A sentença arbitral deve seguir o precedente judicial do novo CPC? Por Andre Vasconcelos Roque e Fernando da Fonseca Gajardoni
Hoje vamos falar de um assunto para o qual nos chamou a atenção
recente e importante texto de José Rogério Cruz e Tucci [1] e que tem
causado discussão entre os profissionais do Direito que atuam na
arbitragem. Provocados, ainda, por alguns alunos a respeito do assunto,
resolvemos adentrar na controvérsia.
Afinal, a sentença proferida por árbitros deve observar os
precedentes vinculantes do novo CPC? E se isso não ocorrer, quais as
consequências?
1. Vinculação ao precedente judicial e descabimento da reclamação contra a sentença arbitral que não segue precedente judicial
Vamos começar falando dos pontos em relação aos quais nós concordamos com a posição exposta por Cruz e Tucci.
De acordo com Cruz e Tucci, a sentença arbitral se equipara à
judicial (o que já ocorria desde 1996), por força dos arts. 18 da Lei de
Arbitragem (Lei nº 9.307/1996) e 515, VII do CPC/2015. Ainda segundo
Cruz e Tucci, “escolhido de comum acordo pelas partes o Direito
brasileiro para reger determinada arbitragem, tal ordenamento jurídico,
em todas as suas dimensões, deverá então servir de norte para
fundamentar a futura sentença que colocará termo ao respectivo processo
arbitral”.
Por isso, “assim como o juiz togado, o árbitro não poderá se afastar
da interpretação, acerca de determinado texto legal, que desponta
consagrada pelos tribunais pátrios”. Conclui-se, dessa maneira, que
também a sentença arbitral deve observar os precedentes a que se refere o
art. 927 do CPC/2015.
Até aqui, não vemos razão para discordar do texto. A aplicação do
direito brasileiro não se esgota no texto legal e deve o árbitro, sob
pena de promover interpretação peculiar – ou seja, contrária à isonomia e
à segurança jurídica –, observar os precedentes existentes sobre a
questão submetida à sua apreciação [2].
Por outro lado, assim como o juiz togado, pode o árbitro lançar mão das técnicas de superação de precedentes (distinguishing ou distinção / overruling
ou superação) para afastar sua incidência, destacando a inadequação ao
caso concreto ou a superação do julgado paradigma, mediante
fundamentação específica e qualificada.
Também estamos de acordo que, em que pese estar a sentença arbitral
sujeita à incidência dos precedentes vinculantes, não cabe reclamação
pela sua inobservância. [3]
É que, como apontado por Cruz e Tucci, “não é propriamente a
autoridade hierárquica da qual provém o precedente que determina ao
árbitro a sua observância”, mas o simples fato de que a norma jurídica
generalizante extraída do precedente (ratio decidendi) compõe o
ordenamento jurídico brasileiro, o qual deve ser observado em sua
inteireza pelo árbitro, desde que as partes tenham ajustado a regência
pelo Direito brasileiro [4]. Inversamente, a reclamação pressupõe
autoridade hierárquica para o seu cabimento – tanto assim que tal via
processual não é admitida quando se alega que o tribunal desrespeitou
seus próprios precedentes [5].
Conclui-se, dessa maneira, que a simples inobservância dos
precedentes vinculantes do novo CPC não é suficiente para abrir a via da
reclamação.
2. Descabimento da ação anulatória contra sentença arbitral que não segue o precedente judicial
Para além de não caber a reclamação, resta saber se é admissível ação
anulatória contra a sentença arbitral que não segue o precedente
judicial.
Para Cruz e Tucci, se o árbitro simplesmente ignora um precedente judicial, “configura-se error in iudicando
e, nesse caso, não cabe ação anulatória da sentença, porque vedado ao
Judiciário o controle intrínseco da justiça ou injustiça do julgamento
do processo arbitral”.
Contudo, o professor da USP abre uma exceção a esse raciocínio no
caso em que o árbitro deixa de seguir enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado pela parte, “não tomando o cuidado
de explicar que o julgado paradigma não se aplica ao caso concreto, ou
mesmo, que já se encontra superado pela obsolescência”. Tal exceção é
ainda alargada de forma bastante expressiva em seu texto por força do
aforismo, iura novit curia, de maneira que “mesmo que a tese
jurisprudencial, embora relevante, não seja invocada pela parte
interessada, a sentença encontra-se eivada de nulidade, se o árbitro
desprezá-la de forma injustificada”.
Considera Cruz e Tucci que a regra do art. 489, § 1º, VI do CPC/2015,
segundo a qual não se considera fundamentada a decisão judicial que
“deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente
invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em
julgamento ou a superação do entendimento”, deve ser aplicada à
sentença arbitral. Assim, se o árbitro não justifica o afastamento de
determinado precedente, sua sentença poderá ser invalidada.
Acreditamos, contudo, que tal conclusão abre margem a uma
possibilidade amplíssima de ataque a sentenças arbitrais e em limites
incompatíveis com a Lei nº 9.307/1996.
Não discordamos de Cruz e Tucci quando defende a aplicação do art.
489, § 1º, VI do CPC/2015 às sentenças arbitrais. Não por incidência
subsidiária do CPC ao processo arbitral – tese que apenas se sustenta se
as partes assim ajustarem –, mas porque a Lei de Arbitragem determina
que a sentença arbitral (pelo menos a nacional) [6] deve ser
fundamentada (art. 26, II da Lei nº 9.307/1996). O art. 489, § 1º do
CPC/2015 apenas explicitou o dever de motivação das decisões judiciais,
já que a jurisprudência formada no CPC/1973 permitiu que, não raras
vezes, subsistissem provimentos judiciais que contemplavam verdadeiros
“simulacros de fundamentação”.
Nossa discordância reside no fato de que a sentença arbitral
fundamentada de forma insuficiente possa ser atacada por meio de ação
anulatória.
O art. 32, III da Lei nº 9.307/1996, segundo o qual é nula a sentença
arbitral se não contiver os requisitos do art. 26 (entre os quais, a
fundamentação), com todas as vênias, não nos parece que deva ser lido na
extensão que lhe atribui Cruz e Tucci. Tal interpretação permitiria
verdadeira revisão judicial da justiça da decisão proferida pelo árbitro
– tudo o que se quis evitar na Lei nº 9.307/1996, quando se extinguiu a
exigência de homologação judicial da sentença arbitral.
Se fosse possível questionar a sentença arbitral por não observar
precedente judicial, restariam esvaziadas praticamente todas as
vantagens atribuídas à arbitragem. As partes, quando celebram convenção
de arbitragem, querem justamente evitar o Judiciário e a possibilidade
de rediscussão da controvérsia perante o juiz togado.
A se permitir questionar em juízo o error in iudicando do
árbitro, a ação anulatória do art. 33 da Lei nº 9.307/1996 se
transformaria em uma espécie de recurso de cassação da sentença
arbitral, assumindo amplitude muito maior que a estabelecida até então
pela Lei de Arbitragem e trazendo grande insegurança jurídica.
Parece-nos artificial a distinção que Cruz e Tucci tentou traçar
entre sentenças arbitrais que não observam o precedente judicial tout court
(que não poderiam ser questionadas no Poder Judiciário) e aquelas que
deixam de aplicar o precedente, não tomando o cuidado de explicar que o
julgado paradigma não se aplica ao caso concreto (as quais incorreriam
em nulidade passível de controle pelo juiz). Na prática, os interessados
em impugnar em juízo a sentença arbitral não hesitarão em argumentar
que o árbitro deixou de apresentar a fundamentação necessária para
afastar um precedente alegado pela parte ou mesmo que sequer foi
cogitado pelo árbitro.
Não se quer com isso minimizar a importância do precedente vinculante
no novo CPC, mas apenas evitar que seja a causa da ruína da arbitragem
no Brasil.
Ainda que o precedente judicial tenha assumido particular importância
no CPC/2015, não está acima da lei – e a exigência de integridade da
jurisprudência (art. 926, caput) é evidência disso [7]. Se o
árbitro, em sua sentença, simplesmente viola literal disposição de lei,
não há previsão de ação anulatória por este motivo – ao contrário da
decisão judicial transitada em julgado, em que se admite a ação
rescisória por violação manifesta à norma jurídica (art. 966, V).
Não há razão para que a inobservância ao precedente pela sentença
arbitral seja tutelada de forma mais enérgica que a violação à lei.
Embora indesejável, trata-se de error in iudicando pelo árbitro, o qual escapa aos domínios da ação anulatória, que não pode, nem deve, ser banalizada no Brasil.
Enfim, não parece correto, nem conveniente, sustentar o cabimento de
ação anulatória contra sentença arbitral que não aplica o precedente
judicial.
* * *
O novo CPC é, sem dúvida nenhuma, a mais importante alteração legislativa no campo do direito processual das últimas décadas.
Evidentemente, suas regras terão influência em diversos outros campos
do Direito que não o processo civil estatal, e a arbitragem não é
exceção. O texto de José Rogério Cruz e Tucci tocou em ponto sensível
para os procedimentos arbitrais na vigência do novo CPC, o qual merece
detida reflexão.
Nada obstante, antes de se sustentar a incidência das regras do
CPC/2015 à arbitragem, é preciso verificar se as novas disposições são
compatíveis ou se há o risco de causar a morte do paciente pela rejeição
do órgão transplantado. Esse parece ser o caso da ação anulatória
contra a sentença arbitral que deixa de aplicar precedente judicial.
[1] http://www.conjur.com.br/2016-nov-01/paradoxo-corte-arbitro-observancia-precedente-judicial
[2] Nesse sentido, em relação à súmula vinculante, CAMARGO, Júlia Schledorn de. A influência da súmula persuasiva e vinculante dos tribunais superiores brasileiros na arbitragem.
Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da PUC. São
Paulo, 2013, p. 165-168. Contra, entendendo que o árbitro não deve
seguir nem mesmo as súmulas vinculantes, DINAMARCO, Júlia. O árbitro e
as normas criadas judicialmente: notas sobre a sujeição do árbitro à
súmula vinculante e ao precedente. In: LEMES, Selma Ferreira; CARMONA,
Carlos Alberto; MARTINS, Pedro Batista (Coords.). Arbitragem: estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares, in memoriam. São Paulo: Atlas, 2007, p. 69-70; PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012, p. 286-287.
[3] Contra, porém, entendendo pelo cabimento da reclamação, FONSECA, Rodrigo Garcia da. Reflexões sobre a sentença arbitral. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 6, 2005, p. 59.
[4] Nessa direção, FERRAZ, Rafaella.
Arbitragem comercial internacional e enunciado de súmula vinculante pelo
Supremo Tribunal Federal. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 17, 2008, p. 98.
[5] Exemplificativamente, STF, Rcl
4.591-AgR, Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julg. 8.10.2009 e Rcl-AgRg
3.916, Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, julg. 12.6.2006.
[6] Não vamos entrar aqui na discussão
se as sentenças arbitrais estrangeiras, para serem homologadas no
Brasil, também necessitariam estar fundamentadas. É possível que o
ordenamento jurídico estrangeiro, por exemplo, dispense o requisito da
fundamentação. Essa discussão, por transbordar dos limites do texto,
ficará para outra oportunidade.
[7] Integridade significa, em
apertadíssima síntese, decidir em conformidade com o Direito, como
decorrência da unidade do ordenamento jurídico.
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