Contrarrazões ou reconvenção recursal? Por Zulmar Duarte

A apelação ganhou musculatura no atual Código de Processo Civil, pois ampliou seu raio para abranger o reexame tanto de decisões interlocutórias não imediatamente recorríveis (artigo 1.009, § 1o, c/c artigo 1.015), como da sentença. Na sistemática atual, nem toda decisão interlocutória será imediatamente recorrível por meio do agravo de instrumento, mas somente aquelas listadas no artigo 1.015 do Código[2].
Assim, as demais decisões interlocutórias, não imediatamente recorríveis, já que alheias ao rol do artigo 1.015, passam a ser examinadas no âmbito da apelação e de suas contrarrazões: “As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões.” (artigo 1.009, § 1o, do CPC)[3].
Dito isso, estamos a tratar propriamente de quais questões podem ser apresentadas pelo recorrido em suas contrarrazões (artigo 1.009, § 1o), sem exigir a interposição de recurso na forma própria (principal ou adesivo), e aquelas que dependem necessariamente da interposição de recurso na via própria (principal ou adesiva artigo 997)[4].
A rigor, não serão conhecidas questões apresentadas em sede de contrarrazões quando as mesmas já pudessem animar recurso principal ou adesivo, pelo que se antecipa a resposta a pergunta formulada no título: o artigo 1.009, § 1o, do CPC não institui espécie de reconvenção recursal.
A partir disso, diversas são as dinâmicas que a apelação pode assumir. Por exemplo, o vencido pode apelar da sentença que lhe foi desfavorável, como também da interlocutória que alterou o valor da causa (artigo 292, § 3o). Apelar somente da interlocutória que alterou o valor da causa, com reflexo na sua sucumbência, deixando sem ataque a sentença de improcedência do seu pedido. O próprio vencedor da demanda poderá apresentar apelação para debater exclusivamente a multa pelo não comparecimento na audiência de conciliação e/ou mediação (artigo 334, § 8o)[5]. O vencedor da causa poderá apelar contra a interlocutória que deferiu a justiça gratuita ao vencido (só cabe agravo na hipótese inversa — artigos 101 e 1.015, inciso V). O vencido poderá apelar de todas as interlocutórias proferidas no processo, sobre as quais não cabia agravo de instrumento, e da sentença desfavorável.
Pois bem, o limite para apelação das interlocutórias não recorríveis é a existência do interesse recursal (artigo 995). O interesse está conectado à obtenção de uma mais valia com o recurso. O vencedor da demanda tem interesse e pode recorrer da multa aplicada pelo seu não comparecimento na audiência. O vencedor tem interesse para recorrer da decisão sobre o valor da causa, na medida em que ela repercute sobre os valores que lhe são devidos a título de sucumbência. Esse vencedor tem interesse no recurso contra decisão que deferiu justiça gratuita para a outra parte, objetivando emprestar exigibilidade à condenação das despesas processuais e honorários advocatícios. Porém, o vencedor não tem interesse em recorrer da decisão que indeferiu seu pedido prova, já que o provimento do recurso, sob tal aspecto, não alteraria sua posição jurídica de vencedor, nem agregaria qualquer mais valia para ele. Também lhe falece interesse para recorrer da interlocutória que não aplicou os efeitos da revelia ao réu revel, já que o provimento do recurso, para aplicação da veracidade dos fatos em desfavor do réu, não melhoraria em nada sua esfera jurídica.
Exatamente é a existência de interesse atual ou subordinado que marca o limite de atuação do artigo 1.009, § 1o, do CPC. O interesse processual é o divisor de águas entre a utilização das contrarrazões para trazer o debate de interlocutórias e a apresentação de recurso principal ou adesivo (artigo 997).
O artigo 1.009, § 1o, do CPC embute nas contrarrazões da apelação, mediante técnica de deformalização, recurso duplamente subordinado, espécie de recurso adesivo, mas que se circunscreve ao debate de questões nas quais o interesse recursal do recorrido só surge com o provimento do recurso de apelação da outra parte (recurso subordinado, não independente)[6].
Sempre que o vencedor tiver um interesse jurídico imediato (independente), presente ao tempo da sentença, ele deverá interpor recurso principal ou adesivar o da parte contrária (artigo 997). Não poderá utilizar para tal fim as contrarrazões apresentadas ao recurso da outra parte. Isso porque, nossa apelação persiste com a característica de recurso unilateral. Aliás, a instituição do recurso adesivo é a demonstração cabal de que a apelação não é recurso comum às partes, aplicando-se a regra da personalidade dos recursos (artigos 996 e 1.013), com a consequente vedação linear da reformatio in peius.
Raciocínio diverso, permitindo todo e qualquer debate de interlocutórias no âmbito das contrarrazões, com a devida vênia, é desprezar a existência do recurso adesivo (o mesmo que proscrevê-lo). Sempre que a parte for sucumbente (interesse independente e atual), cabe a ela interpor o recurso principal ou adesivar o recurso da outra parte. Só assim poderá obter o reexame da questão jurídica na qual foi vencida.
É a sucumbência conjectural que justifica e delimita o raio de atuação do artigo 1.009, § 1o, do Código. A parte apresentará nas contrarrazões o debate de interlocutórias nas quais foi vencida, mas que atualmente não diminuem sua posição jurídica, para que as mesmas sejam revisitadas na hipótese de ser acolhido o recurso da parte contrária. Em tais situações, a conjectura se transforma em realidade, pelo que necessário examinar o acerto da decisão interlocutória antes prolatada.
O ordenamento ciente da impossibilidade de ataque imediato de algumas interlocutórias e da eventual ausência de interesse recursal para impugnação imediata via recurso de apelação ou adesivo, abriu a possibilidade do seu ataque, de forma eventual, em sede de contrarrazões (artigo 1.009, § 1o).
Diferentemente do recurso adesivo que é subordinado exclusivamente à admissibilidade do recurso principal, as contrarrazões ativas são duplamente subordinadas: pressupõe o conhecimento e o provimento do recurso da outra parte, fazendo surgir o interesse na análise da interlocutória apresentada nas contrarrazões. Exemplificando, a parte postula a produção de determina prova pericial, sendo que o juiz nega sua realização em decisão interlocutória não passível de ser submetida ao agravo de instrumento. Tal parte se sagra vencedora do processo. Nesse momento, a derrota na interlocutória não diminui juridicamente sua posição, nem retira a intensidade de qualquer eficácia da sentença que lhe foi favorável. Logo, não há interesse recursal. Interposto o recurso pela outra parte para discutir o acerto da sentença, a parte vencedora pode sair perdedora na fase de apelação, pelo que pode ser relevante a rediscussão da interlocutória sobre o deferimento de prova, na perspectiva do provimento do recurso. Ou seja, na conjectura de uma sucumbência futura, a parte traz o debate do tema em sede de contrarrazões, na medida em que autorizada pelo artigo 1.009, § 1o. Observe-se, tal tema não pode animar o recurso principal ou adesivo, tendo em vista que estes devem apresentar interesse recursal atual de todo inexistente no exemplo mencionado, já que a perda na interlocutória não diminui ou coarcta a vitória do recorrido. Só com o conhecimento e julgamento do recurso de apelação, a derrota na decisão interlocutória passou a ser prejudicial ao antes vencedor e agora vencido. Mais uma hipótese: o autor pede a decretação da revelia do réu, com a presunção da veracidade dos fatos afirmados, haja vista que tardia a contestação apresentada (artigo 344). O juiz considera oportuna a apresentação da contestação, afastando a revelia. Não cabe agravo de instrumento (artigo 1.015). Posteriormente, o autor se sagra vencedor da demanda. Logo, entrementes, não tem interesse jurídico para o recurso principal ou adesivo sobre o tema da revelia, na medida em que tal decisão interlocutória desfavorável não diminui atualmente sua posição jurídica. Ele não tem interesse atual. Nada obstante, provido o recurso de apelação interposto pelo réu, importante ao autor o debate sobre a revelia e seus efeitos. Assim, na conjectura da sucumbência posterior, a parte pode aviar esse tema em suas contrarrazões, como permite o artigo 1.009, § 1o. Finalmente, o juiz em interlocutória decreta a ilegalidade e determina o desentranhamento da prova pela ilegalidade na sua produção. Inviável a interposição do recurso de agravo de instrumento. A parte que tinha interesse na prova se sagra como vencedora, razão porque não tem interesse para recorrer no particular. Interposto o recurso pela outra parte, poderá apresentar o tema da validade da prova em sede de contrarrazões, uma vez que, em eventual provimento do recurso de apelação, pode ter interesse no exame da prova antes afastada por ilegalidade.
Portanto, não temos por correta a visão que tem nessas contrarrazões a possibilidade de ataque indiscriminado por parte do recorrido (quase como uma reconvenção recursal), autonomizando-se inclusive frente ao recurso de apelação. Essa não é a melhor construção de direito positivo, considerada a regra geral da vedação da reformatio in peius, o caráter unilateral da apelação e a persistência do recurso adesivo no sistema recursal.
Nada obstante, temos por viável a aplicação da fungibilidade recursal no particular, na hipótese de a parte apresentar a impugnação da interlocutória nas contrarrazões, mas cujo interesse não é subordinado e sim imediato. Como dito, deveria a parte ter apresentado recurso principal para o ataque de tal interlocutória ou, pelo menos, adesivado o recurso da parte contrária (artigo 997). Todavia, como o prazo das contrarrazões é idêntico ao do recurso adesivo, possível permitir a parte adaptar seu recurso ao adesivo, observando os requisitos do artigo 997 do Código de Processo Civil.
Em sendo assim, sintetizando o exposto, notadamente sobre o âmbito das contrarrazões ativas frente ao recurso principal ou adesivo, temos:
a) sempre que ao tempo da sentença já se apresente interesse para recorrer, a parte deverá interpor seu recurso, na via principal ou adesiva, não sendo viável suscitar a questão em sede de contrarrazões;
b) quando o interesse somente surgir da potencialidade do provimento do recurso de apelação (interesse subordinado), a parte apresentará a questão subordinada nas contrarrazões, pois sequer existe interesse atual para interpor recurso na via principal ou adesiva;
c) viável ao tribunal, em respeito à preponderância do exame do mérito[7], aplicar a fungibilidade recursal, examinando o tema recursal impropriamente constante das contrarrazões, promovendo as adaptações de estilo (artigo 997 do CPC).

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[1] O tema é aprofundado em: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Execução e recursos: comentários ao CPC de 2015. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017 (no prelo).

[2] Sobre a taxatividade das hipóteses de utilização do recurso de agravo de instrumento: ROQUE, André Vasconcelos; DELLORE, Luiz; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; MACHADO, Marcelo Pacheco; DUARTE, Zulmar. Hipóteses de agravo de instrumento no novo CPC: os efeitos colaterais da interpretação extensiva.  Disponível: https://jota.info/colunas/novo-cpc/hipoteses-de-agravo-de-instrumento-no-novo-cpc-os-efeitos-colaterais-da-interpretacao-extensiva-04042016 Acesso: 2-abr-17.
[3] Tal mudança alterou significativamente o sistema preclusivo do Código. A preclusão sobre questões persiste no sistema. As partes não têm liberdade incondicionada para suscitar questões a qualquer tempo, tendo em vista que estão sujeitas ao sistema de preclusões seriado, como demonstram os artigos 63, § 4o, 104, 209, § 2o, 278, 293 e 507 do Código. Isto é, a ausência de apresentação oportuna, a tempo e modo, de tais questões irá cobri-las pela preclusão temporal. Nada obstante, devidamente apontadas tais questões, o desacordo com a solução dada, não sendo caso de agravo de instrumento (artigo 1.015), fica devolvido ao recurso de apelação (artigo 1.009). O sistema de preclusão passa a se realizar de duas maneiras: imediatamente, para os temas não provocados; elasticamente para os que tenham sido devidamente apresentados (preclusão elástica — DUARTE, Zulmar. Elasticidade na preclusão e centro de gravidade. Disponível: https://jota.info/colunas/novo-cpc/elasticidade-na-preclusao-e-o-centro-de-gravidade-do-processo-29062015 Acesso: 2-abr-2017).
[4] O recurso adesivo não é outro senão o próprio recurso principal interposto fora do prazo inicialmente conferido e, por isso, subordinado ao recurso da outra parte. Não há a espécie “recurso adesivo”. O que se tem é o recurso de apelação, especial ou extraordinário interposto de forma adesiva. O Código permite que a parte interponha recurso de maneira independente. A parte que inicialmente tinha se contentado com a decisão, ou que por outra razão não interpôs o recurso, pode agora, frente ao recurso da parte contrária, interpor o recurso na forma adesiva, o qual, entretanto, fica subordinado ao recurso da parte ex adverso.
[5] Como bem chamou a atenção: LIBARDONI, Carolina Uzeda. Apelação exclusivamente contra decisão interlocutória: a ausência injustificada à audiência de conciliação ou mediação e o recurso contra a multa arbitrada. Disponível: http://portalprocessual.com/apelacao-exclusivamente-contra-decisao-interlocutoria-a-ausencia-injustificada-a-audiencia-de-conciliacao-ou-mediacao-e-o-recurso-contra-a-multa-arbitrada/ Acesso: 2-abr-17).
[6] Esse é o âmbito de atuação dessas contrarrazões ativas, que nada mais são do que um recurso subordinado inserido em tópico preliminar das contrarrazões (deformalizado). Em sentido semelhante: SÁ, Renato Montans. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2017 (no prelo). Da mesma forma, mas com alguma variação sobre o cabimento de interlocutórias na apelação: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13. ed. Salvador: JusPodivium, 2016.
[7] DUARTE, Zulmar. Preponderância do Mérito no Novo CPC. Disponível: http://genjuridico.com.br/2015/01/23/preponderancia-do-merito-no-novo-cpc/ Acesso: 2-abr-2017.

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