Nas decisões judiciais, nos textos das leis, nos livros que lemos, as
menções a conceitos jurídicos indeterminados, normas de conteúdo
intangível, cada vez mais se mostram comuns e corriqueiras. E a noção de
dignidade da pessoa humana está entre as mais representativas do
fenômeno, perdida na sua amplitude semântica significa tudo, ou quase
tudo, produzindo sentidos cada vez mais rarefeitos.
Isto não ocorre quando tratamos das impenhorabilidades. Pelo menos
aqui, na concreção das regras do Código de Processo Civil, sabemos que a
dignidade da pessoa humana se manifesta com clareza, limitando o poder
executivo do Estado-juiz. Esta constatação é importante e mostra a
dimensão constitucional das proteções conferidas pelo Código de Processo
Civil à figura do executado.
Assentada essa premissa, pretendemos questionar neste artigo se a
garantia constitucional, concretizada pela regra da impenhorabilidade
pode ou não ser renunciada pela parte que contraiu a obrigação, pela via
do negócio jurídico processual (CPC, art. 190).
A ideia é simples: e.g. sabendo as partes contratantes que a
parte obrigada apenas possui um bem, o qual seria em tese impenhorável,
acordam que, para que o negócio jurídico seja viável, deverá esta
renunciar ao beneficio legal, caso venha a ser executada judicialmente
pela obrigação.
Estamos tratando de negócio válido? A resposta apenas poderá ser
concedida no caso concreto. No entanto, certamente não existe uma
proibição a priori. Em algumas situações as circunstâncias permitirão sim negócio de tal natureza.
Explicamos.
A penhora é o ato que marca o início dos atos de expropriação,
fazendo valer a responsabilidade patrimonial do executado, o qual passa a
responder com seu patrimônio pelas obrigações que contraiu.
Ocorre que, visando a proteger valores fundamentais relativos ao ser
humano, normalmente relacionados à manutenção de suas condições mínimas
de vida, o Código não submete todo o patrimônio do devedor aos atos de
expropriação, tornando parte de seu patrimônio impenhorável.
O rol do artigo 833 do Código de Processo Civil é extenso, protegendo
da execução o único bem imóvel usado como residência pelo devedor, os
móveis que guarnecem a residência, as vestimentas, os salários,
vencimentos, soldos, etc, até determinado valor. Vejamos:
Art. 833. São impenhoráveis: I – os bens inalienáveis e os
declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução; II – os móveis,
os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do
executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as
necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida; III – os
vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se
de elevado valor; IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os
salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os
pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por
liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua
família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de
profissional liberal, ressalvado o § 2o; V – os
livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou
outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do
executado; VI – o seguro de vida; VII – os materiais necessários para
obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas; VIII – a pequena
propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela
família; IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas
para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social; X –
a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40
(quarenta) salários-mínimos; XI – os recursos públicos do fundo
partidário recebidos por partido político, nos termos da lei; XII – os
créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de
incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.
Para que possamos identificar, ou ao menos sinalizar, quais situações
admitiriam, ou não, renuncia à proteção legal precisamos antes saber
se, na ponderação dos princípios conflitantes (proporcionalidade em
sentido estrito), seria possível valorizar a efetividade do processo e a
autonomia privada (também protegidos constitucionalmente), sem
configurar situação na qual o devedor seria levado a situação degradante
de vida, sem lar ou sem condições de custeio do mínimo necessário para
uma vida digna.
Isto pode sim ocorrer nas hipóteses e.g. em que o devedor, a
despeito de perder pela penhora sua casa própria, tem fonte de renda
remanescente, bem como capacidade de trabalho para custear outro local,
ainda que mediante aluguel ou em padrão social inferior. Do mesmo modo,
as partes podem renunciar aos limites financeiros de impenhorabilidade
do salário, permitindo penhora sobre quantias, embora inferiores as
previstas em lei, ainda suficientes para a garantia de uma vida digna.
São limites claros que, ao mesmo tempo que em valorizam a autonomia
privada e a efetividade do processo, não eliminam por completo a
necessidade de respeito a condições mínimas de vida do executado. Caso
isso ocorresse, certamente, tratar-se-ia de caso de nulidade.
A situação, embora tratada neste trabalho sob o rótulo de negócio
jurídico processual, instituto cobiçado do Novo Código de Processo
Civil, não representa grande novidade. Ainda à luz do Código revogado, o
Superior Tribunal de Justiça em variados julgados reconheceu ser válida
a hipoteca estabelecida sobre bem de família, desde que demonstrado que
a dívida contraída se reverteu em favor da entidade familiar (STJ, 3ª
T., AgRg no Ag 921.299/SE, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 28/11/2008).
Noutro caso, pautando-se da noção de boa-fé, a mesma Corte admitiu a
penhora sobre bem de família indicado pelo devedor a penhora, entendendo
especialmente que este ato represente negocio unilateral de renúncia do
benefício legal:
Não se deve desconstituir a penhora de imóvel sob o argumento de
se tratar de bem de família na hipótese em que, mediante acordo
homologado judicialmente, o executado tenha pactuado com o exequente a
prorrogação do prazo para pagamento e a redução do valor de dívida que
contraíra em benefício da família, oferecendo o imóvel em garantia e
renunciando expressamente ao oferecimento de qualquer defesa, de modo
que, descumprido o acordo, a execução prosseguiria com a avaliação e
praça do imóvel. (STJ, REsp 1.461.301-MT, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 5/3/2015, DJe 23/3/2015).
De fato, o próprio precedente reconhece que, de um modo geral, “a
jurisprudência do STJ inclinou-se no sentido de que o bem de família é
impenhorável, mesmo quando indicado à constrição pelo devedor”. Porém,
não há duvidas de que, diante de certas condições, mesmo sob a égide do
Código de 1973, já era possível excepcionar a impenhorabilidade pelo
acordo das partes.
A tese, portanto, deve ganhar força diante da permissão geral para
negócios processuais inerente ao artigo 190 do Código de Processo
Civil, exigindo que o aplicador do direito compreenda a necessidade de
identificar a efetiva relevância da vontade para o processo,
afastando-se da visão paternalista pela qual caberia ao juiz proteger a
parte das consequências dos atos da própria parte.
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