O direito de ação: entre teorias e condições (Parte I), por Guilherme Pupe da Nóbrega

É o exercício do direito de ação que retira o Judiciário da inércia, iniciando um processo que visa à entrega da tutela jurisdicional. Esse direito à tutela jurisdicional, positiva ou negativa, independe do que é pedido, independe da tutela material. Na relação de direito material, o polo passivo é ocupado pelo réu, um suposto devedor, se adotada como exemplo a ação de cobrança. Na ação, decorrente do exercício do direito de ação, o “polo passivo” é funcionalmente ocupado pelo Estado-Juiz, que é a quem compete a prestação jurisdicional. Essa explicação, porém, é feita com a ressalva de algumas teorias que ao longo dos últimos séculos divergiram a respeito do que consistiria o direito de ação.
Em meados do século XIX, a ação era vista como algo intrínseco, imanente ao direito. “Um momento do direito subjetivo material”1, momento esse em que o direito lesado era levado ao Judiciário para ser tutelado. Segundo essa teoria, denominada de monista, civilista ou, ainda, imanentista, que encontrou em Savigny seu maior expoente, haveria relação imbricada entre direito subjetivo material e ação: essa pressupunha aquele; aquele inexistiria sem essa para fazê-lo valer.
A referida teoria, porém, partia do princípio de que somente teria havido, de fato, exercício regular do direito de ação se, ao fim e ao cabo, o autor se sagrasse vencedor, deixando sem resposta qual seria a natureza da atividade desempenhada pelo Estado caso não fosse reconhecido o direito subjetivo material.
Exemplo dessa teoria pode ser dado pelo período das ações da lei (legis actiones) do Direito Romano, que trazia um rol de ações à disposição dos destinatários do ius civile, que somente tinham reconhecidos aqueles direitos específicos passíveis de serem invocados pela ação que lhe fosse própria.2
Essa teoria, contudo, ignorava a possibilidade de não ser acolhida a pretensão de direito material. Em outras palavras, julgado improcedente o pedido, não teria havido exercício regular do direito de ação? O que, então, teria retirado o Judiciário da inércia?
A teoria civilista também era considerada aparentemente falha quando confrontada com ação declaratória em que se pretendesse declaração de inexistência de relação jurídica, quando o exercício do direito de ação pelo autor se voltava, exatamente, para a declaração de inexistência do direito.3
Nos anos de 1856 e 1857, é travado um debate entre Bernhard Windscheid e Theodor Muther a respeito da leitura da actio romana em confronto com o Direito germânico da época. Das considerações recíprocas feitas por um e outro autor, que em boa parte eram mais complementares que divergentes, releva como resultado uma separação no âmbito da ação. Havendo uma violação a um direito subjetivo, o lesado teria uma pretensão de direito material contra aquele que o lesou e um direito à tutela de sua pretensão contra o Estado, o último pressupondo o primeiro.
O ganho em relação à teoria civilista se traduziu numa primeira separação entre a pretensão de direito material e a ação que exigiria uma resposta do Estado. O problema era que ambos os autores estabeleciam uma relação necessária de interdependência entre um e outro instituto ao vincularem a ação à pré-existência da pretensão de direito material, isto é, ainda que houvesse uma separação, o direito à tutela contra o Estado somente era validamente exercido quando presente a pretensão de direito material, afinal, aquele se originaria dessa. Exercido o direito de ação e ausente a pretensão, a resposta se limitava a retroativamente dizer que, inexistindo a pretensão, o direito de ação igualmente nunca existiu.4
Já em 1885, Adolf Wach aborda a ação declaratória negativa como forma de pôr em xeque a teoria civilista, sustentando a autonomia do direito de ação frente ao direito subjetivo para dizer que é possível que a tutela almejada se dissocie do direito material. A ação declaratória negativa entra em cena precisamente para comprovar essa tese, exemplificando hipótese em que haja ação ainda que inexista a relação de direito material.5 Aliás, a tutela, segundo o pensamento de Wach, se voltava precisamente para a declaração dessa inexistência.6
Sem embargo, Wach condicionava o exercício regular do direito de ação à procedência da demanda deduzida, ou, dito de outro modo, o exercício do direito de ação estaria condicionado ao acolhimento daquilo que com a ação foi pedido.7
Chiovenda se colocou bastante próximo de Wach, mas inova ao enquadrar o direito de ação não como obrigação a ser prestada pelo Estado, mas como um direito potestativo contra o réu. Além disso, Chiovenda passou a enunciar as condições para que a ação se fizesse presente: legitimidade, interesse de agir e existência do direito.8 Precisamente por pressupor o acolhimento da demanda e a existência do direito, a teoria de Wach e Chiovenda foi apelidada de concretista: para que haja ação é necessária a presença, in concreto, do direito material. A crítica, no particular, foi a mesma feita a Wach e à teoria civilista: inexistindo direito material, não houve, então, ação? Qual a natureza da atividade desempenhada pelo Estado até que pronunciasse, com eficácia retroativa, que ação não existiu? Se ação não existiu, o que retirou o Estado de sua inércia?
Ao contrário da teoria concretista, que pressupõe a existência do direito e o acolhimento da demanda para que haja reconhecimento do direito de ação, ou seja, que a resposta estatal seja necessariamente favorável, já no século XX, os partidários9 da teoria abstrata passara a sustentar que a ação confere ao seu titular o direito a uma resposta do Estado, seja ela qual for.
A ação, pois, seria um direito de personalidade, fundamental do indivíduo contra o Estado, inteiramente dissociada do direito material por meio dela invocado, que consistiria, essa, no mérito.
Nas sábias palavras de Calmon de Passos, o “direito de ação é o direito à jurisdição, direito concedido ut civis, abstraindo-se da existência ou inexistência de qualquer direito material.”10
Críticas igualmente existiram no sentido de que a teoria seria excessivamente genérica ao admitir, sempre, um direito contra o Estado, mesmo diante de inexistente direito material contra o adversário.
A fim de conformar as teorias abstrata e concretista, Enrico Tulio Liebman11 cunha uma teoria eclética: a ação nem seria incondicionada, conferindo ao seu titular o direito a uma reposta estatal, fosse ela qual fosse (teoria abstrata), e nem tampouco daria, atendidas determinadas condições, direito a uma resposta necessariamente favorável (teoria concreta).
Haveria, sim, condições ao exercício do direito de ação. Atendidas essas condições, passaria o seu titular a ter contra o Estado direito a uma sentença quanto ao mérito de sua demanda, a essência do que foi pedido e os fundamentos sobre os quais esse pleito se alicerça.
O que fez Liebman, então, foi ajustar as condições enunciadas por Chiovenda, mantendo a legitimidade12 e o interesse de agir13, mas transportando a existência do direito para o mérito e pondo em seu lugar a possibilidade jurídica do pedido14 como uma espécie de exame in abstracto sobre se o pedido deduzido seria ou não vedado pelo direito.15
Caberia, portanto, ao julgador, antes de adentrar o mérito propriamente dito, realizar um trabalho de filtragem a fim de aferir se as condições da ação estariam ou não atendidas. Supondo que essas condições fossem atendidas, passaria o magistrado ao exame do mérito; desatendidas as condições, o processo haveria de ser extinto sem enfrentamento do mérito, somente havendo falar em jurisdição, segundo Liebman, no primeiro caso.16
Exercendo forte influência sobre importantes juristas no século XX (como Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco), Liebman logrou imprimir sua teoria no Código de Processo Civil de 1973, cujo anteprojeto foi redigido por Alfredo Buzaid, outro de seus alunos.
Estava adotada no Brasil, assim, a tricotomia de categorias processuais: pressupostos processuais — de que se falará adiante —, condições da ação e mérito.
Na próxima semana, teceremos nossas críticas à teoria eclética e discorreremos sobre o tema à luz do Código de Processo Civil de 2015. Até lá!
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