O julgamento fatiado do mérito no novo CPC em sete perguntas e respostas, por André Vasconcelos Roque

Vamos hoje falar de mais uma novidade do CPC de 2015. Falo aqui da previsão do art. 356, que o legislador chamou de “julgamento antecipado parcial do mérito”.
Até o momento, não se tem notícias de que o instituto esteja sendo aplicado em muitos casos (a propósito, quem tiver notícia de processo em que se verificou o julgamento antecipado parcial do mérito, por favor, manifeste-se!). Aliás, não se poderia deixar de observar que, lamentavelmente, não é o único exemplo de dispositivo do novo CPC que ainda não “pegou”, valendo destacar as regras que estipulam o dever de fundamentação analítica (art. 489, § 1º)[1] ou – para não ficar somente nos atos de responsabilidade do Poder Judiciário – da que disciplina a delimitação consensual das questões de fato e de direito pelas partes, a ser homologada pelo juiz (art. 357, § 2º).[2]
Nem por isso pode ser o julgamento antecipado parcial do mérito ignorado, até por se tratar de previsão que poderá acelerar a resolução de muitos casos.
Vamos em frente!
  
  1. O que é esse tal de “julgamento antecipado parcial do mérito”?

No CPC/1973, afirmava-se o dogma da unidade do julgamento da causa. Ressalvados casos excepcionais, como procedimentos especiais com sentenças de primeira e segunda fases (por exemplo, na ação de prestação de contas proposta por quem alega o direito de exigi-las – arts. 915, 917 e 918 do CPC/1973 – ou na ação de demarcação de terras particulares – arts. 958 e 966 do CPC/1973), todo o julgamento da causa deveria se concentrar em um só provimento jurisdicional: a sentença.
A bem da verdade, esta unidade nunca foi absoluta.
Primeiro, porque o CPC/1973 já previa, exatamente na fase de julgamento conforme o estado do processo, a extinção dos pedidos por sentença terminativa, sem resolução de mérito, ou por sentença imprópria de mérito (que homologasse atos de autocomposição das partes ou que reconhecesse prescrição ou decadência), que podia se referir a apenas parte dos pedidos formulados, prosseguindo o processo quanto aos demais (art. 329 do CPC/1973, correspondente ao art. 354 do CPC/2015). Segundo, porque o CPC/1973 já admitia que, em determinadas situações, fosse proferida sentença condenatória ilíquida, cuja quantificação ocorria em fase própria, a liquidação de sentença. Verificava-se, assim, efetivo fracionamento no julgamento do mérito, em que primeiro o juiz aferia o an debeatur para, em momento posterior, decidir o quantum debeatur. Terceiro, porque havia previsão específica, em algumas situações, da tutela definitiva do mérito quanto ao incontroverso, como ocorria na ação de consignação em pagamento na qual se discutisse a insuficiência do depósito (art. 899, § 1º do CPC/1973).
No CPC/2015, esse dogma é superado. Viola a duração razoável do processo privar as partes da tutela definitiva de mérito de alguns dos pedidos formulados (ou de parcela deles), já em condições de imediato julgamento, apenas porque os demais pedidos cumulados ainda necessitam de outras provas para serem conclusivamente apreciados. De nada adiantaria estimular a cumulação de pedidos se tal providência se voltasse contra a duração razoável do processo no momento do julgamento desses pedidos.[3]
Assim, por exemplo, se o autor deduziu pedidos de indenização por danos morais e materiais, mas se apenas o primeiro está em condições de imediato julgamento, o juiz decidirá conclusivamente o pleito relativo aos danos morais, determinando o prosseguimento do processo quando à indenização por danos materiais, para que outras provas sejam produzidas. O fatiamento pode se dar, ainda, dentro de um mesmo pedido. Assim, por exemplo, em ação de cobrança em que se postula o pagamento de cem mil reais, se o réu admite ser devido o valor de cinquenta mil reais, esse montante se torna incontroverso e poderá o juiz apreciar conclusivamente essa parcela.

  1. O juiz pode reconsiderar essa decisão depois?

A resposta é pura e simples: não.
O julgamento antecipado parcial consiste em decisão definitiva, fundada em cognição exauriente e conclusiva quanto a uma parcela do mérito, que não pode ser revogada ou reconsiderada pelo juiz quando for proferir a sentença (art. 494). Assim, mesmo que se verifique posteriormente, por exemplo, a falta de uma condição da ação ou de um pressuposto processual ou de qualquer outra matéria de ordem pública relativamente à decisão de julgamento antecipado parcial do mérito, não poderá o juiz revogar tal provimento, assim como não poderia, pelos mesmos motivos, simplesmente revogar uma sentença de mérito que tivesse transitado em julgado.
Para atacar tal decisão, deverá a parte interessada valer-se dos recursos disponíveis na legislação processual, em especial o agravo de instrumento (arts. 356, § 5º e 1.015, II)[4] ou, caso o provimento já tenha transitado em julgado, lançar mão da ação rescisória, desde que demonstrada alguma das suas hipóteses (art. 966).

  1. Cabe em qualquer forma de cumulação de pedidos? 

Quando se verifica a cumulação simples de pedidos, não há dificuldade alguma, pois os pedidos cumulados são independentes entre si.
No caso de cumulação subsidiária ou eventual (art. 326, caput), se apenas o pedido subsidiário não foi impugnado ou se encontra em condições de imediato julgamento, não pode haver julgamento antecipado parcial do mérito, já que o pressuposto para a apreciação do pedido subsidiário seria a rejeição do pedido principal, o qual ainda não está em condições de ser julgado. Inversamente, se somente o pedido principal pode ser julgado, será viável o seu julgamento antecipado e, em caso de improcedência, o processo prosseguirá para a apreciação do subsidiário.
No caso de cumulação alternativa de pedidos (art. 326, parágrafo único), caso qualquer um deles esteja em condições de apreciação imediata, poderá o juiz proceder ao julgamento antecipado parcial do mérito, na medida em que a tutela jurisdicional pleiteada será atendida com o acolhimento de qualquer dos pedidos. Caso esse primeiro pedido alternativo seja julgado improcedente, é possível determinar o prosseguimento do processo para que o outro pedido alternativo possa ser apreciado posteriormente.
Finalmente, na cumulação sucessiva, o julgamento parcial somente será possível se o pedido que atuar como pressuposto lógico estiver em condições de imediato julgamento, mas não o contrário. Por exemplo, se tiver sido deduzido pedido de reconhecimento de união estável cumulado com prestação de alimentos, o julgamento antecipado parcial somente será permitido se a questão relativa à união estável puder ser imediatamente julgada, mas não o inverso. Não poderá o juiz, nesse caso, conceder alimentos ao autor (ao menos, não de forma definitiva) sem antes resolver a questão relativa à existência ou não da união estável alegada.

  1. Por que não chamar de “sentença parcial”?

A decisão de julgamento antecipado parcial de mérito, embora aprecie conclusivamente parte dos pedidos formulados pelo demandante, não encerra a fase de conhecimento do procedimento comum, que deverá prosseguir para a produção de outras provas necessárias ao julgamento dos demais pedidos.
Equivocado, portanto, falar-se em “sentença parcial”, pois a sentença, no CPC de 2015, é conceito de direito positivo, que se relaciona ao provimento que encerra por completo a fase de conhecimento (art. 203, § 1º). Trata-se o julgamento antecipado parcial de mérito, assim, de decisão interlocutória (art. 203, § 2º), contra a qual deve ser interposto agravo de instrumento. Não há que se cogitar, desse modo, de uma inusitada “apelação de instrumento”.

  1. O agravo de instrumento contra essa decisão tem efeito suspensivo?           

Ao contrário da apelação a ser interposta contra a sentença, o agravo de instrumento contra a decisão de julgamento antecipado parcial de mérito não tem efeito suspensivo automático, embora possa ter o efeito suspensivo ope judicis (art. 1.019, I), [5] obstando por completo a execução (cumprimento) provisória da decisão. 
Questão intimamente relacionada à ausência de efeito suspensivo automático do agravo de instrumento é como se realizará a execução provisória. Vamos enfrentá-la.

  1. A execução provisória dessa decisão não depende de caução?

Esse é também um ponto polêmico, pois o art. 356, § 2º do CPC de 2015 prevê que a execução provisória do julgamento antecipado parcial dispensa caução.
Interpretada literalmente, causa perplexidade essa regra, pois a execução provisória da sentença, por exemplo, exige, como regra geral, a prestação de caução pelo exequente para o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem em transferência de posse, propriedade ou outro direito real (art. 520, IV).
Essa incoerência se explica pela conturbada tramitação legislativa do CPC de 2015, cujo projeto trabalhava com a premissa da supressão do efeito suspensivo automático da apelação. Quando esse efeito foi restabelecido, no final da tramitação do projeto, não se atentou para a necessidade de novo equacionamento de todo o sistema.
De todo modo, deve-se lançar mão da interpretação sistemática para afastar tal contradição. A dispensa à prestação de caução deve ser interpretada restritivamente. A parte poderá executar sem prestar caução, ou seja, iniciar o cumprimento provisório da decisão de julgamento antecipado parcial de mérito. Entretanto, o levantamento de depósito em dinheiro, a prática de atos que importem em transferência de posse, propriedade ou de outro direito real ou dos quais possa resultar excepcional dano ao executado continuará a depender de caução (art. 520, IV), observadas as hipóteses de dispensa de caução do art. 521.[6]
Transitada em julgado a decisão de julgamento parcial de mérito, obviamente sua execução será definitiva e não se cogitará de caução.

  1. Tem remessa necessária nesse caso?

A resposta para essa pergunta enseja discussões.
Não resta a menor dúvida de que pode ocorrer o julgamento antecipado parcial do mérito contra a Fazenda Pública. Ocorre que a decisão que julga antecipadamente parte do mérito é interlocutória, ao passo que a remessa necessária é prevista pelo CPC/2015 apenas para a sentença (art. 496, caput).
Como demonstrado amplamente em nossos comentários, por mais que a decisão que julga parte do mérito seja definitiva, não podendo ser revogada na sentença, o legislador foi enfático em limitar a remessa necessária – instituto excepcional, que deve ser interpretado restritivamente – à sentença. No art. 496, caput, fala-se em sentença. No art. 496, § 1º, o CPC/2015 refere-se a apelação. Da mesma forma, o § 4º do mesmo art. 496 alude, mais uma vez, à sentença.
Não há, portanto, remessa necessária na decisão de julgamento antecipado parcial do mérito proferida contra a Fazenda Pública.[7]

  1. Para concluir

O julgamento antecipado parcial de mérito é uma inovação interessante do CPC de 2015, a qual, todavia, ainda não revelou todas as suas potencialidades.
Ao que parece, ainda estamos em uma fase inicial de acomodação dos profissionais do Direito ao novo Código. Muitas das práticas do CPC/1973 continuam a ser adotadas no dia a dia do foro, não raramente de forma automática, sem uma adequada reflexão a respeito de sua pertinência com a nova legislação processual.
Ainda temos tempo. O julgamento antecipado parcial de mérito – espera-se – veio para ficar e deve ser lembrado pelos profissionais do Direito como mais uma ferramenta do novo Código que poderá contribuir para a aceleração dos processos. Ou, pelo menos, de uma parte deles…

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