No direito francês, da época de
Napoleão, havia um método interpretativo dogmático das leis, baseado na
orientação extremada, em que se pressupunha que a lei era clara na sua
literalidade e correspondia ao pensamento do legislador[1].
Essa ideia se refere, sob certo
aspecto, a uma forma de interpretar a lei baseada no método literal
(ainda que o pensamento do legislador corresponda ao método autêntico),
em que a norma é clara o suficiente, não deixando dúvidas para o
aplicador do direito. Não se desconhece que alguns estudiosos de
hermenêutica afirmam que o método literal não traduz a melhor forma de
se interpretar as leis, mas não deixa, contudo, de ser um dos métodos
mais utilizados e analisados no contexto jurídico.
Limongi França, examinando, as regras
atuais de interpretação e hermenêutica, afirma que a dinâmica
estabelecida por Carlos de Carvalho continua válida e aplicável ao
direito atual[2], dentre elas,
destaca-se: “se as palavras da lei são conformes com a razão, devem ser
tomadas no sentido literal, e as referentes não dão mais direitos do que
aquelas a que se referem.”
É claro que esse método literal
(gramatical) não é único, tampouco o mais aplicado pelos operadores do
direito. Há, inclusive, forte corrente doutrinária no sentido de ter ele
importância relativa, na medida em que que outros elementos de natureza
histórica, sociológica, ideológica e filosófica, devem complementar o
sentido aparente que a interpretação literal de início revela[3].
De outra banda, não se desconhece que
essa é a forma primeira de que nos utilizamos quando estamos diante de
uma lei. Se ela já nos informa, com clareza, a norma que dela se extrai,
podemos aplicá-la sem recorrermos a outro método interpretativo.
Valem, ainda, as observações de Ricardo Lavalhos Dal Forno:
“Num texto há sempre o pressuposto
da linguagem, tanto em sua elaboração e constituição de sentido, quanto
em sua interpretação. O sentido, intencionado pelo autor, somente pode
ser projetado e realizado dentro dos estreitos limites de uma linguagem.
Esta, por sua vez, precisa ser elucidada, para que se chegue a uma
correta compreensão do sentido.”[4]
Não se pretende aqui defender uma ou
outra espécie de interpretação, ou mesmo a sua ausência, o que se
objetiva é tão somente demonstrar que alguns dispositivos legais são
claros a ponto de não requerem interpretação diversa da literal.
Assim é que, diversas regras legais
possuem uma exegese clara, que possibilita ao aplicador do direito a
imediata consecução dos objetivos extraídos da norma.
Um bom exemplo de lei em que se retira um sentido claro de seu conteúdo é o art. 304, caput,
do Código de Processo Civil, que assim dispõe: “a tutela antecipada,
concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a
conceder não for interposto o respectivo recurso”.
Trata-se de dispositivo legal que
traduz, em outras palavras, a seguinte norma: se houver deferimento de
tutela antecipada na forma antecedente (art. 303 do CPC/2015), e contra
essa decisão não for interposto recurso, a decisão será estabilizada.
Para o réu, portanto, abrem-se duas
opções: ou não recorre e a decisão da tutela antecipada estabiliza, ou
recorre e a decisão não estabiliza.
Há um debate acerca da não estabilização, caso o réu não recorra, mas conteste a ação[5]. Todavia, essa não é discussão do presente artigo. O que se pretende aqui é demonstrar que a lei é clara ao estatuir que se o réu interpuser o recurso cabível, a decisão não será estabilizada.
A propósito confira-se o comentário de Teresa Wambier e outros sobre a interpretação do art. 304, caput, do CPC/2015:
“O caput traz a informação de que a tutela antecipada requerida de forma antecedente, nos termos do art. 303 anterior, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso. Numa intepretação literal, o que terá o condão de ditar, ou não, a estabilização, será a providência recursal.” [6] (destaques no original).
Na mesma linha, interpretando o mesmo
artigo, Daniel Assumpção Neves afirma que “a tutela antecipada
concedida anteriormente só não se estabiliza na hipótese de recurso pelo
réu, que, embora não esteja indicado expressamente no dispositivo
legal, é o agravo de instrumento, nos termos do art. 1015, I, do Novo
CPC”[7].
Percebe-se, dessa forma, que não há
dúvidas de que, interposto o recurso cabível, a decisão concessiva da
tutela antecipada na forma antecedente, não estabiliza.
Não se trata aqui, ressalte-se, de
ponderar que tipo de impugnação seria passível de não estabilizar a
decisão (contestação, recurso ou qualquer outra forma), mas sim de
asseverar que, interposto o recurso cabível, essa decisão não se estabiliza.
Outro ponto de destaque no art. 304
do CPC/2015, e que também não permite digressões, é que ele estabelece
que a “simples” interposição do recurso cabível já impede a
estabilização da decisão.
No caso, o recurso cabível, de acordo
com o art. 1.015, I, do Código de Processo Civil, como visto acima, é o
agravo de instrumento, daí porque, interposto tal agravo, desde já se
considera não estabilizada a decisão.
Mais uma vez os vocábulos da norma
são precisos e não permitem, no caso, outras formas de interpretação,
senão a literal: interpor significa entrar em juízo com um recurso, de
modo que não se trata de receber ou dar provimento ao pedido recursal,
mas do simples ato de apresentar esse recurso.
Destarte, se a parte interpõe o
agravo, pouca importa se será ele provido ou desprovido, porque o que
fez a decisão não se estabilizar é a sua interposição e não o seu
resultado.
Feitas essas considerações, cabe
analisar hipótese concreta, ocorrida em processo judicial, sobre a
estabilização (ou não) de decisão concessiva de tutela antecipada na
forma antecedente.
Em processo que tramitou em primeira
instância, deferida tutela antecipada na forma antecedente, o réu
agravou dessa decisão e requereu, em seu recurso, que fosse provido o
agravo para que “a decisão não estabilizasse”. O Tribunal de Justiça,
julgando o agravo de instrumento, deu provimento ao recurso, para que a
decisão não se sujeitasse à estabilização do art. 304 do CPC/2015. Segue
a ementa do acórdão:
1 – O interesse recursal se
caracteriza quando o recurso interposto revela-se necessário e útil para
a impugnação da decisão judicial proferida em sentido contrário à tese
defendida pela parte recorrente, ou ainda, para melhorar a situação
processual daquele que recorre. In casu, tratando-se de impugnação de
decisão deferitória de tutela de urgência de caráter antecedente, a via
recursal adequada e útil é o agravo de instrumento, a teor do que dispõe
o artigo 304 do NCPC. Preliminar de falta de interesse recursal
rejeitada.
2 – A multa cominatória fixada pelo magistrado (astreintes) tem por intuito compelir o devedor a cumprir a obrigação de fazer.
3- Acerca da estabilização da tutela antecipada
deferida em caráter antecedente, estabelece o artigo 304 do NCPC que “a
tutela antecipada concedida nos termos do art. 303, torna-se imutável se
da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”.
Isso significa que, uma vez deferida a tutela de urgência de caráter
antecedente, sua não impugnação, pelo réu, por meio do recurso cabível,
acarreta estabilização dos efeitos da decisão.
4 – Utilizando-se o réu da via recursal adequada
para evitar a estabilização dos efeitos da decisão concessiva da tutela
antecipada, inclusive apresentando prova de adimplemento voluntário da
obrigação de fazer prevista na decisão, conclui-se que o pedido de mérito recursal formulado, no sentido de não estabilizar a decisão, merece ser provido.
5 – Agravo de Instrumento
conhecido. Preliminar rejeitada. No mérito, recurso provido. (TJDFT, AGI
20160020127047, Rel. Desa. ANA CANTARINO, 3ª TURMA CÍVEL, Publicado no
DJE: 15/09/2016) (Destaque nosso)
Verifica-se do julgamento, que o
agravo foi provido exclusivamente para evitar que houvesse estabilização
da decisão concessiva da tutela antecedente.
Daí decorre invariavelmente a
pergunta: era necessário esse provimento? Ou poderia o tribunal ter
negado o agravo e mesmo assim a decisão não estaria estabilizada?
De antemão, verifica-se que a própria
peça recursal do réu, requerendo o provimento para que a decisão não se
estabilizasse já era inadequada, no ponto.
Alegou o agravante que os requisitos
legais para o deferimento da medida antecipatória não se mostravam
presentes, e, ainda, que, nos termos do artigo 304 do NCPC, se a medida
antecipatória de caráter antecedente não for confrontada pela parte
contrária por meio do recurso cabível, aquela se estabilizaria, razão
pela qual pleiteou o provimento do recurso, reformando-se a decisão
interlocutória, a fim de que não se operasse sua estabilização.
Desnecessário o segundo pedido,
porque a impugnação da decisão no tocante à ausência dos requisitos
legais para a concessão da tutela antecipada já operaria duplo efeito: o
de efetivamente controverter a questão no âmbito recursal e o de
impedir a estabilização da decisão.
De tudo o que se viu acima, não
restam dúvidas de que, no momento em que o réu interpôs o recurso contra
a decisão, impediu ali a sua estabilização da decisão. Nada mais era
necessário por parte do réu, nem mesmo por parte do Tribunal. O
julgamento do Tribunal é consequência do prosseguimento do processo, mas
não tem relação com a não estabilização da decisão.
Portanto, o provimento do agravo,
pelo Tribunal de Justiça, com o objetivo de impedir que se estabilizasse
a decisão concessiva da tutela, era desnecessário e irrelevante, na
medida em que poderia o tribunal ter negado o agravo e mesmo assim a
decisão estaria estabilizada.
Isso porque a não estabilização, como
visto, se deu com a interposição e não com o resultado do recurso.
Provido ou improvido o agravo, a efetivação já estava implementada, e a
decisão não havia se estabilizado.
De todo o exposto, o que se percebe é
que não se observou a clareza das disposições do art. 304, caput, do
CPC/2015, que não permite outra interpretação, senão a única possível,
literal por excelência: interposto o agravo contra a decisão concessiva
da tutela antecipada na forma antecedente, tal decisão não se
estabilizará.
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