Retrospectivas se dão, essencialmente, entre rememorações e balanço
do que passou. Dois mil e dezesseis foi mais um ano em que questões
importantes relativas ao direito do consumidor foram protagonistas dos
debates jurídicos, nos tribunais, órgãos administrativos e na academia.
Na
realidade da vida, a crise econômica severa, pela qual passa o Brasil,
fez suas vítimas. Assim os milhares de trabalhadores desempregados que, a
par da perda do emprego e salário, também se viram privados de seus
respectivos planos de saúde coletivos estipulados pelo empregador, por
não conseguirem fazer frente ao seu custeio integral. Com o desemprego
também se acentua a incapacidade das famílias honrarem suas dívidas,
destacando a lacuna da ausência de legislação própria sobre o tratamento
do superendividamento, cujo projeto de lei tramita a passos morosos no
Congresso Nacional.
O cenário para o novo ano não é otimista. Em
situações como estas, normalmente, são dois os principais caminhos
adotados pelos fornecedores: ou bem a precarização dos produtos e
serviços oferecidos e o desrespeito a direitos, aumentando a quantidade
de conflitos com os consumidores, ou bem os esforços para elevar os
níveis de eficiência e qualidade, incrementando a concorrência entre as
empresas, com base na credibilidade a ser conquistada para a fidelização
do consumidor.
No primeiro caso, o direito do consumidor é
instrumento essencial para a proteção dos interesses legítimos não
apenas dos consumidores individualmente considerados, mas de toda a
sociedade, protegendo sua qualidade de vida.
A par disso, 2016 foi
cenário de inúmeras decisões que redesenham o futuro próximo do direito
do consumidor brasileiro. Um primeiro embate se viu quando a Anatel,
agência reguladora das telecomunicações, ensaiou autorizar as empresas
provedoras de acesso à internet a limitarem a capacidade de transmissão
de dados dos consumidores, inclusive em relação a contratos em curso.
A
iniciativa enfrentou forte reação da sociedade, somando-se os protestos
das entidades de defesa do consumidor e outras como a OAB. Como
resultado, a agência reguladora ensaiou um recuo, e seu presidente à
época, antecipou a saída do cargo. São favas contadas, contudo, que a
questão não foi sepultada, o que ensejará novos debates logo adiante.
Outro
tema ligado às telecomunicações, objeto de acirradas discussões, foi o
bloqueio judicial do aplicativo WhatsApp, por descumprimento de ordens
judiciais que determinavam o fornecimento das informações para fins de
investigação criminal. O debate se deu, sobretudo, em vista do excesso
ou não do bloqueio como medida coercitiva visando o cumprimento da
decisão judicial.
Ainda em relação à internet, manteve-se em 2016
as discussões sobre a disciplina de aplicativos de serviços, como o
Uber, o AirBnB e tantos outros intermediadores de serviços que estão
mudando o modo de oferta de serviços e de determinadas atividades
econômicas, em razão da tecnologia. Cresce, naturalmente, a compreensão
do caráter inelutável destas inovações, a desafiar a transformação de
amplos setores da atividade econômica, porém sempre orientados pelo
respeito aos direitos dos consumidores.
Ainda no âmbito da
regulação, no final do ano a Anac, agência reguladora da aviação civil,
editou a Resolução 400, terminando com a gratuidade do transporte de
bagagens. A principal justificativa da agência foi que a medida
permitirá custos diferenciados das passagens aéreas conforme o volume de
bagagens transportado pelo passageiro, estimulando a redução de preços a
partir de livre concorrência entre as empresas.
Todavia, a
crítica contundente à medida é, justamente, que não há qualquer garantia
desta redução, mas a contrário, fundada chance de aumento de preços com
a cobrança do transporte de bagagens. Em termos jurídicos, discute-se,
ainda, a própria definição doutrinária clássica de que o transporte de
passageiros compreende também sua bagagem pessoal. Em reação à decisão
da agência, o Senado Federal deliberou a suspensão da decisão da Anac, o
que ainda precisará ser confirmado pela Câmara dos Deputados.
No
plano judicial, igualmente, não foram poucas as questões relevantes para
o direito do consumidor. O Superior Tribunal de Justiça, neste
particular, seguiu firme em sua missão de uniformização da
jurisprudência da matéria, embora não sem controvérsias. Três temas
chamaram a atenção.
O primeiro deles diz respeito ao
reconhecimento da possibilidade de transferência da obrigação do
pagamento da comissão de corretagem na aquisição de imóveis dos
incorporadores para os consumidores, decidida pelo STJ no Recurso
Especial 1.599.511/SP, na sistemática dos recursos repetitivos.
A
tese vencedora na decisão sustentou a prevalência da transparência dos
custos da aquisição, distinguindo o valor do bem e o da comissão de
corretagem, permitindo que o valor seja pago diretamente ao consumidor, e
não embutido no preço do imóvel. A mesma decisão, contudo, reconheceu a
abusividade da cláusula que impunha o pagamento de assessoria
imobiliária pelo consumidor, a chamada “cláusula SATI”.
Outra
decisão do STJ, de grande repercussão para o direito do consumidor, diz
respeito ao prazo para o exercício da pretensão de restituição dos
valores pagos com fundamento em cláusula contratual de reajuste
considerada abusiva em contratos de plano de assistência à saúde (REsp
1.360.969/RS).
A decisão prolatada, após intensos debates,
consagrou o entendimento de que “na vigência dos contratos de plano ou
de seguro de assistência à saúde, a pretensão condenatória decorrente da
declaração de nulidade de cláusula de reajuste nele prevista prescreve
em 20 anos (artigo 177 do CC/1916) ou em 3 anos (art. 206, § 3º, IV, do
CC/2002), observada a regra de transição do art. 2.028 do CC/2002.” O
tema da prescrição das pretensões dos consumidores segue um dos mais
difíceis do direito do consumidor, em especial pelo fato do CDC fazer
referência apenas a um prazo, de cinco anos, para o exercício da
pretensão indenizatória no caso de acidente de consumo.
A extensão
da incidência da norma, para hipóteses que não se caracterizam como
danos pessoais ou patrimoniais, se deu em inúmeras situações. A decisão
do STJ, neste ponto, vai em sentido diverso, definindo que na falta de
prazo específico no CDC se deve tomar em consideração o prazo específico
do Código Civil para a pretensão de enriquecimento sem causa (no caso
da repetição e valores cobrados com fundamento em
cláusula abusiva) ou mesmo a indenizatória, ambos de três anos do
nascimento da pretensão.
Ainda sobre a própria validade de
cláusulas de reajuste por faixa etária, deve-se mencionar que o a
questão foi afetada à sistemática dos recursos repetitivos pelo STJ
(REsp 1.568.244/RJ) decidido pelo STJ em fins de novembro reconhecendo a
possibilidade de se reajustar, desde que haja previsão contratual e
sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos reguladores, assim
como “não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que,
concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o
consumidor ou discriminem o idoso.”
Na fundamentação do acórdão, o
relator, ministro Ricardo Cuêva, observa a necessidade de equilibrar o
valor das prestações decorrentes deste pacto intergeracional havido no
plano de saúde, também de modo a não onerar demasiadamente os mais
jovens, sob risco de tornar sua contratação pouco atrativa e provocar a
ruína do sistema. A crítica a este entendimento permanece em considerar
os índices de reajuste aos 59 anos de idade, permitidos pela cláusula,
como causa de exclusão dos consumidores idosos do acesso aos serviços de
assistência privada à saúde.
Ainda no STJ, o cancelamento da
Súmula 321, que definia a aplicação do CDC às relações entre entidades
abertas e fechadas de previdência privada, deu lugar à edição da súmula
563, que restringe sua incidência apenas às entidades abertas de
previdência complementar.
Já no atualíssimo tema da publicidade
infantil, o mesmo tribunal decidiu um caso-líder, o Recurso Especial
1558086/SP, definindo a publicidade de alimentos direcionada à criança,
que “utiliza ou manipula o universo lúdico infantil”, ao condicionar a
compra de um relógio pela criança-consumidora à aquisição de cinco
produtos da linha responsável pela peça publicitária, caracteriza-se
como publicidade abusiva.
O acórdão, de relatoria do Min. Humberto
Martins, teve sua razão principal sintetizada pelo voto da ministra
Assusete Magalhães, ao referir que as crianças consumidoras “tem seu
discernimento incompleto, mas que, por outro lado, tem uma enorme
capacidade de convencimento sobre os seus pais, responsáveis ou
familiares”. Trata-se da razão que inspira todas as iniciativas de
limitação, com maior ou menor intensidade, da publicidade dirigida a
crianças, tema que permanecerá na ordem do dia no próximo ano.
No mundo acadêmico vale registrar que em maio de 2016 o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor realizou o XIII Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor,
um dos maiores de sua história, na cidade de Foz do Iguaçu, congregando
mais de uma centena de painelistas e quase mil participantes. Da mesma
forma, a candidatura do Brasil para sediar a conferência mundial da
Associação Internacional de Direito do Consumidor foi aprovada pela
entidade, de modo que deverá se realizar em Porto Alegre, em 2017.
Esta
efervescência do direito do consumidor em 2016 anuncia, certamente, um
próximo ano em que permanecerá no centro das grandes questões jurídicas.
O cenário econômico e social brasileiro inspira cuidados, e nele o
direito do consumidor assume importância ainda maior, como limite e
vetor dos esforços do setor privado na busca de resultados legítimos da
atividade econômica, em harmonia com os direitos assegurados aos
consumidores.
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