A consequência jurídica das decisões extra petita, por Rodrigo Becker e Victor Trigueiro

O tema desta semana diz respeito aos limites objetivos da decisão judicial, notadamente quanto a sua extensão de conteúdo.
Ao proferir uma decisão, o julgador deve ficar adstrito ao pedido formulado pelas partes, para impedir que se configurem os conhecidos vícios de decisões citraultra e extra petita. A doutrina costuma chamar essa vinculação do juiz de princípio da adstrição, congruência ou correlação.
O juiz, ao sentenciar, precisa percorrer uma trilha, um caminho, até chegar ao objetivo final, que é resolver o mérito da demanda, nos termos do que lhe foi entregue pelas partes, ou, como preferem alguns, nos termos do pedido.
Ademais, os limites da decisão devem respeitar não apenas o pedido, mas também a causa de pedir e os sujeitos da relação processual. É que se chama de limites objetivos e subjetivos da sentença.
Os limites objetivos da sentença, objeto deste texto, vêm regulados pelo art. 492 do CPC/2015. Nesse sentido, é vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.
Dentro deste espectro é que são vedadas as sentenças ultracitra e extra petita, valendo-se aqui da máxima ne eat judex ultra vel extra petita partium (o juiz não pode decidir nem além nem fora do pedido das partes), que informa o princípio da congruência.
Por ultra petita, entende-se a decisão que vai além do pedido, concedendo ao autor mais do que ele pleiteou. Aqui o julgamento do juiz não foge ao que foi pedido numa análise ampla, mas concede a mais do que foi requerido na inicial. A relação com a causa de pedir continua existindo, contudo, no pedido é que há excesso (vício de quantidade). Humberto Theodoro Júnior afirma que essa sentença é parcialmente nula, “não indo além do excesso praticado, de sorte que, ao julgar o recurso da parte prejudicada, o Tribunal não anulará todo o decisório, mas apenas decotará aquilo que ultrapassou o pedido”[1].
 A decisão citra petita, por sua vez, é aquela que decide menos do que foi pedido, seja em relação a algum pedido requerido, seja em relação a algum fato ou fundamento da pretensão.
Qualquer que seja a omissão pode ela ser sanada com a oposição de embargos declaratórios. Todavia, caso a parte não tenha se utilizado dos embargos, pode ainda se socorrer do competente recurso para combater tal decisão.
Já a sentença extra petita pode ser definida como a sentença que julga algo diferente daquilo que foi pedido, analisando questão diversa da que foi pleiteada, sendo estranha, inclusive à causa de pedir (vício de qualidade). Aqui o juiz além de julgar coisa diversa, nem sequer se atém à causa de pedir, examinando coisa totalmente estranha à lide.
Nas palavras de Daniel Assumpção, decisão extra petita é aquela que “concede tutela jurisdicional diferente da pleiteada pelo autor, como também a que concede bem da vida de diferente gênero daquele pedido pelo autor”[2].
Vale ressaltar que “não há decisão extra petita quando o juiz examina o pedido e aplica o direito com fundamentos diversos dos fornecidos na petição inicial ou mesmo na apelação, desde que baseados em fatos ligados ao fato-base.” (STJ, Resp 700.206/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 19/03/2010)
Não configura, por outro lado, violação aos limites objetivos da sentença a análise, pelo magistrado de fatos supervenientes, porquanto o próprio CPC autoriza tal análise ao estabelecer, em seu art. 493, que “se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão”.
Além disso, há, ainda, exceção nos pedidos implícitos (arts. 290 e 293 do CPC/2015), na aplicação da fungibilidade e nas obrigações de fazer, nas quais o juiz pode conceder resultado prático equivalente.
Caso haja recurso contra uma decisão extra petita, não pode o Tribunal julgar diretamente a questão correta, sob pena de supressão de instância, devendo “anular” a decisão e determinar que uma nova seja proferida, observando-se os limites do pedido.
É o que ocorreu recentemente em julgamento no Superior Tribunal de Justiça, em que aquela Corte anulou acórdão do Tribunal de Justiça do Piauí por entender que houve violação aos princípios da adstrição (julgamento extra petita) e do contraditório no julgamento da apelação.
O caso envolvia duas empresas que discutiam se a continuidade das atividades pela contratada, após o prazo contratual, significaria a renovação por tempo indeterminado de um contrato de prestação de serviços. No julgamento da apelação, o tribunal de origem entendeu que o contrato firmado entre as partes seria um contrato de agência ou representação (questão não debatida no processo), e não de prestação de serviços, e aplicou a Lei 4.886/65, que regula a atividade dos representantes comerciais, arbitrando para a contratada indenização que não havia sido requerida.
No STJ, a Turma entendeu que houve afronta ao princípio da adstrição, previsto no artigo 492 do Código de Processo Civil, porquanto “é certo que o magistrado não está limitado à fundamentação jurídica apresentada pelas partes, cumprindo-lhe aplicar o direito à espécie. Porém, segundo o princípio da adstrição, não pode surpreender as partes de modo a prejudicar seu direito de defesa”.
Confira-se a ementa do julgado:

  1. Segundo o princípio da adstrição, o provimento judicial deve ter como balizas o pedido e a causa de pedir. Sob essa perspectiva, o juiz não pode decidir com fundamento em fato não alegado, sob pena de comprometer o contraditório, impondo ao vencido resultado não requerido, do qual não se defendeu.
  2.  A Corte local, ao inovar no julgamento da apelação, trazendo a afirmação de que o contrato ajustado entre as partes era de agência, cerceou o direito de defesa do réu, impondo-lhe as consequências previstas pela Lei nº 4.886/1965 para a rescisão imotivada do contrato de representação comercial sem que houvesse requerimento da autora e sem possibilidade de apresentar argumentos ou produzir provas em sentido contrário.
  3. Recurso especial provido. (REsp 1641446/PI, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, DJe 21/03/2017)

No corpo do acórdão, afirmou “resta configurada, assim, a violação dos princípios da adstrição e do contraditório, devendo ser reconhecida a nulidade dos acórdãos que julgaram a apelação e os subsequentes embargos de declaração”.
Como se pode observar, entendeu o STJ que o acórdão do TJPI era nulo, e, por tal razão, cassou o aresto, determinando que outro seja proferido sem a pecha que levou à nulidade.
Todavia, é conhecida a divergência acerca das consequências das decisões extra petita, no tocante a serem caracterizadas como nulas ou inexistentes.
Humberto Theodoro Junior[3] e Moacyr Amaral Santos[4] defendem a categorização das decisões extra petita como nulas. Para eles, o vício extra petita traz em si os males da ausência do contraditório e da ampla defesa, pelo que, quando o vício consistir na concessão de um provimento ou de um objeto não pedido, em vez do provimento ou do objeto indicados na inicial, a decisão será inteiramente nula, não havendo partes hígidas a preservar.
Nesse caso, o vício estaria no plano da validade do ato e não no plano da existência[5].
Cândido Rangel Dinamarco, na mesma linha, entende que a decisão seria nula:

“Os vícios inerentes à própria sentença, que lhe determinam a nulidade, são (a) formais, quando consistentes na inobservância dos requisitos de modo, lugar ou tempo exigidos em lei ou (b) substanciais, quando o conteúdo da sentença contraria regras de direito processual. Constituem vícios substanciais a falta de correlação com a demanda, o julgamento do mérito apesar de ausente uma condição da ação, a imposição de uma condenação condicional.”[6] (Destaque nosso)

Arruda Alvim, muito embora não o diga expressamente, também entende ser nula a sentença extra petita, reconhecendo, todavia, o acerto de posições que a definem como inexistente[7].
Não obstante a força dos autores que defendem a nulidade desse tipo de decisão, há ainda respeitada corrente que entende ser inexistente tal tipo de decisum. Para essa vertente, uma decisão que julga coisa diversa daquela requerida nos autos não pode ser tida como simplesmente nula, pelas seguintes razões:
  1. a) não há como transitar em julgado um provimento judicial que decide objeto do qual a parte não se defendeu, porquanto a ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa é de tal ordem que, a valer esta sentença, ter-se-ia certamente uma grande insegurança jurídica por partes dos jurisdicionados, que poderiam ser surpreendidos com decisões esdrúxulas, referentes a pontos dos quais não se defenderam;
  2. b) inviável se executar (ou cumprir) uma determinação impossível de ser cumprida[8].
Teresa Wambier é o maior expoente dessa corrente. Entende a autora:
É que, rigorosamente, a sentença puramente extrapetita comporta, sob certo aspecto, a qualificação de sentença inexistente, uma vez que não corresponde a pedido algum. Falta, portanto, pressuposto processual de existência para que aquela sentença seja considerada juridicamente existente.[9] 
Trata-se aqui de vício relativo ao plano de existência, sobretudo porque, como assevera a autora, o problema está na falta de pressuposto processual de existência.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em caso peculiar, entendeu ser inexistente acórdão que julgou matéria totalmente distinta daquela na qual se fundava o recurso especial interposto perante aquela Corte: “(…) O acórdão que julga recurso especial, contendo matéria absolutamente distinta daquela constante do recurso, deve ser considerado inexistente (…)”[10]
Vê-se, ainda, em Pontes de Miranda posicionamento semelhante ao desta corrente: 
“Restam as inexistentes, que são a) a sentença proveniente de autoridade pública não judiciária civil; b) a sentença que não foi publicada, nem consta do jornal em que se costuma publicar o expediente do foro, ter sido publicada, nem foi proferida em audiência; c) a sentença publicada sem ser proferida em demanda civil a cuja instrução e debate imediatamente se ligue (e.g. proferida ao mesmo tempo que pronúncia penal, ou a que se ditou em processo diferente daquele a que se destinava as notas; é ineficaz no caso de impossibilidade física, logica, jurídica e moral, no conteúdo da sentença, como a que manda cortar a terra pelo meio, ou atribuir o domínio a um cavalo, ou decreta a escravidão, ou permite o incesto ou o castigo de fogo, ou a venda de documentos secretos do Estado a país estrangeiro; d) a sentença contra pessoa que goze de exterritorialidade etc.
(…)
As espécies a), b), c) e d) são de sentenças inexistentes.”[11] (destaque nosso) 
Para esses defensores, a valer o entendimento de que a sentença extra petita é nula e não inexistente, teríamos a seguinte situação: a sentença que determinou a entrega de um bem diverso daquele pleiteado na inicial seria , no mínimo, válida até que fosse desconstituída. E, sendo válida, admitiria execução (ou cumprimento) provisório, até que a nulidade fosse declarada. A situação, assim, seria tão esdrúxula que a parte teria que se defender em fase executiva contra algo que não possui nenhuma relação lógico-jurídica com o processo do qual foi parte.
A solução para essa corrente é não permitir que a sentença seja cumprida, devendo o juiz, ao receber a petição para cumprimento desde já reconhecer a inexistência do título executivo judicial. Ademais, não se pode aceitar que o erro seja corrigido apenas se a parte se insurgir, pois a sentença inexistente, por ser um nada jurídico, pode ser descartada até mesmo de ofício.
Destarte, muito embora o novo CPC tenha perdido a oportunidade de estabelecer a consequência jurídica de uma decisão extra petita, certo é que a tendência deverá ser aquela deduzida pela maioria da doutrina e já sinalizada pelo Superior Tribunal de Justiça este ano de que tais decisões são nulas.
Poderia ter o CPC, em verdade, estabelecido qual medida deveriam os Tribunais adotar diante de uma decisão com vício extra petita (declarar a nulidade ou simplesmente descartar a decisão inexistente), impedindo, assim, possíveis desdobramentos decorrentes dessa incerteza, como uma execução contra decisão extra petita que agonizaria até que fosse declarada a sua nulidade.
Não se desconhece, ainda, a ideia de Pontes de Miranda de que “dizer que o legislador poder destituir a separação entre inexistência e nulidade é o mesmo que supô-lo apto a, por exemplo, decretar a mudança de sexo ou abrir audiência na lua”[12] , contudo, o debate sobre os planos do ato jurídico sai do espectro do presente texto.
Ademais, não se defende aqui que o legislador afirmasse taxativamente qual o vício, mas que, ao menos, dissesse de forma mais efetiva qual a consequência jurídica.
Com lei ou sem lei, inconteste que o debate doutrinário é consistente, amplo e profundo e seguirá desempenhando sua função de dar algumas coordenadas ao operador do direito sobre a consequência jurídica de uma decisão extra petita no curso de um processo.

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