O valor da multa deve ser limitado ao da obrigação de direito material? Por Venceslau Tavares Costa Filho e Roberto Paulino de Albuquerque Júnior

O preceito cominatório (ou astreintes) consiste em multa judicialmente fixada de modo a estabelecer uma constrição em face do devedor de modo a fazê-lo cumprir determinada obrigação de dar, fazer ou de não fazer. O preceito cominatório, contudo, não se constitui em uma medida substitutiva ao cumprimento da obrigação.
A eventual condenação e pagamento da quantia fixada a título de astreintes não eximem o devedor do cumprimento da obrigação específica, ou do dever de indenizar em virtude da impossibilidade de cumprimento da prestação.[1] Nos termos do art. 500, o CPC de 2015 admite a cumulação do preceito cominatório (ou multa judicial) com a indenização por perdas e danos.[2] O preceito cominatório atua, portanto, como “meio de pressão” em face do devedor para que cumpra a obrigação; e não com o fito de compensar pelos danos causados pela inexecução imputável ao devedor.[3]
O preceito cominatório surge como um destacado expediente de efetividade na realização do direito material; e, quando imposto adequadamente, pode causar pressão suficiente a compelir o devedor a cumprir a obrigação in natura, alcançando o seu desiderato.
Trata-se, pois, de expediente de caráter pecuniário voltado para a efetivação de direitos, evidenciando o necessário diálogo entre direito e economia, como enfatizado por Rodrigo Xavier Leonardo: “O econômico e o jurídico não podem ser rigidamente separados, sobretudo na crescente medida em que o direito não mais se limita a disciplinar as regras do jogo de troca, passando a eleger e vincular os jogadores a objetivos previamente estabelecidos”.[4]
A solução adotada na França quanto às astreintes foi a de reverter todo o valor da multa ao credor, o que acarretou forte influência no posicionamento de Juizes e doutrinadores no Brasil pelo caráter indenizatório do instituto.
Nesta toada, o parágrafo 2º do artigo 237 do CPC 2015 prescreve que “o valor da multa será devido ao exequente”. Contudo, o instituto do preceito cominatório assumiu uma feição própria no Brasil. Mas, pouca atenção foi dada às diferenças entre o direito brasileiro e o direito francês nesta área, o que fez surgir discussões. Na França, chegou-se a confundir as astreintes com perdas e danos, visto que apesar de fixadas na liquidação da sentença o Juiz deveria limitar a execução ao valor real do dano[5], de forma que só veio aumentar os equívocos. Apesar disso, mesmo na França, o caráter privado das astreintes vem sendo criticado pelos doutrinadores, tendo em vista a perda da eficácia do instituto, diante de tal tratamento.
O CPC 2015, entretanto, parece ter reforçado o caráter processual da multa periódica. A começar pelo fato de que a imposição da multa periódica independerá de pedido do credor, porquanto, poderá o Juiz cominar a multa ex-officio, conforme preceitua o caput do art. 536 do novo Código. Trata-se de regra coerente com o caráter processual e, portanto, público da multa periódica, que se justifica pelo fato de que: “Muito mais que o credor, tem o Estado interesse em ver realmente eficazes suas decisões”.[6] Condicionar a aplicação da multa ao pedido do credor seria possibilitar às partes em negócio jurídico vedarem a sua aplicação[7]; o que não é possível.
Em virtude disto, pode-se afirmar que houve um deslocamento “do interesse do autor para a responsabilidade do juiz assegurar a execução específica ou o equivalente prático, e é isso o que se quer preservar”.[8] Assim, a fixação da multa em comento “independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução”. O Código de Processo Civil de 1973 não previa o momento de exigibilidade, mas apenas o momento de incidência do preceito cominatório. Por sua vez, o CPC 2015 permite a execução provisória da multa periódica, que deverá ser depositada em juízo (art. 537, § 3º). Conforme explicaram os elaboradores na Exposição de Motivos do Projeto do Senado:
Como regra, o depósito da quantia relativa às multas, cuja função processual seja levar ao cumprimento da obrigação in natura, ou da ordem judicial, deve ser feito logo que estas incidem. Não podem, todavia, ser levantadas, a não ser quando haja o trânsito em julgado ou quando esteja pendente agravo de decisão denegatória de seguimento a recurso especial ou extraordinário.
O preceito cominatório, portanto, será dotado de eficácia imediata, não obstante a possibilidade de reforma da decisão que o prescreveu. Quando fixado liminarmente, “é desta data que se inicia a sua incidência; ao passo que, se fixadas na sentença, fluem a partir do prazo estabelecido na decisão transitada em julgado”.[9]
Disto se extrai que a multa judicial constitui-se em uma obrigação autônoma, e não mais pode ser reputada uma obrigação acessória à obrigação de direito material. Assim, enquanto a indenização deverá ser fixada em valor equivalente ao da prestação que se impossibilitou, nada impede que o preceito cominatório alcance valor superior ao da obrigação executada. Na práxis do CPC 1973, o preceito cominatório era tratado como uma obrigação acessória à obrigação de direito material, de modo que o seu valor não poderia ultrapassar o valor da obrigação exeqüenda, sob pena de enriquecimento sem causa. Caso o valor da obrigação fosse inestimável, deveria o Juiz estabelecer o montante que será devido ao exeqüente.
No CPC 2015, o preceito cominatório ganha relativa autonomia, conferindo-se ao juízo o poder de modificar o valor e a periodicidade da multa, caso a considere insuficiente ou excessiva (art. 537, § 1º, I). No então Projeto do Senado, tal autonomia restava mais evidente, porquanto existisse a previsão expressa de que que o seu valor “com o decurso do tempo pode ultrapassar aquele correspondente ao da obrigação principal. Nessa hipótese o que sobejar pertence à unidade da federação por onde tramita o processo. Destarte, tratando-se de ação movida contra o Poder Público as astreintes são destinadas à parte adversa”.[10]
Todavia, a previsão de reversão à Fazenda Pública do valor da multa que ultrapassar o valor da obrigação exeqüenda foi suprimida do texto final.
O legislador, contudo, não vedou expressamente a possibilidade de fixação das astreintes em montante superior ao da obrigação exequenda. Como o legislador, por outro lado, previu a possibilidade de cumulação da multa com a indenização; parece ser mais coerente com a proposta de efetividade da execução a possibilidade de majoração da multa em patamar superior ao valor da obrigação de direito material, desde que se observem os pressupostos de razoabilidade e proporcionalidade.
O valor da multa, portanto, deverá ser revertido ao exeqüente; e não à Fazenda Pública. Talvez, a influência da doutrina francesa quanto as astreintes explique a sua tímida utilização na práxis judicial brasileira, em atitude de condescendência com o devedor. Neste sentido, a Professora Vera Jacob de Fradera, figura de proa na seara do Direito Comparado no Brasil e no exterior, assevera que: "a França e os países que adotaram o sistema do Código Francês ainda não atingiram, em matéria de direito obrigacional, o nível do direito alemão, do direito italiano e do norte-americano.
Existe uma inclinação para ser condescendente para com o devedor faltoso e possibilitar-lhe a oportunidade de sanar sua ‘quebra’ do contrato. Parece que essa tendência prepondera sobre a necessidade de proteger o credor contra a incerteza”.[11]
Entretanto, nem sempre o preceito cominatório será o expediente adequado para a realização das obrigações de fazer. Na obrigação de fazer, a prestação pode consistir em manifestação de vontade para a obtenção de um determinado efeito jurídico. Consentir é facere, cujo inadimplemento historicamente desafiou as técnicas de cumprimento forçado e alcançou elevado grau de sofisticação e efetividade a partir da sub-rogação da vontade da parte pela sentença judicial.
A decisão não condena o devedor a manifestar a vontade, sujeitando-se a execução posterior, nem comina multa para que ele o faça; a decisão já realiza a satisfação da dívida, considerando emitida a declaração como se tivesse partido do próprio devedor. A imposição de astreintes seria “inútil e redundante”, porquanto o pronunciamento judicial já substitui a manifestação de vontade. [12]
Do direito de crédito à declaração surge a pretensão, emprestando-lhe a exigibilidade; exercida a pretensão e não satisfeita a dívida voluntariamente, irradia-se a ação material, que é indiscutivelmente executiva.
Neste sentido, a redação do art. 501 é mais precisa que a do 466-A do CPC revogado (que repetiu a regra do antigo art. 641, a seu tempo revogado), que ainda fazia referência a condenação.[13]


Comentários