Em interessante artigo, no Boletim Eletrônico do IRIB do dia 9 deste mês,
Sérgio Jacomino chama a atenção para a eventualidade de equívocos
envolvendo a penhora de direitos relacionados a imóvel objeto da
propriedade fiduciária.
Arguto jurista, Sérgio faz ampla investigação doutrinária em torno da
natureza jurídica dos direitos do fiduciário e do fiduciante, a partir
da qual conclui, com precisão, que são penhoráveis, de uma parte, o
crédito do fiduciário (acompanhado da propriedade fiduciária que
constitui sua garantia), e, de outra parte, o direito real de aquisição
do fiduciante.
De fato, os direitos do credor-fiduciário e do devedor-fiduciante são
penhoráveis, mas a desatenção à natureza jurídica peculiar de cada um
desses direitos pode dar origem a graves problemas. Jacomino refere-se, a
propósito, ao caso de uma execução trabalhista em que, não obstante o
Executado fosse apenas titular de direitos aquisitivos de determinado
imóvel, na posição de devedor-fiduciante, o mandado judicial determinou a
penhora da propriedade, e não dos direitos aquisitivos de que era
titular o executado.
À margem da precisa conceituação sobre o objeto da penhora, Jacomino
reacende instigante polêmica a propósito da natureza jurídica do direito
do fiduciante – se se trata de um direito expectativo ou de uma
propriedade sob condição suspensiva.
A dissidência deve-se ao fato de que, na alienação fiduciária, a
definição dos eventos a que estão subordinados os efeitos do contrato
não resulta da vontade das partes, mas são inerentes à própria natureza
desse negócio jurídico, que, assim, não seria condicional, mas puro e
incondicionado.
Com efeito, na alienação fiduciária o devedor, com escopo de garantia,
transmite ao credor a propriedade resolúvel de determinado imóvel e o
recobra após o pagamento da dívida ou obrigação, e esta é a estruturação
que está na lei, não sendo facultado às partes alterá-la (Lei 9.514/97,
arts. 22 e 25).
Enquanto não verificados esses eventos (extinção da propriedade para o
fiduciário e aquisição para o fiduciante), o fiduciante é titular de um
direito condicional à obtenção da propriedade.
Sendo resolutiva para o adquirente (fiduciário), a condição é necessariamente suspensiva para o alienante (fiduciante)[1]
de modo que esses são “investidos de direitos opostos e complementares,
e o acontecimento que aniquila o direito de um consolidará, fatalmente,
o do outro.”[2]
O direito do fiduciante nasce no momento mesmo em que contrata a
transmissão da propriedade sob condição resolutiva, na alienação
fiduciária, pois é aí que começa a se produzir o fato complexo, de
formação sucessiva, a que o direito faz corresponder, quando concluído, o
efeito aquisitivo do direito de propriedade; a propósito, Galvão Telles
observa que uma das hipóteses características de “expectativa é a dos
contratos ou outros negócios jurídicos celebrados sob condição
suspensiva.”[3]
Semelhante, sob esse aspecto, é a pendência que se verifica na reserva
de domínio, que Serpa Lopes, invocando Fortunato Azulay, vê como
condição que suspende a execução do contrato até o final pagamento do
preço.[4]
Dir-se-ia que não há na alienação fiduciária uma condição própria,
tendo em vista que os eventos que darão eficácia ao contrato são
definidos por lei, mas imprópria, como são algumas condições que, na
definição de Bevilacqua, “apresentam a forma, sem ter a essência de
condições. Tais são as necessárias, as conditiones juris, as in
preteritum...”[5]
A matéria, sem dúvida, é rica o suficiente para alimentar interessante
debate, mas, como bem assinalou Jacomino, seja qual seja a qualificação
do direito do fiduciante, ele é penhorável.
Tem razão Jacomino também quanto ao objeto da penhora, seja sob a perspectiva do fiduciário ou do fiduciante.
Quanto ao credor-fiduciário, o objeto da penhora há de ser seu direito
de crédito, acompanhado do objeto da garantia fiduciária. Assim, em
processo de execução judicial movido contra o credor-fiduciário, serão
objeto de hasta pública o crédito e sua garantia; no leilão, ao adquirir
o crédito, o arrematante ficará sub-rogado nos direitos e obrigações
decorrentes do contrato de alienação fiduciária, tornando-se
proprietário fiduciário em substituição ao credor-fiduciário; por força
da sub-rogação, o arrematante se apropriará do crédito e, completando-se
o recebimento do crédito que foi penhorado, será obrigado a dar
quitação ao devedor-fiduciante e fornecer-lhe o “termo de quitação”.
No outro pólo está o devedor-fiduciante; este é titular de um direito
de aquisição sob condição suspensiva, que pode ter como objeto,
igualmente, bens móveis, imóveis ou, ainda, direitos de crédito. O
direito do devedor-fiduciante é igualmente penhorável.
Com efeito, Pontes de Miranda alinha entre os direitos expectativos os
derivados de negócios a prazo ou sob condição, observando que tais
direitos integram o patrimônio do expectante (aqui, devedor-fiduciante)
e, assim sendo, “pode ser arrestado, penhorado ou entrar em massa
concursal...”[6]
Jacomino lembra, a propósito, que tais direitos são suscetíveis de
cessão (Lei 9.514/97, art. 29), não deixando dúvida quanto à
penhorabilidade dos direitos do devedor-fiduciante; ora, diz ele,
“ostentando um conteúdo econômico, direito atual disponível, parece
lógico que esse direito também pudesse ser objeto de constrição judicial
e conseqüentemente alienação forçosa.”[7]
Nesse caso, o objeto da penhora será o direito de aquisição do domínio,
isto é, o direito que tem o devedor-fiduciante de ser investido na
propriedade plena do bem, desde que efetive o pagamento da dívida que o
onera. Assim, cogitando-se de penhorar os direitos do
devedor-fiduciante, o objeto da penhora não será a propriedade, que ele
ainda não tem,[8]
mas tão somente os direitos aquisitivos. A jurisprudência recente
invocada por Jacomino também não deixa dúvida quanto ao objeto da
penhora dos direitos do devedor-fiduciante.
O valor econômico dos direitos aquisitivos, para efeito da penhora, merece especial atenção.
Com efeito, na medida em que a aquisição definitiva do direito de
propriedade, por parte do devedor-fiduciante, é condicionada ao
pagamento da dívida, que em geral se faz parceladamente, a apuração do
valor econômico do direito aquisitivo penhorável deve levar em conta,
entre outras peculiaridades do caso específico, o valor de mercado do
bem, descontado do valor do saldo devedor e encargos contratuais.
Realizado o leilão dos direitos aquisitivos penhorados, o arrematante
ficará sub-rogado nos direitos e obrigações do devedor-fiduciante,
substituindo-o na relação contratual com o credor-fiduciário; neste
caso, torna-se titular dos direitos aquisitivos e obriga-se a resgatar o
saldo da dívida em cumprimento da condição a que está subordinado o
contrato.
A penhora dos direitos do devedor-fiduciante, como bem lembrou Narciso
Orlandi Neto, citado por Jacomino, não atinge o direito do
credor-fiduciário, pois o que ocorre é apenas a substituição do
devedor-fiduciante, que deixa de ser o devedor original e passa a ser o
arrematante.
Em qualquer dos casos – seja referindo-se aos direitos do credor ou aos
direitos aquisitivos do devedor – a penhora deve ser registrada no
Registro competente, seja Registro de Imóveis ou Registro de Títulos e
Documentos (neste último caso, se se tratar de bem móvel). Quando a
propriedade fiduciária tiver por objeto bem imóvel, o registro se faz
com fundamento nos §§ 4° e 5° do art. 659 do Código de Processo Civil.
Em suma, embora a matéria possa parecer simples, o artigo de Jacomino
foi oportuno não só por estimular o debate, mas, sobretudo, por definir
com clareza a natureza do direito que deve ser objeto da penhora, em um
ou no outro caso.
Notas
[i]
Melhim Namem Chalhub é advogado no Rio de Janeiro, autor do livro
“Negócio Fiduciário”, com o qual propõe ao debate anteprojeto de lei de
sistematização dos atos de natureza fiduciária.
[1] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos registros públicos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, n. 544.
[2] GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Da propriedade resolúvel. São Paulo: RT, 1979, p. 67.
[3]
Expectativa jurídica (algumas notas), O Direito, 1 (1958), 2-6, apud
Luís Lima Pinheiro, A cláusula de reserva da propriedade. Coimbra:
Livraria Almedina, 1988, p. 54.
[4] LOPES, Miguel Maria de Serpa, Tratado..., cit., n. 204.
[5]
BEVILACQUA, Clóvis, Teoria geral do direito civil. 2. ed., Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p. 297. No mesmo sentido,
ESPÍNOLA, Eduardo, Sistema do direito civil brasileiro, Rio de Janeiro:
Conquista, 4. ed., 1961, v. II, p. 298.
[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, § 577, n° 9.
[7] JACOMINO, Sérgio, Penhora – alienação fiduciária de coisa imóvel. Algumas considerações sobre o registro. Boletim Eletrônico IRIB # 2245 – 09/01/2006, in “Biblioteca Virtual Dr. Gilberto Valente da Silva.
[8]A
situação tem pontos de contato com a caução de direito aquisitivo sobre
imóvel, isto é, a caução do direito do promitente comprador ou do
promitente cessionário de imóvel, bem como do cessionário do promitente
comprador (Lei 9.514/97, arts. 17 e 21).
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