Quem nunca sofreu cobrança não pode ser processado por sonegação fiscal, por Igor Mauler Santiago

Uma coisa pode acabar antes mesmo de se iniciar? O paradoxo calha bem na lição do estoico, expressa em linguagem figurada e voltada ao campo da moralidade. Mas não tem lugar no mundo denotativo, pretensamente lógico e cronologicamente linear do Direito.
Ou não deveria, pois é a isso que temos assistido, incrédulos, nos domínios do Direito Penal Tributário. Referimo-nos às denúncias de sonegação fiscal dirigidas contra gestores de empresas não incluídos como coobrigados no lançamento do tributo supostamente evadido.
Como se sabe, a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal afirma que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”, isto é, da sua confirmação pelas instâncias administrativas de julgamento. Mais de uma vez alertamos para a insuficiência do enunciado, que não impede a injustiça de alguém ser condenado criminalmente e depois ver extinto, na esfera judicial, o débito que lastreara a acusação (clique aqui e aqui para ler).
Hoje vamos explorar o seu alcance subjetivo, buscando garantir a preservação daquele pouco que o Supremo já consagrou. Uma das funções do lançamento listadas no artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN) é identificar o(s) sujeito(s) passivo(s) da obrigação. É dizer: não basta dizer que há tributo devido, sendo imperativo responder: devido por quem?
Quem não é devedor, por não constar do lançamento, não pode sofrer os efeitos da respectiva confirmação, a qual se terá dado contra terceiros (o contribuinte e os responsáveis acaso indicados), sem o atingir de nenhuma maneira. Noutras palavras, para deixar mais claro o inusitado da situação: não pode ser tachado de sonegador aquele de quem jamais se exigiu pagamento algum!
Se não se pode oferecer a denúncia antes do encerramento do processo administrativo, muito menos se pode ofertá-la antes do seu início, que ocorreria com a lavratura do auto de infração contra a pessoa física do gestor — ou melhor, com a sua inclusão, como coobrigado, na autuação lavrada contra a empresa que administrava ao tempo do fato imponível.
Isso lhe garantiria a oportunidade de defesa administrativa, que o STF qualifica como direito fundamental do contribuinte (Pleno, RE 389.383/SP, Relator Ministro Marco Aurélio, DJe 29.6.2007). Finda essa etapa, com confirmação do débito e da vulneração ao artigo 135 do CTN (prática de ilícito justificadora da responsabilização pessoal), aí sim seria admissível a denúncia contra ele.
Foi o que ressaltaram os ministros Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim ao votarem no Habeas Corpus 81.611/DF, relatado pelo primeiro (Pleno, DJ 13.5.2005), acórdão que serviu de base à elaboração da Súmula.
“Princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem” — anotou o relator — “que se subtraiam do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia de questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório (...) para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal”.
“Um cidadão vai ser compelido a pagar por estar sob pressão do Ministério Público...?”, indagou o ministro Nelson Jobim. E respondeu de pronto que, a ser assim, estar-se-ia “suprimindo um direito constitucional de defesa na esfera administrativa”.
Isso para não falar que, como vigorosamente alertou o ministro Cezar Peluso, “seria inexplicável e intolerável (...) autorizar o Fisco a exigir, pela força coercitiva da ignomínia” — pois o pagamento extintivo da punibilidade é a única forma de livrar do processo criminal o gestor a quem não foi dado defender-se da imputação fiscal — “tributo que não pode exigir por via de ação civil”.
É certo que a jurisprudência do STJ — criticada com enorme brilho por Leonardo José Corrêa Guarda em dissertação de mestrado que tive a satisfação de avaliar[1] — admite o redirecionamento de execução fiscal mesmo contra terceiros não mencionados na certidão de dívida ativa, desde que a Fazenda Pública comprove o cumprimento dos requisitos do artigo 135 do CTN (1ª Seção, REsp. 1.182.462/AM, Relatora para o acórdão ministra Eliana Calmon, DJe 14.12.2010).
Sobre esse esdrúxulo mecanismo — a que a repetição deu um ar de falsa normalidade — muito há a dizer, quem sabe em futura coluna. Por ora anotamos apenas que se trata de lançamento feito pelo juiz, com quebra da separação dos Poderes, e temporalmente desvinculado da ocorrência do fato gerador (ao contrário do que predica a regra geral do artigo 173, inciso I, do CTN), sujeito que está ao período de cinco anos contados do evento processual consistente na citação do devedor principal ou, como querem outros, do implemento da condição desencadeadora da responsabilização tributária — mas nunca do fato gerador.
Seja como for, parece-nos claro que a aplicação literal da Súmula Vinculante 24 impede a persecução criminal desse administrador tardiamente acionado, visto que para ele não houve e nem haverá o processo administrativo a cujo desfecho o verbete condiciona a admissibilidade da denúncia.
Conclusão oposta depende, ou da alteração do texto da Súmula, o que só o Supremo pode fazer, ou de uma interpretação construtiva no sentido de que a expressão “lançamento definitivo”, no caso de lançamento judicial (o redirecionamento da execução fiscal), alude à decisão do incidente de desconsideração da personalidade jurídica dos artigos 133 a 137 do CPC.
Pois, por maior que seja a dignidade de um juiz, não se concebe que uma decisão repentina, não raro pouco fundamentada e tomada inaudita altera parte, baste para justificar a agressão ao patrimônio de quem, até aquele momento, estava totalmente alheio à discussão do débito tributário.
Insistir nessas filigranas na quadra atual de hipertrofia dos poderes do Estado, onde o massacre dos direitos fundamentais do cidadão é aplaudido em praça pública e timidamente homologado nas Cortes; onde são difamados os advogados que os reivindicam e os juízes que os garantem, e não só pelos leigos; onde o voluntarismo colonizou a hermenêutica jurídica a ponto de a indiferenciar da simples querela política; onde é preciso quase envergonhar-se por defender uma interpretação metódica das normas jurídicas — e não falamos só do Direito Penal, mas também das controvérsias tributárias de forma e de fundo —, insistir nesses detalhes de técnica jurídica em tal cenário chega a parecer ingênuo.
Mas é, ao contrário, uma renitente profissão de fé no Direito como instrumento para a proteção dos inocentes tanto quanto para a punição dos culpados, e sobretudo para a serena distinção entre uns e outros.

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