Uma análise sobre a inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil, por Carolina Alves de Oliveira Rocha e Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme

No campo do Direito Civil, o ano de 2016 trouxe diversas mudanças significativas: com a entrada em vigor do NCPC foram modificadas as regras já tradicionais a respeito da capacidade, preconizadas no art. 3º e 4º do Código Civil; a lei 13.257/16 (Marco Legal da Primeira Infância) trouxe alterações na concessão da licença paternidade para os trabalhadores de empresas que aderirem ao Programa Empresa Cidadã; e ainda no tocante à paternidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela possibilidade de reconhecimento de dupla paternidade, biológica e afetiva, no julgamento do RE nº 898.060/SC.
Outro importante tema do direito civil sobre o qual se debruçou o STF no ano corrente foi a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil (RE 878694/MG), que traz tratamento diferenciado entre cônjuges e companheiros em matéria de direito sucessório. Com sete votos favoráveis à declaração de inconstitucionalidade, o julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do Min. Luiz Fux, devendo a formalização do resultado ocorrer apenas em 2017.
Conforme dispõe o art. 1790 do Código Civil, o companheiro (a) participará da sucessão do falecido quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, na forma prevista nos incisos do referido artigo, ficando excluídos aqueles particulares, adquiridos a título gratuito.
Ou seja, o companheiro só terá direito à integralidade da herança se não houver quaisquer parentes sucessíveis, ou seja, colaterais até o 4º (quarto) grau, enquanto que o cônjuge sucederá na integralidade na falta de ascendente ou descendente apenas, nos termos do art. 1829, III, c/c 1838 do Código Civil, restando clara a diferença de tratamento legal entre ambos. Concorrendo com outros, ascendentes, descendentes ou colaterais também há diferenças: no caso de haver descendentes, não cabe ao companheiro a reserva da quarta parte da herança, estipulada pelo art. 1.832 ao cônjuge, por exemplo.
Em verdade, o companheiro sequer consta no rol de vocação hereditária, previsto no art. 1829 do diploma civilista, sendo as normas relativas à sucessão do companheiro tratadas de forma apartada, como se algo excepcional fosse.
Verifica-se atualmente uma hierarquização dos tipos de família determinada pelo legislador civilista, de forma incompatível com o sistema constitucional, que reconhece e protege a união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º da CF/88).
Muito embora o próprio Código Civil traga em seu art. 1723 uma definição de união estável, baseada na convivência duradoura, estabelecida com o propósito de constituir família, a proteção concreta conferida em relação àquela gozada pelas entidades familiares decorrentes do casamento ainda é inferior.
Estabelecer distinções entre cônjuge e companheiro significa não só uma violação a isonomia, mas também uma afronta à própria dignidade da pessoa humana. O momento sucessório é, por si só, envolto em um natural luto, decorrente da perda, e por decorrência do próprio texto legal o companheiro ainda tem atualmente de se submeter a um regime diferenciado de sucessão, como se a relação construída pelo casal em vida fosse em algum aspecto inferior àquela chancelada pelo Estado mediante o instituto do casamento.
Conforme dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2012, mais de um terço das uniões no Brasil são consensuais, com ou sem contrato, tendo o número aumentado exponencialmente no período analisado (2000 a 2002), enquanto que o casamento formalizado, seja no civil, religioso ou ambos, tem diminuído1.
Trata-se de uma latente realidade social, devendo o Direito se aperfeiçoar, se amoldando aos aspectos cotidianos, conforme a evolução da própria sociedade, que cria constantemente novas formas de relação jurídicas a serem tuteladas.
Conforme o relator do processo em comento, Ministro Luís Roberto Barroso, a desequiparação entre as diferentes entidades familiares, seria um verdadeiro retrocesso, na contramão do que dispõe a Constituição Federal, sendo um verdadeiro anacronismo legislativo, razão pela qual entende pela inconstitucionalidade do dispositivo.
Ora, se a própria Carta Magna, sensível às evoluções sociais e as novas formas de família conferiu tratamento igualitário, não cabe ao legislador civilista promover distinções, eis que discriminatórias. Assim, a declaração de inconstitucionalidade do referido artigo é medida que se impõe, protegendo as relações jurídicas originadas a partir de vínculos afetivos, ainda que não formalizadas mediante o instituto do casamento.


Comentários