Tutela de saúde de alto custo e a obrigatoriedade de fornecimento: uma solução necessária, por Francisco Glauber Pessoa Alves

Tema relevante pende de julgamento em repercussão geral no STF acerca da saúde pública e na formulação de políticas públicas, a saber, a controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo (STF, Pleno, RE 566.471/RN, rel. Min. Marco Aurélio, DJe-157 07/12/2007).  A recém-empossada Presidente, Ministra Carmem Lúcia, segundo noticia a imprensa, pautará o assunto para julgamento proximamente. De acordo com dados da própria Corte, 26.388 (vinte e seis mil trezentos e oitenta e oito) processos estão sobrestados aguardando a definição dessa matéria.
Até aqui, aquele Colegiado vem seguindo, em linhas gerais, o que decidiu seu Pleno na STA n. 175 AgR/CE, cujo relator foi o Ministro Gilmar Mendes[1]. Dito julgado destaca-se por ter sido proferido posteriormente às Audiências Públicas por si iniciadas, havidas em 28, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio do ano de 2009, tendo, inclusive, ensejado o início do programa do CNJ Fórum do Judiciário para a Saúde. A partir da análise dos votos diversos, destacando-se a preponderância do relator (com ampla menção à doutrina e às informações hauridas na audiência pública), então presidente do STF, pode-se destacar uma série de nortes hermenêuticos: 1) não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, embora haja um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde; 2) aprestação individual da saúde estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do SUS, a ser demonstrado e fundamentado de forma clara; 3) a observância de um viés programático ao direito à saúde, pois sempre haverá uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico ou procedimento cirúrgico, uma nova doença ou a volta de uma doença supostamente erradica; 4) há de ser considerada a proibição do art. 12 da Lei n. 6.360/76 (industrialização, exposição à venda e consumo de medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos antes de registrado no Ministério da Saúde), com alguma abertura por conta da viabilidade excepcional de autorização de importação, pela ANVISA, de medicamento não registrado (com base na Lei n. 9.782/99); 5) em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade de política de saúde existente; 6) medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas de seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso; 7) o Estado não pode ser condenado a fornecer tratamentos experimentais; 8) a ausência de tratamento clínico por não estar inserido em Protocolos Clínicos e das Diretrizes Terapêuticas, por si só, não afasta a sindicabilidade jurisdicional, sendo essenciais, no entanto audiência e instrução probatória.
Considerando ser o STF um tribunal de direito e não de fato, apenas por exceção os casos concretos são enfrentados com maior vagueza. Ainda assim, vários julgados têm se referido ao precedente acima como linha de argumentação (e.g.: STF, STA 761 AgR/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe-101  29.05.2015; STF, 2ª. T., ARE 876.459/RN, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-081 04/05/2015; STF, 1ª. T., RE 848.086/RN, rel. Min. Roberto Barroso, DJe-122 24/06/2015; STF, 1ª. T., ARE 799.136/RS, rel. Min. Dias Toffoli, DJe-161 21/08/2014).
No campo infraconstitucional, considerando a existência de vários tribunais e turmas recursais no país, no âmbito federal e estadual, que processam causas de saúde contra o Poder Público, é que surge maior riqueza de casos judicialmente postos e soluções apresentadas. As decisões, via de regra, caminham pela tez pró-prestação, sem análise aprofundada da reserva do possível.
Há uma aparente desuniformidade quanto às decisões que envolvem saúde e a extensão da responsabilidade pública, ora pendendo para a fundamentação estritamente dogmática e genérica (e, portanto, teórica), ora para uma melhor aquilatação de dados fáticos diversos que possam influenciar o direito aplicável à espécie. O campo cinzento entre a negativa geral (menos comum) e a concessão geral (mais presente) é, basicamente, o que configura níveis de desconforto decisório.
Da previsão constitucional do direito à saúde, temos liames de: a) atuação visando redução do risco de doença e agravos outros; b) acesso universal; c) igualdade de acesso dos serviços. É usual a referência simples ao direito constitucional à saúde (art. 6º, caput) como fórmula de resolução de lides de tal jaez.  Mais do que uma deficiência na fundamentação decisória, de resto ofensiva à Constituição Federal (art. 93, IX[2]), essa peculiaridade parece indicar outro problema, mais agudo: a própria formação do julgador para enfrentar demandas tão específicas.
Não se descura do drama ao qual são submetidos os magistrados ao decidirem tal matéria. O princípio da inafastabilidade jurisdicional (art. 5º, XXXV[3] da Constituição Federal – CF) permite, no direito brasileiro, acentuada presença do Judiciário na resolução dessas demandas que, na origem, derivam de um problema, sobretudo, da função executiva.
Surge, portanto, um complexo contexto multidisciplinar muitas vezes tangenciado – até mesmo por força das circunstâncias – pelo juiz, com componentes diversos que merecem abordagem. O primeiro componenteé o carecimento, por parte do julgador, da visão do administrador.  As políticas públicas – da qual a saúde é apenas uma delas – são traçadas a partir de demandas político-sociais, opções discricionárias e orçamentos finitos. Informações e assessoramento específicos orientam os administradores na formulação dessas políticas.  Muitos são profissionais, com anos de experiências.  O direcionamento de esforços, programas e recursos (estes também sujeitos à aprovação orçamentária pelos poderes legislativos de cada ente federativo) é feito sob esta ótica, de forma a garantir universalidade e igualdade de atendimento. Há, então, uma visão macrossistêmica que é desconhecida – diria até mesmo indiferente – ao magistrado nas contendas individuais que lhe são postas. Ao determinar, no varejo, políticas públicas, o julgador finda por influir profundamente na realização, por atacado, das mesmas políticas públicas, influindo profundamente numa atividade que é gerencial e ontologicamente executiva.
Um segundo componente é a questão técnica propriamente dita. A formação médica e a base científica são exigências muito presentes e peculiares.  Opiniões diferenciadas, indicações calcadas em posições individuais com ou sem lastro em estudos científicos, singelo empirismo e situações quejandas, tudo isso é algo que acentua, em muito, a dificuldade nesses assuntos.  Por vezes, nem mesmo a posição do perito médico permite resolver o caso concreto num nível de cientificidade suficiente.  Embora respeitada a posição médica individual, há toda uma malha de estudos e especialistas em medicina e áreas afins nos centros de pesquisa que, no essencial, propiciam prescrições e protocolos clínicos mais experimentados, gabaritados e acertados do que indicações individuais de tratamentos, medicamentos, procedimentos etc.
terceiro e talvez o mais importante componente do problema é de natureza humana: o peso, sob os ombros do julgador, de negar um tratamento específico a alguém sob risco de morte. É quase um xeque-mate. A negativa de uma decisão, liminar ou definitiva, pode importar na perda do direito autoral à vida – quando menos a uma situação de saúde mais confortável.  É o que se chama de “escolha trágica”. Dito dessa forma simples, parece não haver muita dúvida a um leigo quanto ao direito infinito à saúde. Porém, juízes devem decidir dentro do universo de princípios jurídicos, muitas vezes mal-compreendidos ou antipáticos a opiniões alheias à profissão, e não por conforto psicológico.
A acentuada ineficácia do Sistema Único de Saúde (SUS) reflete-se cada vez mais na ampliação do número de ações que discutem fornecimento de tratamentos, procedimentos e medicamentos na esfera judicial.  Esse crescente volume de demandas judiciais de saúde associado à ausência de parâmetros decisórios mais seguros deram ensejo, inclusive, à iniciativa do CNJ no sentido de traçar padrões de enfrentamento dos problemas surgidos, englobáveis no Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde.
Por outro lado, há um dado que deve ser levado em conta: a finitude de orçamentos públicos.  Os gastos oriundos de concessões judiciais são crescentes e vêm se ampliando, na contextualização do orçamento geral para prestação de saúde não judicializada.  Dados divulgados recentemente (Folha de São Paulo, Cotidiano, 06.09.2016, acesso eletrônico) dão conta de que só no âmbito federal, o total de dispêndio saltou de R$ 122,6 milhões para uma projeção de R$ 1,6 bilhão em 2016. Somando o desembolso de Estados e municípios, o Ministério da Saúde estima que o valor chegue a R$ 7 bilhões neste ano.  Segundo, ainda, a matéria, apenas quatro dos dez medicamentos mais demandados na Justiça têm registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Evidente que a questão econômica tem de ser avaliada concretamente e não a partir de alegações genéricas e despidas de prova relevante. E tanto maior a dificuldade para a análise dessa questão orçamentária quanto mais expressivo o ente federativo, havendo o ônus da prova quanto à inviabilidade.  Basta trazer duas constatações simples à reflexão: a) diferente dos Estados e Municípios, as ordens de sequestro via eletrônica não atingem (= são ineficazes, portanto) a União, pela peculiaridade como ela movimenta seus recursos, de onde aqueles dois primeiros entes é que sofrem mais diretamente as consequências das decisões judiciais; b)  possuindo os Estados e Municípios menos recursos, têm o planejamento universal e efetividade de sua saúde pública mais afetados.
O julgador não pode ser insensível a isso:  muitas vezes, autorizar um tratamento em uma ação pode prejudicar diretamente outras várias pessoas que precisem do mesmo ou de outros tratamentos, mas não trouxeram sua demanda à análise.  Retornamos, aqui, à dificuldade da visão macro desta grande equação.  Determinar internamento imediato numa UTI pública, por exemplo, pode significar para o administrador hospitalar negar atendimento a um outro paciente de maior urgência, cuja única culpa foi não ter judicializado, por uma ou outra razão, sua dificuldade. E aqui, em matéria de saúde, não parece justo invocar a parêmia de que o direito não socorre quem dorme. Talvez seja imediatamente reconfortante à consciência, mas, muitas vezes pode não ser juridicamente adequado.
Daí porque, seja qual for a solução do STF sobre a matéria, dará previsibilidade jurídica tanto aos jurisdicionados, como aos advogados, magistrados e, principalmente, à administração pública, para fins de planejar melhor seus orçamentos públicos.

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