, em 1998, já assentava sua perspectiva: “não existe, pois, um processo convencional, quer dizer, ao juiz e às partes não é permitido governar arbitrariamente o processo”.

Foi por meio do uso institucional de alguns países (chamados protocolos institucionais - acordo entre órgãos e entidades) que se percebeu uma grande valorização dos negócios jurídicos processuais. A França,7 por exemplo, foi intrépida na utilização das convenções processuais, o que acabou por expandir o seu estudo, bem como o avanço na doutrina, que posteriormente influenciou outros países.

No Brasil, Fredie Didier Júnior e Antonio do Passo Cabral são dois dos maiores entusiastas sobre o tema, que nos últimos dez anos vem ganhando grande enfoque acadêmico.

Dentre os modernos, Daniel Amorim Assumpção Neves8, em que pese louvar o aprofundamento do instituto no CPC/15, não acredita na sua funcionalidade/efetividade. Antonio do Passo Cabral já acredita que a consagração do instituto no CPC/15 de forma tão ampla é um caminho sem volta. Sua aplicação será em breve rotineira e expandida a todas espécies de demanda.

Por todo seu respaldo sobre o tema, é possível apontar Fredie Didier como um daqueles que melhor conceitua o instituto, vejamos:
Negócio processual é o ato voluntário, em cujo suporte fático confere-se ao sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais.9
Perceba-se que o referido conceito vai ao encontro da Teoria Geral do Direito, razão pela qual, negócio jurídico é fato jurídico, assim qualificado pela incidência normativa.

Dentre as classificações destacam-se a dos negócios jurídicos processuais típicos e os
negócios jurídicos processuais atípicos. 
Típicos são aqueles que possuem uma previsão legal. Exemplos destes, previstos no CPC/2015, são: eleição de foro (art. 63); desistência do recurso (art. 997, III), suspensão do processo (arts. 313, II e 922); entre outros.

Atípicos são aqueles que intitulam o presente artigo, porquanto passam a ser fonte de norma processual para o caso concreto. Com base no princípio da autonomia da vontade, as partes podem pactuar negócios processuais que não se encaixem nas previsões legais, estruturando-os de forma a satisfazer a necessidade mútua.

O CPC/15 rompeu com a tradição publicista e passa a permitir, de forma ampla, a celebração de negócios jurídicos atípicos. Pela importância do dispositivo, reproduzimos o art. 190 do CPC/15, cláusula geral de negociação:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

A novidade é muito grande. A vontade das partes passa a ser fonte de regulação do procedimento - autorregulação. Nada mais democrático e cooperativo do que permitir que aqueles que acordam sobre o mérito, possam também acordar sobre o procedimento e os efeitos que desejam.

Imagine-se um contrato de locação em que as partes ajustem o aluguel no valor “x” e tempos após, uma das partes pretende reajustar o valor da locação. As partes podem incluir nessa negociação, que é típica do direito material, um negócio jurídico processual.

Poderiam, por exemplo, limitar o reajuste do aluguel com a fusão e ponderação de umaconvenção processual. Neste caso seria possível ajustar: (i) julgamento em instância única; (ii) indicação dos bens para responsabilidade patrimonial; (iii) resolução antecipada do contrato; (iv) obrigação de fazer ou dar (obrigar-se a fazer algo ou dar algo ao invés de pagamento uma multa), entre outras.

São inúmeras as possibilidades. A imaginação dos profissionais (em especial a dos advogados) será o limite, sempre respeitando, é claro, os requisitos para validade das convenções processuais. Este será um desafio para a jurisprudência: delimitar os requisitos de validade para os negócios jurídicos atípicos.

O CPC/15 traz novos desafios a todos os operadores do direito, em especial os advogados, que deverão estar preparados para a utilização dos novos institutos, mormente, à figura do negócio jurídico processual formulado antes ou durante o processo, o que deverá gerar maiscooperação, justiça da decisão, satisfação e respeito a autonomia e liberdade das partes, sem dúvida, uma conquista histórica para os direitos fundamentais.

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