Capítulo não agravável da decisão apreciado pelo tribunal, por Marco Aurélio Ventura Peixoto e Renata Cortez Vieira Peixoto

Uma das espécies recursais mais criticadas no antigo diploma processual brasileiro era o agravo retido. Visto exclusivamente como meio de evitar a preclusão das decisões interlocutórias que não justificassem o uso do agravo de instrumento, seu uso sempre foi questionado por boa parte dos advogados brasileiros. As razões de sua pouca aceitação eram simples. Diferentemente do agravo de instrumento, que viabilizava sua interposição diretamente no tribunal, permitia o requerimento de imediata atribuição de efeito suspensivo (inclusive ativo) e propiciava, como regra, um julgamento não muito distante da prolação da decisão recorrida, o agravo retido era interposto no juízo prolator da decisão, não permitia a atribuição de efeito suspensivo e só era julgado quando do julgamento de eventual recurso de apelação, quando e se o agravante lembrasse de reiterar, preliminarmente na apelação ou nas contrarrazões respectivas, o seu desejo de ver o recurso julgado.
Nas discussões atinentes à edição do CPC/2015, a opção do legislador foi clara no sentido de fazer com que o agravo de instrumento tivesse um rol taxativo de hipóteses de cabimento[3], motivo pelo qual não foi reproduzida a situação genérica contida no caput do revogado art. 522 do CPC/73 (decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação). Em consequência, eliminou-se a tão criticada e indesejada espécie agravo retido, ao se prescrever, no art. 1009, §1º, que “as questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões”. Isso resultou, pois, no fim da preclusão daquelas decisões interlocutórias que não comportam agravo de instrumento.
Inobstante as previsões acima referidas, não se deve concluir que as decisões interlocutórias não agraváveis são irrecorríveis. É certo que não há, contra elas, recurso em separado, autônomo e de interposição imediata. Entrementes, as questões nelas decididas poderão ser impugnadas na apelação[4]. A recorribilidade resta, portanto, evidente: o recurso de apelação, além de cabível contra as sentenças, passou a ser típico também relativamente às decisões interlocutórias não agraváveis.
É certo que o legislador não foi capaz de inserir todas as potenciais situações que demandariam o agravo de instrumento, a exemplo das decisões sobre emenda da petição inicial e sobre incompetência do juízo. A doutrina tem entendido que o rol do art. 1.015 admite interpretação extensiva, de modo que seria aplicável o inciso III, que trata da rejeição da alegação de convenção de arbitragem, às hipóteses de incompetência do juízo. O principal argumento é o de que as decisões sobre a convenção de arbitragem relacionam-se à competência e, portanto, assemelham-se às decisões sobre incompetência do juízo (ambas visam afastar o juízo da causa). Desse modo, devem ter o mesmo tratamento, em razão do princípio da igualdade[5].
Além da possibilidade de interpretação extensiva, não haverá outra saída aos advogados, diante de situações que não comportem o agravo de instrumento, e sem alternativas para esperar para recorrer de decisões tão somente quando da interposição do recurso de apelação ou de suas contrarrazões, senão o uso do remédio constitucional do mandado de segurança[6], a exemplo do que já ocorre, de longa data, nos processos trabalhistas. Não há dúvidas de que a retirada da recorribilidade imediata das decisões interlocutórias que não se enquadrem no rol do art. 1015 irá representar um novo ponto de análise em relação ao cabimento do mandado de segurança contra ato judicial.
Assim, deve o impetrante, para o manejo do remédio, demonstrar a presença dos demais requisitos, notadamente sustentando que a decisão é teratológica e que houve violação a direito líquido e certo[7]. Indubitavelmente, sempre houve e continua havendo, por parte dos pátrios tribunais, forte rejeição ao uso do mandado de segurança para fazer as vezes de recurso, diante do seu não cabimento, previsto expressamente na Lei n.º 12.016/2009 (art. 5º, II). O que se imaginava é que os tribunais, começando a rejeitar o uso do mandado de segurança, começassem a desenvolver interpretações extensivas ou ampliativas do rol de cabimento do agravo de instrumento, para justificar o seu uso em situações que não estão elencadas no art. 1015, mas a temática tem se revelado controversa, verificando-se, na prática, decisões em ambos os sentidos (ora admitindo, ora rejeitando a interpretação extensiva).
Outra problemática intrigante – que se busca analisar no presente texto – diz respeito a uma pretensa ampliação do efeito devolutivo do agravo de instrumento quanto à extensão, na hipótese de uma mesma decisão conter matérias agraváveis e não agraváveis: a parte prejudicada, nesse caso, pode interpor o agravo com fundamento numa das hipóteses do art. 1.015, relativamente ao capítulo da decisão agravável, e pleitear também a reforma/anulação da decisão no tocante ao capítulo não agravável? Dito de outro modo: a admissão de um agravo de instrumento, pelo fato de um dos capítulos da decisão recorrida se encaixar no rol do art. 1.015, autoriza a análise de questões outras, também decididas, mas que não são agraváveis?
Pensamos que não. No entanto, diverso foi o entendimento recente do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, em ação que envolvia o restabelecimento do auxílio-doença decorrente de acidente de trabalho. Na decisão interlocutória, houve dispensa da produção de prova pericial e da audiência de instrução e julgamento, ao tempo em que se concedeu a tutela provisória de urgência pleiteada pelo autor. Assim, no agravo de instrumento interposto pelo INSS, atacou-se não apenas a concessão da tutela de urgência, mas também a questão da dispensa da prova pericial e da instrução e julgamento. No acórdão, apesar de reconhecer que a questão da dispensa da prova pericial escapa às previsões do art. 1.015 do CPC/2015, o fato de se admitir o agravo pelo inciso I do art. 1.015 (concessão de tutela provisória) estaria a autorizar o conhecimento do inconformismo também quanto à dispensa da produção de prova, como forma de prestigiar a economia e a celeridade processual e para sanar o cerceamento do direito de defesa do réu. Os principais fundamentos do acórdão referido acham-se abaixo transcritos:
“(…) 4. No caso ora posto, a tutela de urgência foi concedida para determinar ao INSS o restabelecimento do auxílio-doença acidentário, cessado indevidamente após perícia da autarquia que concluiu pela recuperação da capacidade laborativa do segurado, dispensando, o magistrado, a realização da instrução probatória com a realização da perícia médica judicial.
  1. O INSS, de proêmio, insurgiu-se contra o cerceamento de defesa do magistrado, alegando que a medida de urgência fora concedida dispensando a perícia médico-judicial, tão somente, com base em documentos particulares apresentados pelo autor, afrontando o princípio do Devido Processo Legal. Quanto a esse argumento, cabe analisar se é possível conhecer da referida irresignação em sede de instrumental, conforme disposto no art. 1.015 do NCPC, pois a admissibilidade acima realizada por esta relatoria referiu-se ao mérito da concessão da tutela de urgência no que concerne à reativação do auxílio-doença acidentário. A pretensão recursal levantada em preliminar para alterar a decisão guerreada no tocante à dispensa da realização da prova pericial é de natureza diversa.
  2. Num primeiro momento, ao olhar para a determinação legal prevista no art. 1.015 do CPC/2015, veremos ser inadmissível o agravo de instrumento interposto contra a dispensa da realização da prova pericial, pois as referidas matérias não constam do rol taxativo do referido artigo. Contudo, considerando que a dispensa em questão está inserida em decisão que também concedeu a tutela provisória de urgência para reativação do auxílio-doença acidentário ao segurado, matéria esta passível de impugnação através desta via recursal (inciso V do art. 1.015), afigura-se possível o conhecimento do inconformismo neste particular.
  3. Em que pese a nova legislação adjetiva civil, em seu art. 1.015, ter limitado as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, tornando certas matérias irrecorríveis por meio do recurso instrumental, com o intuito de contribuir com a celeridade processual, estas questões não estarão preclusas, tendo em vista a regra prevista no art. 1009, em seus §§ 1º e 2º, que estabelece deverem ser elas suscitadas em sede preliminar de eventual recurso de apelação e suas respectivas contrarrazões. Assim sendo, se o presente instrumental tivesse sido interposto tão somente em face de decisão que houvesse dispensado a prova pericial, estaria fadado à inadmissibilidade. No entanto, trazida a referida matéria a este e. Tribunal por força de agravo de instrumento, que combate decisão concessiva de tutela provisória de urgência, questão prevista expressamente no art. 1.015, a análise por esta relatoria da questão acessória, não prevista no rol exaustivo, faz-se mister por tratar de cerceamento de defesa, prestigiando a economia e a celeridade processual. (…)
  4. Agravo de Instrumento Provido, à unanimidade, tornando sem efeito a reativação do auxílio-doença acidentário e determinando a instrução e julgamento do processo com a realização da prova pericial necessária, no caso, para a solução definitiva da demanda”. (Agravo de Instrumento nº 0448835-5 – NPU nº. 0009385-65.2016.8.17.0000, Relator Desembargador Erik de Sousa Dantas Simões, Publicação 02/01/2017) (grifo nosso)

Não nos pareceu acertado o entendimento do TJPE. Não pretendeu o legislador gerar essa amplitude ao efeito devolutivo do agravo de instrumento quanto à extensão. Se o agravo foi conhecido porque um dos capítulos era, de fato, impugnável por aquela via, deveria ter a análise daquele colegiado se restringido à questão da tutela provisória. Não há qualquer dispositivo autorizador no Código que permita o conhecimento do recurso em relação à dispensa de realização de provas ou da instrução e julgamento, razão pela qual o capítulo da decisão que não for impugnável pela via do agravo de instrumento deveria ser objeto de insurgência tão somente quando da interposição do recurso de apelação ou das respectivas contrarrazões ao recuso de apelação.
No julgado sob análise, o demandante trouxe, com o pedido, documentos particulares que convenceram o magistrado de primeiro grau acerca da probabilidade de seu direito, motivo pelo qual foi deferida a tutela antecipada, determinando-se o restabelecimento do auxílio-doença acidentário. Caso os documentos do autor não fossem suficientes para provar os requisitos da tutela de urgência, seria o caso de indeferimento do pedido.
O pedido do autor era de concessão da tutela de urgência antecipada com base nos documentos por ele apresentados, em contraposição à perícia realizada administrativamente pelo INSS. O magistrado, ao decidir, deferiu a tutela provisória, ao tempo em que dispensou a realização de prova pericial judicial e a instrução e julgamento. Esses temas compõem capítulos distintos de uma mesma decisão: um deles é agravável, o outro, não.
Desse modo, sendo apenas o capítulo da decisão sobre a tutela provisória agravável (art. 1.015, I), o tribunal deveria se restringir a analisar se os documentos particulares apresentados pelo autor eram suficientes para contrariar o resultado da perícia levada a efeito administrativamente pelo INSS e, em consequência, se eram hábeis a demonstrar a probabilidade do direito do requerente.
Não caberia ao tribunal analisar o capítulo da decisão que dispensou a realização de prova pericial judicial e a instrução e julgamento, posto que tal matéria não é agravável, por não estar listada no art. 1.015 do CPC. Não há, na hipótese, que se falar em análise de matéria acessória por arrastamento ou de ampliação do efeito devolutivo quanto à extensão, ainda que a pretexto de privilegiar os princípios da economia e da celeridade processual e para corrigir o cerceamento do direito de defesa do réu.
Pensando exatamente na celeridade processual, o legislador restringiu o cabimento do agravo de instrumento às hipóteses descritas no art. 1.015 e em outros dispositivos espalhados pelo Código, sendo defeso aos tribunais ampliar o cabimento do referido recurso para além das situações taxativamente previstas.
Veja-se que, no caso analisado, a decisão foi proferida com a finalidade de corrigir o cerceamento do direito de defesa alegado réu – ante a dispensa da produção de prova pericial em juízo e da instrução e julgamento – e teve por fundamento os princípios da economia e da celeridade processual. Inobstante, o próprio tribunal reconheceu que se o agravo versasse apenas sobre esses temas não poderia ser conhecido.
Não se tratou, portanto, de interpretação extensiva, mas de efetivamente considerar ampliado o efeito devolutivo do agravo de instrumento quanto à extensão para fins de reputar possível a análise de matéria não agravável em conjunto com a parcela da decisão agravável: sendo admitido o recurso porque interposto com fundamento em um dos incisos do art. 1.015, estaria o tribunal autorizado a analisar outras questões relativas a outros capítulos da decisão, embora não agraváveis.
A nosso ver, a matéria relacionada ao cerceamento do direito de defesa do réu em razão da dispensa da prova pericial e da instrução e julgamento deveria ser apreciada apenas quando do julgamento do recurso de apelação, quando de sua suscitação pelo INSS em sede de preliminar (caso restasse vencido na demanda).
Indiscutivelmente, as decisões sobre dispensa/indeferimento de provas e sobre o saneamento do processo (incluída a decisão pela não realização da fase de instrução e julgamento) podem acarretar prejuízo imediato às partes e cerceamento em seu direito de defesa. Entrementes, não foi opção do legislador que tais matérias fossem agraváveis, excetuando-se apenas a decisão sobre redistribuição do ônus da prova (art. 1.015, XI). Quanto às demais questões, não se submetem à preclusão, devendo ser suscitadas na preliminar da apelação ou nas contrarrazões respectivas.
Se a parte entender que sofre prejuízo imediato e que a decisão é teratológica, deve impetrar mandado de segurança, buscando a proteção do direito líquido e certo eventualmente violado. Mas não cabe, na hipótese, agravo de instrumento.
No VIII Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC, realizado entre os dias 24 e 26 de março de 2017, o Grupo de Recursos e Reclamação aprovou o seguinte Enunciado[8], o qual foi, entretanto, rejeitado pela Plenária: “Admitido o agravo de instrumento com base nas hipóteses previstas no art. 1.015, o capítulo da decisão não agravável não pode ser apreciado pelo Tribunal”.
A objeção se deu porque houve entendimento de um dos participantes no sentido de que se abre uma janela de oportunidade para o conhecimento das matérias não impugnáveis pelo agravo quando ele é admitido por conta de outra matéria que comportava o recurso, de modo que, por “arrastamento”, o recurso poderia vir a ser conhecido.
Como dito acima, havendo capítulos distintos de uma mesma decisão, relativos a pedidos diferentes, somente o capítulo da decisão efetivamente agravável deve ser apreciado pelo tribunal.
No caso aqui trazido a debate, era perfeitamente possível ao tribunal decidir sobre o preenchimento dos requisitos para concessão da tutela de urgência requerida pelo autor sem necessariamente ter que tratar da dispensa da prova pericial e da instrução e julgamento. Tratavam-se de capítulos diferentes da mesma decisão. O tribunal poderia até revogar a decisão que concedeu a tutela por considerar os documentos apresentados pelo autor insuficientes para demonstrar a probabilidade de seu direito. Mas não poderia determinar a produção da prova pericial e a realização da instrução e julgamento, posto que tal matéria não é agravável. Não há que se falar em arrastamento na hipótese, o que configuraria indevida ampliação do efeito devolutivo do agravo de instrumento quanto à extensão.
Diversa se impõe a conclusão apenas quando se tratam de questões relacionadas a um mesmo pedido ou capítulo da decisão, verificando-se relação de subordinação/dependência entre elas.
Há, por exemplo, alguns agravos de instrumento em tramitação no Tribunal Regional Federal da 1ª Região[9] em que o agravo, versando sobre exclusão de litisconsorte (art. 1.015, VII), busca a apreciação, pelo tribunal, da questão relacionada à competência (matéria não agravável). Nos processos respectivos, através de decisão interlocutória, a União ou a Caixa Econômica Federal foram excluídas do polo passivo, cuja presença foi determinante para a propositura da ação na Justiça Federal, a qual passou a ser incompetente para apreciar o feito, de modo que foi determinada pelo juiz de primeiro grau a remessa dos autos à Justiça Estadual. Por meio de decisões unipessoais, o Desembargador Jirair Aram Meguerian, geralmente apreciando pedidos de atribuição de efeito suspensivo, tem conhecido integralmente os referidos agravos de instrumento e analisado a questão da competência, considerando que o segundo comando judicial (decisão sobre competência) decorre do primeiro (decisão sobre legitimidade de partes), de modo que, “caso eventualmente acolhida a tese da legitimidade passiva da CEF, a consequência será a manutenção dos autos na Justiça Federal, não se afigurando possível suspender um dos comandos separadamente, devendo, portanto, ser reconhecido o cabimento do agravo de instrumento na espécie”.
Há, nesses casos, uma evidente relação de subordinação entre as questões decididas, as quais compõem o mesmo capítulo da decisão, o que autoriza o cabimento do agravo de instrumento em relação à matéria não agravável: uma vez reconhecida a legitimidade do ente federal, obrigatoriamente deverá ser o processo remetido à Justiça Federal, de modo que é inevitável o conhecimento da questão relacionada à competência (aqui se trata, na realidade, de uma consequência decorrente do efeito devolutivo do agravo quanto à profundidade).
Assim é que, à guisa de conclusão, entendemos que a extensão do efeito devolutivo do agravo de instrumento é restrita à parcela da decisão que contenha a matéria agravável, não havendo que se acolher a pretensão do agravante de análise de matérias apreciadas na mesma decisão que não sejam agraváveis, exceto se elas fizerem parte do mesmo capítulo da decisão e se houver, entre elas, relação de subordinação/dependência.


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