Reflexos possessórios no abuso do direito de penetração, por Renan Freitas e Diego Martinez

O direito das coisas disciplina o poder que os homens exercem sobre os bens e as formas de sua utilização. No rol desses diretos, está inserido o de propriedade ou, simplesmente, a propriedade.
Felizmente, alguns aspectos deste direito foram aperfeiçoados com o passar do tempo e a evolução da sociedade, mas sua essência permanece intacta.
CC vigente não modificou de forma substancial a estrutura e os fins dos direitos reais tradicionalmente estabelecidos, o que termina por realçar a historicidade do conceito do direito de propriedade.
Em sua acepção tradicional é tido como a faculdade de usar, gozar e dispor de um determinado bem de vida e de reavê-lo de quem injustamente o detenha. O jus utendi, fruendi, abutendi et re vindicatio, como diziam os Romanos.
Para o ilustre Prof. Orlando Gomes:
Sua conceituação pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua.Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.
Um sustentáculo comum entre diferentes sistemas jurídicos adotados mundo afora, de tempos remotos até os nossos dias, a propriedade é seguramente um dos direitos mais consagrados da humanidade. Até porque possui relevante significado político, social e econômico, cuja intensidade poderá variar de acordo com a época e o momento político.
É certo que, hoje, diferentemente do que ocorria na Roma antiga, a propriedade comporta restrições e seu exercício é limitado, especialmente quando se depara com causas que transcendem as fronteiras do interesse individual. Isto significa dizer que, se assim mandar o interesse público, o particular poderá flagrar-se totalmente privado de sua propriedade, desde que prévia e justamente indenizado.
É neste contexto que surge a Desapropriação, uma das formas mais enérgicas de limitação ao direito de propriedade, compreendida como o ato pelo qual o Poder Público, mediante prévio procedimento e justa indenização, em razão de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, expropria determinado bem de seu particular proprietário.
Como muito bem pontua Orlando Gomes, a Desapropriação “Priva o particular do bem de que é proprietário, que assim, sem consentir, perde a propriedade desse bem.”.
Portanto, acerta quem afirma que a Desapropriação é uma forma de perda da propriedade, conforme preceitua o artigo 1.275, inciso V da Lei Civil.
Diante de seu caráter eminentemente social, a Desapropriação é consagrada em vários diplomas do ordenamento jurídico brasileiro, principalmente na CF (artigo 5º, inciso XXIV) e no CC (Artigos 1.228, §3º, 1.275, inciso V).
Esse exemplo vivo de exercício da função social da propriedade poderá recair sobre bens de naturezas diversas e assim gerar implicações civis distintas.
Contudo, este artigo se dedica a uma ligeira reflexão acerca do Direito de Penetração, um efeito civil pouco falado entre os inúmeros que decorrem da Desapropriação de um bem imóvel.
Ainda na fase pré-processual da desapropriação, nasce ao Expropriante o Direito de Penetrar no imóvel declarado de utilidade pública, um direito pouco explorado pela doutrina, mas cujo entendimento é de suma importância, especialmente sob a ótica do Expropriado.
decreto-lei 3.365 de 1941, que disciplina as Desapropriações por utilidade pública, prevê em seu artigo 7º:
Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial.Àquele que for molestado por excesso ou abuso de poder, cabe indenização por perdas e danos, sem prejuízo da ação penal.
Trata-se, portanto, de verdadeira limitação ao Direito de Propriedade do particular proprietário que, sem indenização, deve permitir que as autoridades administrativas ingressem no imóvel para realizar os atos de direito.
O ponto crucial a ser esclarecido é que o direito de penetração não pode, e nem deve, ser confundido com a imissão provisória na posse.
Conforme muito bem explicou o Magistrado Mário Roberto N. Velloso, em sua obra denominada “Desapropriação – Aspectos Civis”, o exercício do direito de penetração se limita ao trânsito pelos imóveis, com objetivo de realização de levantamentos topográficos, estudos e amostragem de solos, atos avaliatórios e outros de identificação dos bens, mas que, de forma alguma, prejudique a normal utilização da área pelos possuidores.
Ocorre que, não raro, o Poder Público, a fim de realizar estudos que avaliam a viabilidade em desapropriar a área declarada, ingressa no imóvel sob o título de Penetração e, com ânimos de permanência, constitui ali verdadeiro acampamento.
Evidentemente, a colocação de máquinas, escavadeiras, tratores e canteiros de obra, no mais das vezes, inviabiliza o uso normal da área pelo possuidor. Se assim for, restará configurada a imissão provisória na posse e esvaziado o direito de Penetração.
Vale colacionar trecho do v. acórdão proferido pela 5ª câmara de direito público do Egrégio Tribunal de Justiça do estado de São Paulo:
“(...) Entrementes, à vista da contraminuta, nota-se que, muito embora, o pedido constante da medida cautelar se refira expressamente a proibição da imissão na posse (Cf. fl, 38), esclareceu a agravada que, em verdade, tinha a intenção de obstar o eventual e futuro ingresso do poder expropriante no imóvel, não por força de imissão na posse, mas sim do permissivo do artigo 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41, que autoriza o poder expropriante ingressar no bem para levantamento, isto é, proceder as verificações e medições necessárias para a futura ação de desapropriação e, mesmo assim, é defeso molestar o expropriado, pena, inclusive, de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da eventual ação penal por abuso de poder (Cf. artigo 7º , segunda parte). Assim, se confundiu o ato de imissão na posse com o singelo ato de verificação do imóvel, que se presta, inclusive, para certificação de todas as benfeitorias existentes para efeito de depósito de valor prévio para imissão na posse. Em verdade, a possibilidade de penetração no imóvel guarda como norte a fixação do statu quo ante do imóvel, guardando perfil, portanto, de garantia de retidão tanto para a Administração Pública como para o particular, sendo inconcebível confusão entre os preceitos insertos nos artigos 7 e 15 do Decreto-Lei n. 3.365/41, vez que somente no segundo há a imissão na posse(...)”
(Agravo de Instrumento 743 316-5/9-00 - Voto 05 514, Relator Ricardo Anafe) (grifos nossos)
Assim, a distinção entre esses dois institutos apresenta especial relevância, notadamente sobre três aspectos.
(i) Para imitir-se na posse do imóvel, o Poder Público deve realizar prévia e justa indenização (Art. 5º, XXIV CF);
(ii) Com a imissão inicia a incidência de juros compensatórios anuais sobre eventual divergência apurada entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem definido em sentença;
É o teor do artigo 15 do decreto-lei 3.365/41:
Art. 15-A No caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, inclusive para fins de reforma agrária, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem, fixado na sentença, expressos em termos reais, incidirão juros compensatórios de até seis por cento ao ano sobre o valor da diferença eventualmente apurada, a contar da imissão na posse, vedada o cálculo de juros compostos.
(iii) A partir da imissão na posse pelo poder público, cessa para o Expropriado o dever de pagar tributos, devendo ser ressarcido em caso de eventual pagamento indevido:
É o que ensina a doutrina de Hely Lopes Meirelles:
“A imissão definitiva na posse, em qualquer hipótese, só se dará após o integral pagamento do preço, conforme o fixado no acordo ou na decisão judicial final, que adjudicará o bem ao expropriante, transferindo-lhe o domínio com todos os seus consectários. Mas é de observar-se que desde a imissão provisória na posse o expropriante aufere todas as vantagens do bem, e cessa para o expropriado a sua fruição, devendo cessar também todos os encargos correspondentes, notadamente os tributos reais.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros. 20ª ed.
No mesmo sentido é o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
EMENTA
DESAPROPRIAÇÃO. LEVANTAMENTO DO PREÇO. ART. 34 DO DECRETO-LEI N. 3.365/41. COMPROVAÇÃO DE QUITAÇÃO DE DÉBITOS FISCAIS.

1. A entidade expropriante é responsável pelo pagamento dos tributos após ter sido imitida na posse do bem objeto da expropriação.
2. Na forma do art. 34 do Decreto-Lei n. 3.365/41, o expropriado poderá levantar o preço, se comprovar a quitação dos tributos fiscais incidentes sobre o imóvel desapropriado até a data em que a autoridade expropriante tiver sido imitida na posse, nos termos do art. 15 do referido Decreto-Lei, ou da efetiva ocupação indevida do imóvel pelo expropriante, se for o caso. 3. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(Recurso Especial Nº 195.672/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, 2ª Turma, julgado em 03/03/2005, DJ 15/08/2005 - 1998/0086366-4)
Portanto, observa-se que o Direito de Penetração, previsto pelo artigo 7º do decreto lei 3.365/41, é caracterizado como a faculdade da Autoridade Pública ingressar no imóvel a fim de realizar atos avaliatórios da área declarada de interesse público.
No entanto, é de se asseverar que o exercício deste direito não poderá impedir ou restringir o uso manso e pacífico do bem pelo seu possuidor, sob pena de restar configurada a imissão na posse do imóvel e, então, virem à tona seus efeitos indenizatórios e tributários.
Nesta linha de raciocínio, conclui-se que, se o Expropriante, sem a formal imissão na posse, mas sob o rótulo de direito de penetração, ingressar no imóvel molestando a posse do Expropriado, estará este último revestido de legitimidade para, além do desforço imediato, valer-se de ações possessórias, declaratórias e/ou indenizatórias para satisfazer seu direito.

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