Eleições indiretas ou diretas na hipótese de vacância dos cargos de presidente e de vice nos dois últimos anos de mandato? Por Rodrigo Brandão

A hipótese de dupla vacância dos cargos de Presidente e de Vice-Presidente da República no último biênio do mandato é regulamentada por dispositivo constitucional específico, qual seja, o art. 81, § 1º, da Constituição Federal de 1988. Confira-se o seu teor: “a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”. A alusão a “eleição feita pelo Congresso Nacional” significa que o constituinte optou por excepcional eleição indireta para Presidente da República, na medida em que os eleitores serão os parlamentares federais, e não os cidadãos em geral em gozo da sua capacidade eleitoral ativa.
Note-se, porém, que, em 29 de setembro de 2015, foi editada a Lei n. 13.165 (Minirreforma eleitoral), que, em seu artigo 4º, alterou a redação dos §§ 3º e 4º do art. 224 do Código Eleitoral (Lei n. 4.737/65), para determinar que “a decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato[1] de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições […]”, as quais somente serão indiretas “se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato.”[2]
Do cotejo dessas normas se percebe que elas, quando menos aparentemente, contêm soluções díspares: enquanto o § 1º do art. 81 da CF/88 prevê eleição indireta para as hipóteses em geral de vacância dos cargos de Presidente e de Vice-Presidente da República ocorridas nos dois últimos anos de mandato, o art. 4º, da Lei n. 13.165/2015 estabelece que, para o caso específico de “cassação de mandato eletivo” pela Justiça Eleitoral, somente haverá eleição indireta se a vacância tiver ocorrido nos seis últimos meses de mandato.”  Desse modo, em havendo cassação de mandato pela Justiça Eleitoral no período entre o início do terceiro ano e os seis meses anteriores ao fim do mandato, as normas parecem ser contraditórias na parte em que disciplinam a eleição para Presidente da República, pois a Minirreforma eleitoral prevê eleição direta para todos os cargos majoritários (no quais se inclui o Presidente da República) e o § 1º do art. 81 da CF/88 prevê eleição indireta para a dupla vacância qualquer que seja o motivo que a ensejar (abrangendo a cassação de mandato pela Justiça Eleitoral). A questão, contudo, apresenta sutilezas e será apreciada pelo STF.
A propósito, o Procurador-Geral da República, por considerar que o art. 4º da Lei nº 13.165/2015, na parte em que trata da eleição do Presidente da República, colide com o art. 81, § 1º da CF/88, propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.525 no STF. A Advocacia-Geral da União se manifestou pela procedência da ação. Já a Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, na qualidade de amicus curiae, defendeu a improcedência da ação, pois considera possível que o legislador ordinário exclua das hipóteses de eleição indireta para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República a situação específica daquela que é gerada pela vacância dos cargos em razão de cassação de mandato por decisão da Justiça eleitoral. Defende-se essa tese com base, essencialmente, na relevância conferida pela Constituição de 1988 ao voto direto (erigido à condição de cláusula pétrea pelo art. 60, §4º, II da CF/88 e bandeira principal do movimento “Diretas já”) e no fato de ao legislador ordinário também competir interpretar a constituição.  
Embora o relator da ADI n. 5.525, Ministro Luís Roberto Barroso, tenha liberado o processo para julgamento, ele ainda não foi incluído em pauta. De todo modo, o Tribunal Superior Eleitoral, em recente decisão na qual deliberou pela cassação dos mandatos do Governador e do Vice-Governador do Estado do Amazonas, decidiu pela aplicação da Lei nº 13.165/2015[3], pois, apesar de ter sido proposta ADI em que se pugna pela sua inconstitucionalidade, ainda não há decisão cautelar ou definitiva, preservando-se a presunção de constitucionalidade da lei. Assim, foi determinada a realização de eleição direta para governador daquele Estado.
Note-se que dois Ministros do STF que são titulares do TSE (Min. Gilmar Mendes e Luiz Fux) não participaram do julgamento, sendo substituídos naquela ocasião pelos Ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. A proposta de aplicação da Lei nº 13.165/2015 foi formulada pelos Ministro Luís Roberto Barroso (que prolatou o voto divergente pela cassação de mandato que acabou prevalecendo), a qual foi acolhida pelos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Herman Benjamim e Admar Gonzaga. Desse modo, ainda que os Ministros possam votar em sentido contrário em deliberação específica sobre o tema, três dos sete Ministros titulares do TSE, e três dos onze Ministros do STF, mostraram-se simpáticos à tese da constitucionalidade da Lei nº 13.165/2015. Porém, a apreciação da questão ocorrerá pela composição efetiva do TSE quando de eventual decisão de cassação da chapa Dilma-Temer, e/ou pelo STF quando do julgamento da ADI n. 5.525 ou de eventual recurso contra aquela decisão, cabendo ao STF a decisão final.
É bem de ver, contudo, que, à luz do direito positivo em vigor, a controvérsia somente se coloca no caso de cassação de mandato pela Justiça Eleitoral. Não há dúvida de que nas demais hipóteses de dupla vacância ocorrida no último biênio de mandato – renúncia, condenação criminal transitada em julgado pelo STF e impeachment pelo Senado Federal – a eleição será indireta, exceto se for aprovada emenda constitucional que estabeleça eleição direta para a hipótese. Porém, seria constitucional emenda constitucional desse teor? Haveria, ou não, violação aos limites ao poder de reforma constitucional, particularmente às cláusulas pétreas? 
O Deputado Miro Teixeira apresentou a Proposta de Emenda Constitucional de n. 227/2016, que dá a seguinte redação ao § 1º do art. 81, da CF/88: “ocorrendo a vacância nos últimos seis meses do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”. Vê-se que a PEC se destina a incorporar na Constituição Federal o tratamento conferido ao tema pelo art. 4º da Lei n. 13.165/2015, de modo que, caso aprovada, quaisquer que sejam os seus motivos a eleição indireta somente ocorreria caso a vacância dos cargos de Presidente e de Vice-Presidente da República se verificasse nos últimos seis meses do mandato. Há algum vício de constitucionalidade nessa proposta de emenda constitucional?
A meu ver, não. A substituição da eleição indireta pela direta no período entre o início do terceiro ano do mandato e os seis últimos meses não viola qualquer cláusula pétrea, sendo, portanto, uma legítima opção do poder constituinte derivado. Porém, a aprovação da PEC n. 227/2016, em sua redação atual, não produziria qualquer efeito na hipótese de o Presidente Michel Temer deixar a Presidência da República no referido lapso de tempo. A razão é simples: nada dizendo a PEC sobre a observância, ou não, da regra da anualidade eleitoral inscrita no art. 16 da CF/88, ela seria aplicável, mediante simples e necessária interpretação sistemática da Constituição. Em outras palavras, se o art. 16 da CF/88 prevê que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, se o STF considera o vocábulo “lei” extensível às emendas constitucionais[4], e se a PEC n. 227/2016, ao alterar a forma de eleição do Presidente da República, evidentemente dispõe sobre “processo eleitoral”, não há dúvida acerca da aplicação da anualidade eleitoral. Desse modo, salvo se a PEC n. 227/2016 for aprovada com antecedência superior a um ano da referida eleição para o cargo de Presidente da República (o que, no caso em análise, é bastante improvável), ela não será aplicável ao respectivo pleito.
Subsiste, porém, a hipótese de a PEC, além de alterar a redação do § 1º do art. 81, da CF/88, estabelecer expressamente a inaplicabilidade do art. 16, de modo a determinar a sua incidência a eventual eleição ocorrida em menos de um ano da data da sua publicação. Haveria violação à cláusula pétrea?
A questão não é simples. Um primeiro passo para a construção da resposta consiste na compreensão da razão de ser do art. 16 da CF/88. Cuida-se de norma destinada a resguardar a observância dos princípios democrático e da segurança jurídica no processo eleitoral, pois, ao estabilizar as normas que o disciplinam, evita as incertezas inerentes às alterações das regras em meio ao processo eleitoral, e os consequentes riscos de favorecimentos ou perseguições a quem quer que seja. Dessa forma, o art. 16 é oponível às emendas constitucionais enquanto consista em instrumento necessário à proteção dos princípios democrático e da segurança jurídica no processo eleitoral, mas não per se. Em outras palavras, o valor da anualidade eleitoral é instrumental (enquanto meio relevante para a proteção dos princípios constitucionais da segurança jurídica e democrático), e não intrínseco. Assim, são esses princípios constitucionais, enquanto direitos materialmente fundamentais, que ostentam o status de cláusula pétrea, não a anualidade eleitoral em si.[5]
Na presente hipótese, é o próprio substrato axiológico da anualidade eleitoral que justifica a sua restrição pela emenda constitucional cogitada. Em um cenário peculiaríssimo de dupla vacância dos cargos de Presidente e de Vice-Presidente da República, associado à realização de investigação criminal sem precedentes na história brasileira, a opção tomada pelo Congresso Nacional de remeter ao povo a decisão sobre a eleição do novo Presidente da República não viola, antes promove, o princípio democrático. Além disso, a edição de uma regulamentação detalhada do processo eleitoral antes do seu início evitaria incertezas sobre as regras do jogo, conferindo-lhe, portanto, nível satisfatório de segurança jurídica. Não há, portanto, qualquer violação a cláusula pétrea, parecendo-me plenamente válida emenda constitucional que institua eleição direta para a dupla vacância com o afastamento da regra da anualidade eleitoral.
Em síntese, somente nos parece viável a realização de eleição direta nas seguintes hipóteses: à luz da ordem jurídica atual, caso o STF considere constitucional aplicação da Lei nº 13.165/2015 às eleições presidenciais e a dupla vacância ocorra por cassação de mandato por decisão da Justiça Eleitoral; ou, nas demais hipóteses de dupla vacância, caso seja aprovada emenda constitucional que, não apenas altere o art. 81, § 1º, da CF/88, como expressamente exclua a aplicação da anualidade eleitoral (art. 16, da CF/88). A contrario sensu, se a dupla vacância for gerada por renúncia, condenação criminal transitada em julgado ou condenação por impeachment, sob a égide da ordem constitucional atual ou mesmo que seja aprovada emenda que preveja eleição direta, sem, contudo, excepcionar a aplicação da anualidade eleitoral, a eleição deverá ser indireta.

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