Execução fiscal: quando o sócio paga a conta com o Fisco, por Ulisses Sousa

A imprensa noticiou, recentemente, que o Tribunal Regional Federal da  Região irá julgar se a desconsideração da personalidade jurídica – procedimento previsto no CPC/2015 – deve ser aplicada nas execuções fiscais. Em vigor há menos de um ano, o referido diploma processual já sofreu diversos ataques por parte do Judiciário que, sistematicamente, tem se recusado a aplicar vários dos novos institutos previstos.
Sobre o tema em debate é importante destacar que, em dois seminários promovidos pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), foram aprovados enunciados (6 e 53) que apontam uma tendência da magistratura nacional no sentido de reconhecer a inaplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos processos de execução fiscal.
O tema em debate no processo envolve a diferenciação existente entre dívida e responsabilidade. Devedor é quem é apontado pela lei como sujeito passivo da relação obrigacional e que, diante do não pagamento da dívida, pode ter seus bens alcançados nas ações propostas visando a cobrança do crédito.
É sabido que a pessoa jurídica tem existência distinta das pessoas físicas que a compõem. Por força do princípio da autonomia patrimonial, como regra não se permite a confusão entre seus bens e aqueles de seus sócios. Porém, em algumas hipóteses a lei autoriza a chamada desconsideração da personalidade jurídica.
O art. 789, do CPC, afirma com clareza que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Contudo, a o art. 790, do CPC, também prevê a possibilidade da sujeição de bens de outras pessoas – que não são devedoras – mas que podem ser consideradas patrimonialmente responsáveis pelo pagamento da dívida, em casos de desconsideração da personalidade jurídica.
O afastamento da garantia de independência patrimonial, para atingir a pessoa dos sócios, exige a presença de pressuposto específico do abuso da personalidade jurídica, com a finalidade de lesão a direito de terceiro, infração da lei ou descumprimento de contrato. É medida extrema que só pode ser adotada nas hipóteses indicadas na lei.
Em matéria tributária, a desconsideração da personalidade jurídica, com a consequente invasão no patrimônio dos sócios para fins de satisfação de débitos da sociedade empresária, é medida de caráter excepcional, sendo apenas admitida nas hipóteses expressamente previstas no art. 135 do CTN ou nos casos de dissolução irregular da empresa, que nada mais é que infração à lei. Não decorre unicamente da falta de pagamento do tributo devido. Contudo, em vários casos o chamado redirecionamento da execução para a pessoa dos sócios tem sido realizado de forma indevida, quase automática.
A responsabilidade pessoal dos sócios, por dívidas tributárias da sociedade, é apenas uma das hipóteses em que a lei autoriza a desconsideração da personalidade jurídica. Estamos tratando de incidente de natureza processual, que não possuía regramento antes da vigência do novo código.
A lei de execuções fiscais, que trata da cobrança de dívidas tributárias, não contém qualquer regramento sobre o tema. O Código Tributário Nacional também não regula tal procedimento para obtenção da desconsideração da personalidade jurídica. Tal vazio legislativo atrai a incidência das regras contidas no CPC, por força das disposições contidas no artigo 15 do código referido e no artigo 1º da Lei de Execuções Fiscais. Ainda mais quando se constata a inexistência de qualquer incompatibilidade entre as normas contidas no CPC e aquelas que regem o processo de execução fiscal.
A Fazenda Pública, se pretender obter a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade empresária, deverá formular expressamente tal pedido e demonstrar a presença dos requisitos previstos na lei para que tal pleito seja deferido. Ao sócio deverá ser conferida a oportunidade para se manifestar no processo (art. 135 do CPC) e produzir provas visando obter a rejeição do pedido do fisco.
Redirecionar a execução fiscal contra os sócios da pessoa jurídica exige obediência ao procedimento previsto nos artigos 133 a 137 do CPC. Admitir o contrário, como pretende o Fisco, implica em esvaziar, por razões de conveniência do Judiciário, o conteúdo dos referidos dispositivos legais. Implicará em violação da garantia do contraditório, garantido constitucionalmente e extremamente valorizado pelo novo código.
Certamente, pesará na decisão que o Judiciário irá tomar sobre o tema a preocupação com o aumento de atos e de incidentes processuais nas execuções fiscais. Aliás, o gigantesco número de ações de execução fiscal em tramitação é um dos principais problemas do Judiciário brasileiro, contribuindo de forma significativa para o crescimento da morosidade processual.
A tese jurídica que vier a ser adotada pelo TRF-3 será aplicável a todos os processos que envolvam a mesma discussão e que tramitem na área de jurisdição do referido tribunal. Tal entendimento poderá ser estendido para todo o território nacional se, posteriormente, vier a ser confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recurso especial. Por isso, a importância do acompanhamento de tal julgamento. Não se pode permitir que mais uma garantia processual do contribuinte seja afastada por razões de política judiciária.
A preservação da autonomia patrimonial – e a proteção do patrimônio dos sócios, que não deve ser alcançado fora das hipóteses legais – é medida necessária para o desenvolvimento da economia. Negar-se ao cidadão o direito de previamente defender-se contra atos estatais que visam alcançar o patrimônio pessoal do empresário para pagamento de dívidas tributárias certamente será mais um desestimulo ao desenvolvimento da atividade empresarial no Brasil.

Comentários