As discussões que circundam o inquérito policial são frequentemente
marcadas por uma superficialidade proposital e manchadas por interesses
corporativistas, com desiderato de diminuir o valor desse indispensável
mecanismo persecutório.
Não raras vezes, parcela da doutrina e
jurisprudência aborda o tema com simplificações incompatíveis com a
importância da investigação policial. Ignora o fato de a grande maioria
dos processos penais, locus onde é sacramentada a
responsabilidade penal ou não do sujeito, ser calcada exatamente no
inquérito policial. Em geral, o processo penal segue a sorte da
investigação policial, de modo que resultado da etapa inicial acaba por
determinar o deslinde de toda a persecução penal.
Pois bem,
costuma-se inserir dentre as características do inquérito policial (que
compõem o próprio conceito dessa investigação policial) a
informatividade. Parte da doutrina repete, sem maiores reflexões e por
vezes com certa dose de menosprezo, que o inquérito policial é um
procedimento “meramente informativo”.
Com essa frase reducionista é
passada a errada mensagem de que o valor probatório do inquérito
policial é insignificante e apenas relativo, e que esse instrumento
investigativo não produz provas (mas unicamente elementos informativos).
Transmite-se o equivocado recado de que não é preciso maior atenção à
fase investigativa, pois nada do que ali é colhido pode amparar eventual
condenação, e ocasionais vícios não contaminarão a ação penal.
Não
se discute que o valor probatório de um elemento de convicção colhido
pelo Estado depende da incidência dos princípios do contraditório e da
ampla defesa. Realmente a força probante da informação exsurge da
participação dialética das partes. A escorreita produção da prova
depende da contestação defensiva.
Com efeito, é a obrigatoriedade
ou facultatividade de a defesa ter ciência e se manifestar com relação
ao dado angariado que confere a ele o status de prova ou de elemento
informativo, e não o fato de ter sido produzido na etapa policial ou
processual. Em outras palavras, nada impede que o conhecimento alcançado
na fase policial seja considerado tecnicamente prova e sirva como base
exclusiva da condenação.
Sabe-se que o fato de o inquérito policial ser inquisitivo[1] não significa que o contraditório e a ampla defesa sejam completamente afastados da fase pré-processual. Esses princípios incidem na investigação policial, muito embora de forma mitigada[2].
Pode, sim, haver participação da defesa, não de forma contemporânea,
mas após a conclusão das diligências e sua juntada nos autos do
inquérito policial (artigo 7º do Estatuto da OAB e Súmula Vinculante 14
do STF). Essa atuação defensiva meramente facultativa realmente não tem o
condão de conferir valor probatório ao elemento colhido, que será
informativo e não poderá amparar com exclusividade uma condenação
(deverá ser conjugado com alguma prova). O que não significa que o
elemento informativo seja inútil: pode tranquilamente subsidiar a
decretação de medidas cautelares e o recebimento da denúncia (ex:
declaração da vítima, depoimento da testemunha e interrogatório do
suspeito).
De outro lado, a inquisitoriedade também não impede que
o contraditório e a ampla defesa quanto a um elemento produzido pela
polícia judiciária incidam de modo obrigatório, postergado para o
processo penal. É o que ocorre com as provas cautelares e não
repetíveis, elementos de convicção presentes na esmagadora maioria dos
inquéritos policiais. Nesses casos, a atuação da defesa ocorrerá
necessariamente, conquanto de maneira diferida (na fase processual),
conferindo valor probatório a essas informações.
Provas cautelares
são as que devem ser colhidas de imediato em razão do risco de
desaparecimento do objeto da prova em virtude do decurso do tempo,
exigindo, em regra, autorização judicial (ex: interceptação telefônica,
dados de e-mails e busca e apreensão domiciliar) ou podendo ser
requisitada diretamente pelo delegado de polícia (ex: ação controlada no
crime organizado e dados pretéritos de ERBs). Já as provas não
repetíveis (irrepetíveis) são as que devem ser produzidas rapidamente
sob pena de desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte da
prova, não dependendo, regra geral, de ordem judicial (ex: perícia de
lesões corporais ou conjunção carnal sobre a vítima, de eficiência de
arma de fogo, de falsificação de documento e de constatação de droga),
ou precisando de chancela do juiz (ex: perícia de RX sobre o suspeito).
Por
isso mesmo, dispõe o artigo 155 do CPP que o juiz deve formar sua
convicção com base nas provas produzidas em contraditório, “não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não
repetíveis e antecipadas”. É preciso cuidado com a interpretação dessa
norma, pois a forma a contrario sensu de o legislador redigir
induz o intérprete mais desatento a acreditar que a investigação colhe
apenas elementos informativos, e eventual produção de prova é meramente
excepcional, quando na verdade é a regra. O que a lei dispõe é que a
condenação não pode ser calcada exclusivamente em elementos informativos
colhidos no inquérito policial, mas pode perfeitamente se basear em
provas cautelares e não repetíveis angariadas pela polícia judiciária (e
submetidas a contraditório postergado), ou ainda em elementos de
informação corroborados por elementos probatórios.
Dizer que o
elemento colhido na investigação é informativo, e somente com a ciência e
manifestação da defesa durante o processo passa a ser probatório,
consiste em mero jogo de palavras, não mudando o fato de a prova ter
sido colhida no bojo do inquérito policial. A prova cautelar ou
irrepetível não é produzida na fase judicial, mas na etapa
investigativa. É a polícia judiciária que adota a técnica investigativa,
providenciando análise da coisa ou pessoa e extraindo a informação.
Fica para o Judiciário apenas a tarefa de abrir o necessário espaço para
a manifestação da defesa. Mas a colheita da prova ocorreu no inquérito
policial, sob presidência do delegado de polícia.
A própria
doutrina reconhece que “o contraditório sobre a prova, também conhecido
como contraditório diferido ou postergado, traduz-se no reconhecimento
da atuação do contraditório após a formação da prova”[3].
É dizer, nesse caso, o contraditório e a ampla defesa são elementos
extrínsecos à produção da prova, incidindo quando a prova já foi
formada. Funcionam como uma chancela de legitimidade, ao possibilitar
que a defesa conteste eventuais equívocos na colheita da prova concebida
pela polícia judiciária. Ademais, a defesa não necessariamente atacará o
modo de produção da prova, podendo se limitar a pedir a aplicação da
menor pena possível ao acusado. A prova em si é a colheita da
informação, a captura dos dados, com respeito às eventuais exigências de
autorização judicial (cláusula de reserva de jurisdição), de forma (ex:
lavratura de auto circunstanciado na busca e apreensão domiciliar,
degravação da conversa telefônica, confecção de laudo de perícia ad hoc por dois peritos nomeados) e de método (ex: inexigibilidade de autoincriminação etc).
Daí o ensinamento da doutrina:
Embora
seja recorrente na doutrina a expressão de que não se produz prova no
inquérito policial, tal expressão apresenta-se falaciosa, uma vez que a
quase totalidade dos elementos probatórios carreados às ações penais são
identificados ou produzidos no curso da investigação criminal na fase
pré-processual, ou seja, no curso do inquérito. Ou seja, as tão
conhecidas “operações policiais”, em sua grade maioria, não são nada
além do que uma fase de um inquérito policial, destinada à arrecadação
de provas e indícios de autoria e materialidade de infrações penais.
(...) É perceptível por mera observação empírica, a qualquer operador na
seara do Direito Penal, que o inquérito policial é o mais importante
instrumento de colheita de provas de infrações penais[4].
Com
efeito, a obtenção da informação pelo delegado de polícia na primeira
etapa da persecução penal não é ontologicamente melhor ou pior do que
aquela feita pelo juiz na segunda fase da persecutio criminis. A
diferença reside tão só na desnecessidade de a polícia judiciária
comunicar previamente a defesa sobre a diligência policial (de maneira a
preservar o elemento surpresa imprescindível para a eficácia da
investigação) e na facultatividade de participação da defesa no
inquérito policial. Essa peculiaridade nada tem a ver com a garantia de
direitos do imputado e com o caráter democrático da persecução penal,
que permanecem incólumes desde essa etapa policial até a fase
processual. O objetivo é somente, respeitando as garantias
constitucionais, dotar o inquérito policial de um mínimo de efetividade,
para que o Estado-investigação possa se reerguer face à situação de
desnível provocada pelo próprio criminoso. Afinal, fossem os atos
investigatórios precedidos de aviso anterior ao investigado, seria
praticamente inviável a localização de fontes de prova e a produção do
material probatório.
Se os aspectos teóricos sobre o valor
probatório dos elementos produzidos no inquérito policial são de clareza
meridiana, também saltam aos olhos as evidências práticas. Isso porque,
grosso modo, apenas as oitivas feitas em sede policial não contam com
contraditório postergado, sendo repetidas em juízo e portanto
qualificadas como elementos de informação. Praticamente todos os demais
elementos, informações extraídas de pessoas e coisas mediante
diligências policiais (antecedidas ou não de ordem judicial), são
provas. Até porque a maior parte dos delitos deixa vestígios, sendo
indispensável colheita da prova pericial (artigo 159 do CPP).
Nesse
panorama, fácil entender porque é o inquérito policial o responsável
por fornecer o lastro probatório suficiente não unicamente para o
recebimento da denúncia (justa causa), mas também para a própria
condenação (prova para além da dúvida razoável).
Vale ressaltar
também que persistir com a reducionista afirmação de que o inquérito
policial traduz peça meramente informativa incentiva profissionais
incautos a não se preocuparem com a atuação na fase policial, pois
supostamente não teria qualquer relevância para o desfecho do processo
penal. E assim agindo a defesa, quando abrir os olhos no adiantar da
persecução penal, com as provas devidamente produzidas, pode ser tarde
demais para a adoção de qualquer estratégia defensiva minimamente
eficaz.
Em adição, como grifa a doutrina:
Não
se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a
liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida
assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa”
(como reducionistamente foi rotulada ao longo de décadas), podemos
retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)...
Sem
falar que também serve para condenar pessoas... (...) Alguém vai seguir
com o discurso de peça meramente informativa à luz dessa realidade?[5].
Logo,
é totalmente equivocada a afirmação de que o “inquérito policial produz
apenas elementos informativos” ou que o “inquérito policial é mera peça
informativa”. Nada obsta que a polícia judiciária produza provas no
curso da investigação, o que significa dizer que o inquérito policial
possui valor probatório e deve ser olhado com atenção pelos atores
jurídicos da persecução penal, especialmente a defesa.
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