A
relação "arbitragem, Tribunal de Contas e direito marítimo portuário"
possui pontos de convergências que merecem um estudo mais detido. Assim,
faz-se mister a compreensão de em que medida essa relação se dá.
O recorte a ser dado,
primeiramente, reside na hipótese de celebração de convenção arbitral
sobre a temática reequilíbrio econômico-financeiro do contrato
administrativo. Como sabido, a via arbitral pode ser utilizada se
versar, nos termos da lei 9.307, sobre "direitos patrimoniais disponíveis",
enquadrando-se neste conceito jurídico apenas o direito cuja natureza
não seja de interesse público primário. Sintetizando, a questão pode ser
resolvida pela arbitragem, na hipótese de uma das partes ser o Poder
Público, se versar sobre direito público secundário, sobre direito
patrimonial do Estado.
Cientes de que questões
atinentes ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato
administrativo dizem respeito ao interesse público secundário, ou seja,
ao interesse patrimonial do Estado, possível a utilização da via
arbitral para resolução de conflito que dessa matéria se desdobre. Aqui
se estabelece a primeira relação: a arbitragem pode ser utilizada para conflitos de questões de reequilíbrio econômico-financeiro de contrato administrativo.
Adiante, o mesmo contrato
administrativo, discutido na seara arbitral, será objeto de análise do
Tribunal de Contas, tendo em vista que lhe incumbe, por imperativo
constitucional, fiscalizar, com base em critérios de legalidade,
legitimidade e economicidade, matérias de natureza "contábil,
financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das
entidades da administração pública direta e indireta" (art. 70 da CF).
Assim, qualquer contrato administrativo celebrado com a administração
pública, seja direta ou indireta, será analisado em seu aspecto de
economicidade pela seara de Contas, dele de modo a aferir os resultados
depreendidos. Estabelece-se aqui a segunda relação: o
Tribunal de Contas realiza controle de economicidade nos contratos
administrativos que tiverem questões de reequilíbrio
econômico-financeiro decididas pela jurisdição arbitral.
Conforme estudos já
realizados, constatamos, também, certo preconceito do Tribunal de Contas
no tocante à utilização da arbitragem sobre questões econômicas de
contratos administrativos1. A jurisprudência do TCU, demonstrando o temor de a via arbitral prejudicar o erário público, proferiu decisões com teores de "não
cabe ao administrador público a discricionariedade de optar ou não pela
arbitragem, dispondo sobre o patrimônio público ou o interesse público,
bem como afastar a tutela jurisdicional, em se tratando de um contrato
administrativo de direito público" (TCU, acórdão 0391/2008, Plenário, Min. Rel. Marcos Vinícius Vilaça, j. em 12/03/2008) e de "questões
de natureza econômico-financeira, atinentes ao poder tarifário da
Administração Pública, o qual é irrenunciável, não podem ser objeto de
resolução mediante a aplicação da arbitragem, por se tratarem de
interesse público indisponível" (TCU, Acórdão 1796/2011, Plenário, Min. Rel. Augusto Nardes, j. em 06/07/2011). Assim, estabelece-se a terceira relação: o
Tribunal de Contas, em alguma medida, é refratário à utilização da
arbitragem pela administração pública em questões que envolvam
reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos.
Indo além, recente artigo do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, de autoria de Sérgio Ciqueira Rossi2,
estabelece a premissa de que a arbitragem pode ser utilizada nos
contratos administrativos apenas na hipótese de ela constar expressa e
previamente no edital de licitação, pois a administração pública deve
obediência ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório.
Reitere-se, antes de
tudo, que esse entendimento, apesar de ser do TCE-SP, segue a tendência
das demais Cortes, porquanto todas se obrigam a julgar (com critérios de
economicidade) contratos administrativos à luz do princípio da
vinculação do instrumento convocatório, o que implica a aceitação de
utilização da arbitragem apenas com a estipulação de cláusula arbitral.
Dessa premissa, de que a
arbitragem deve ser previamente prevista pelo edital de licitação
(vinculação ao instrumento convocatório), temos que a jurisdição
arbitral só pode ser utilizada nos contratos administrativos que possuem
cláusulas compromissórias, mas não compromissos arbitrais.
Estabelece-se aqui a quarta relação: a instauração
de procedimento arbitral, à luz do entendimento das Cortes de Contas,
condiciona-se à previsão de cláusula compromissória no edital que
precede a celebração do contrato administrativo, não podendo ser
instaurada por compromisso arbitral.
No âmbito do direito
marítimo portuário, a lei dos portos prevê a arbitragem de modo
genérico, sendo regulamentada, de forma mais contundente, pelo decreto
8.468/15. Nesse instrumento normativo, há previsão de utilização da via
arbitral para questões referentes ao reequilíbrio econômico financeiro
de contratos administrativos, consoante art. 2 do mencionado.
Contudo, o mesmo diploma,
de natureza regulamentar, inflige algumas restrições à instauração do
procedimento arbitral para questões de reequilíbrio contratual entre
administração e particular. Depreende-se isso do artigo 6º, §2º, inciso
II, do decreto, dispondo que tais matérias apenas podem ser objeto de
arbitragem se houver celebração de compromisso arbitral, sendo vedado o
uso de cláusulas arbitrais. Estabelece-se aqui a quinta relação: contratos
administrativos portuários, no tocante aos conflitos de reequilíbrio
econômico-financeiro, só podem ser analisados pela jurisdição arbitral
por meio de celebração de compromisso arbitral.
Assim, cotejando todas as
cinco relações estabelecidas, a utilização da arbitragem, não obstante
seus benefícios, sofre severas mitigações na seara marítima-portuária,
pois os contratos administrativos portuários (i) só podem ser firmados
por compromisso arbitral (imposição do decreto 8.468/15) e,
concomitantemente, (ii) só podem ser firmados, de acordo com perigoso
entendimento do TCE-SP – e, seguramente, das demais Cortes de Contas,
haja vista observarem o princípio da vinculação ao instrumento
convocatório –, por cláusula compromissória. Aí reside a correlação entre arbitragem, Tribunal de Contas e Direito Marítimo Portuário: a
arbitragem para julgar questões de reequilíbrio econômico-financeiro
dos contratos administrativos tem grande possibilidade de ser
inviabilizada em decorrência da incompatibilidade do decreto 8.468/15
com o entendimento dos Tribunais de Contas.
A concatenação das cinco
relações cotejadas origina um óbice à instauração de procedimento
arbitral para o deslinde de questões concernentes ao reequilíbrio
econômico-financeiro de contrato administrativo portuário. Expõe-se, a
fim de combater o imbróglio, alguns motivos pelos quais essas
incoerências interpretativas e normativas devem ser extirpadas do
ordenamento jurídico brasileiro.
Em primeiro, o princípio
da vinculação ao instrumento convocatório merece ser relativizado em se
tratando da possibilidade de se instaurar a via arbitral para os
contratos administrativos portuários. De fato, a Corte de Contas não
pode julgar o mérito do que for decidido pelo Tribunal arbitral;
contudo, pode desestimular o uso desse meio de resolução ao julgar o
contrato administrativo portuário irregular em razão de não conter no
edital de licitação cláusula compromissória autorizando a utilização
dessa via. Destaque-se, ademais, que julgar o contrato irregular pelo
simples fato de a decisão ser oriunda de arbitragem instaurada por
compromisso arbitral não soa razoável e prejudica particulares e a
própria administração pública.
Em segundo, o prejuízo
referido pode ser constatado ante o fato de a arbitragem, em
determinadas situações, ser o instrumento mais útil, eficiente e
condizente com a complexidade do caso concreto, sendo incoerente impedir
o seu uso por mero receio de prejuízo ao erário ou pelo fato de o
edital de licitação não o prever.
Em se tratando de
contratos administrativos portuários, aliás, sua utilização para
resolução de questões de reequilíbrio econômico-financeiro se mostra
mais adequada em face do Judiciário, ou de qualquer outra via, porquanto
(i) se escolhem, além de um árbitro de direito, outros dois árbitros
das mais variadas áreas, enriquecendo a qualidade da decisão com
elementos de cognição à altura da complexidade da causa na qual se
encontram múltiplos conhecimentos destoantes do jurídico; (ii) se
analisa, com mais precisão, temas com os quais o Judiciário não possui
expertise nem aparato técnico preparado para enfrentar; (iii) se resolve
o litígio com mais celeridade e eficiência, princípios corolários da
administração pública gerencial pautada na busca e no controle por
resultados.
Em terceiro, o próprio
STJ já reconheceu a impossibilidade de se invalidar eventual arbitragem
pelo simples fato de ela não ser oriunda de cláusula compromissória. O
princípio da vinculação ao instrumento convocatório, nos casos que tais,
merece ser relativizado para possibilitar à administração pública a
utilização desse instrumento se vislumbrar ser o meio mais adequado,
eficiente e célere. Assim, no REsp 904813, o STJ corroborou a tese aqui
defendida dizendo que "O fato de não haver previsão da arbitragem no
edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes não
invalida o compromisso arbitral firmado posteriormente" (STJ, REsp 904813, Terceira Turma, Min. Rel. Nancy Andrighi, j. em 20/10/2011, DJe 28/02/2012).
Em quarto, o decreto
8.468/15, em que pese sua nobre intenção de regular a arbitragem
marítima-portuária, não pode impor um plexo de exigências para
instauração desse meio, tampouco vedar a celebração de cláusulas
compromissórias para questões de reequilíbrio econômico-financeiro.
A administração gerencial
busca o controle por resultados, demonstrando ser mais adequado, à luz
dessa premissa, outorgar ao gestor público responsável verificar,
cotejando (i) complexidade do caso, (ii) qualidade das vias, (iii)
economicidade e (iv) celeridade, se o caso concreto é resolvido de forma
mais eficiente por uma ou outra seara de justiça. Se optar pela
arbitragem, presume-se que vislumbrou nesse meio a resolução mais
adequada do caso, não havendo motivos para a lei impedir a utilização
dessa via.
Nesse ponto, destaque-se
que pode o Tribunal de Contas julgar o contrato de acordo com as
competências que lhe foram atribuídas pelo art. 70 da CF. O que não pode
é existir o desestímulo, por parte dessa seara administrativa, à
utilização da arbitragem pelo simples fato de ela não estar prevista no
edital, haja vista o próprio STJ relativizar o princípio da vinculação
ao instrumento convocatório. Ou seja, as decisões da Corte de Contas
devem se dar com base em critérios de economicidade, aferindo os
resultados obtidos pelo gestor público, não podendo prejudicar o que for
decidido pelo Tribunal arbitral mesmo se em alguma medida repercutir na
seara financeira.
As jurisdições (estatal,
arbitral e administrativa) devem conviver de forma harmônica e
independente. Em determinados casos, o provimento de uma seara repercute
noutra, pois as competências de cada uma, mesmo que privativas ou
exclusivas, refletem nos mais variados campos do conhecimento, sendo
normal a decisão de uma seara afetar matérias que serão julgadas
posteriormente por outra justiça mediante outro tipo de análise.
Diante disso, conclui-se,
com segurança, que as decisões do Tribunal de Contas não devem
prevalecer nem mitigar a utilização da arbitragem: devem conviver de
forma harmônica. A jurisdição arbitral pode possibilitar uma plêiade de
benesses à administração pública, de modo que mitigar sua utilização
implica privar o Estado e também o particular de obterem uma resolução
mais eficiente.
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