Tutela de evidência e propriedade intelectual: desmistificando alguns conceitos jurídicos indeterminados, por Marcelo Mazzola e Paula de Mello Franco
A
dinâmica do direito, a evolução das relações, as descobertas
científicas e os avanços tecnológicos obrigaram, há muito, o legislador a
romper com o "tradicional modelo de tipicidade estrita"1.
É que a técnica da mera aplicação da norma ao fato (subsunção) se
tornou insuficiente para regular todas as situações que poderiam
emergir.2
Ganharam projeção, assim,
os conceitos jurídicos indeterminados, que permitem que o intérprete
preencha os "espaços em branco" no momento da subsunção, como forma de
maximizar a efetividade da prestação jurisdicional.
Em razão das dimensões
reduzidas deste artigo, analisaremos especificamente os conceitos
jurídicos indeterminados da tutela de evidência, fazendo uma correlação
com as ações de propriedade intelectual.
Como se sabe, a tutela
provisória abrange as tutelas de urgência (cautelar e antecipada, que
podem ser antecedentes ou incidentais) e de evidência. No caso da tutela
de evidência, dispensa-se a demonstração do perigo na demora, podendo a
medida ser deferida quando restar caracterizada uma das quatro
hipóteses elencadas no artigo 311 do NCPC.
A doutrina também
reconhece a hipótese de tutela de evidência recursal, a teor dos artigos
1.012, §1º e 1.026, §1º, da lei de Ritos, que possibilitam a atribuição
de efeito suspensivo à apelação e aos embargos de declaração,
respectivamente, se houver "probabilidade de provimento" ou "risco de
dano grave ou de difícil reparação", sendo relevante a fundamentação5.
Para fins de trabalho,
analisaremos apenas os incisos I e IV do art. 311, situações que não
autorizam o deferimento liminar da medida, isto é, sem a oitiva da parte
contrária (art. 311, parágrafo único).
Pois bem, em relação ao inciso I, esse determina que a tutela de evidência será concedida quando ficar caracterizado o "abuso do direito de defesa" ou o "manifesto propósito protelatório da parte".
Veja-se que a preposição
empregada pelo legislador é "ou" e não "e", razão pela qual basta a
caracterização de um dos elementos para a concessão da medida.
Quanto à definição de abuso do direito, esse pode ser extraído do artigo 187 do CC6, porém o dispositivo traz alguns conceitos vagos e, portanto, não resolve o problema.
De qualquer forma, parece
haver consenso no sentido de que abusa do direito de defesa aquele que
altera a verdade dos fatos, procede de modo temerário em qualquer
incidente ou ato do processo, resiste ao cumprimento de obrigação de
fazer, apresenta documento já conhecido em âmbito recursal, entre
outros.
Por sua vez, protelar
significa "adiar" ou "postergar". Assim, age com manifesto propósito
protelatório aquele que opõe resistência injustificada ao andamento do
feito (por exemplo, recorrente que sistematicamente deixa de recolher as
custas recursais para ganhar tempo, ainda que venha a recolher em dobro
oportunamente - art. 1.007, § 4º), provoca incidente manifestamente
infundado, interpõe recursos sem impugnar os fundamentos da decisão
recorrida, etc.
Vejamos agora alguns exemplos na área da propriedade intelectual.
Nas ações de infração ou
de nulidade de registro de marca, age com abuso de direito a parte que
justifica a inexistência da alegada infração com base em registro ou
pedido de registro de marca que, sabidamente, cobre outro ramo de
atividades, não tendo relação com a contrafação apontada. Também age com
abuso de direito a parte que sustenta o fair use de direitos autorais, ciente de que não se valeu apenas de "pequeno trecho" da obra7.
Nessas hipóteses, poderá o
autor na réplica, ou o réu reconvinte na resposta à contestação,
requerer a concessão de tutela de evidência.
Em relação ao manifesto
propósito protelatório, a conduta pode restar configurada quando a parte
deduzir tese contrária ao entendimento dos precedentes indicados no
artigo 927 do NCPC, sem fazer o necessário distinguishing.
Entendemos também que, em
alguns casos, é possível sustentar o intuito protelatório quando o réu
ignora entendimento consolidado das cortes superiores – ainda que sobre
questão processual –, materializado em julgados colacionados na petição
inicial, sem apresentar qualquer argumento em sentido contrário.
É o caso do réu que, em
ação de concorrência desleal cumulada com indenização, suscita a
incompetência do foro de domicílio do autor, pugnando pela remessa dos
autos para o foro de seu domicílio, ignorando o entendimento do STJ8,
sem veicular fundamentos capazes de infirmar o paradigma. Ou então
quando defende a inexistência de infração de marca, limitando-se a
sustentar que os prejuízos sofridos pelo autor não teriam sido
comprovados na petição inicial, desprezando completamente o
posicionamento consolidado da corte especial9.
Nas ações de trade dress,
consideramos que age de forma protelatória o réu que invoca produtos ou
conjuntos distintivos sem qualquer pertinência com as peculiaridades do
caso concreto, apenas para desviar o foco e criar uma presunção de
legitimidade.
Já no tocante ao inciso
IV do art. 311, a hipótese autoriza a concessão da tutela de evidência
quando "a petição inicial for instruída com prova documental suficiente
dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha
prova capaz de gerar dúvida razoável".
Dúvida razoável é aquela
que faz o julgador refletir, inibindo eventuais impulsos e levando-o a
melhor aquilatar os fatos. É um sinal de que é necessário examinar com
mais profundidade a controvérsia e franquear a ampla dilação probatória.
Porém, se o réu não
conseguir, com sua defesa, criar uma dúvida razoável na convicção do
julgador e a petição inicial estiver instruída com prova documental
suficientemente capaz de corroborar a tese autoral, poderá o juiz
deferir a tutela de evidência, caso a medida seja requerida.
Em ações de infração de
patente, por exemplo, se o autor demonstrar a violação de seu direito de
propriedade industrial, juntando laudos técnicos e pareceres
elucidativos, e o réu não conseguir esvaziar a consistência de tal
argumentação, o juiz poderá conceder a tutela de evidência.
O mesmo pode ocorrer em ações de trade dress,
em que o autor demonstra a semelhança dos produtos, acostando, por
exemplo, laudos semióticos e pesquisas de opinião, e o réu não consegue
desqualificar ou rechaçar o acervo probatório acostado aos autos.
Todavia, se o réu
demonstrar que a embalagem utilizada ou o conjunto distintivo segue uma
tendência de mercado ou se justifica pela funcionalidade, provavelmente
lançará uma "dúvida razoável" na mente do julgador, minimizando as
chances de uma tutela de evidência.
Em resumo, especialmente
nas hipóteses de tutela de evidência dos incisos I e IV do art. 311,
caso a medida seja requerida, é dever do magistrado fundamentar a sua
decisão (arts. 11 e 489, § 1º, II), demonstrando, de forma racional,
como preencheu o conceito jurídico indeterminado, sob pena de nulidade.
Trata-se de conduta que, além de prestigiar o contraditório10, valoriza a boa-fé (art. 5º) e a cooperação (art. 6º), dando concretude às normas fundamentais do processo civil.
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