A cláusula compromissória de arbitragem como negócio jurídico: parâmetros para interpretação, por Ermiro Ferreira Neto e Caio Valverde Melo

Introdução
Situando as cláusulas compromissórias no âmbito da teoria do negócio jurídico, o objetivo deste artigo é apresentar dois dos principais parâmetros para interpretação desta avença. Considerando este recorte, não se cuidará de aspectos históricos. Igualmente, embora algumas das conclusões aqui apresentadas possam ser aplicadas também ao compromisso arbitral, deve-se registrar que esta última figura não é objeto deste pequeno estudo.
Negócio jurídico e arbitragem
O negócio jurídico, enquanto espécie de fato jurídico que tem como elemento nuclear a vontade do(s) sujeito(s), e a arbitragem, caracterizada como meio extrajudicial de solução de conflitos que tem como premissa a autonomia privada, guardam estritas ligações entre si. A arbitragem só pode ser instaurada se, em algum momento, dois ou mais sujeitos concordaram em assim proceder, por meio da celebração de um negócio – o compromisso arbitral ou a cláusula compromissória.
Doutrina anterior à Lei 9.307/96 entendia a cláusula compromissória como mero pacto de compromisso, um pré-contrato [1] ou uma promessa de comprometer, como se se tratasse de uma obrigação de celebrar o compromisso arbitral, e que criava apenas uma obrigação de fazer.[2] O novo regime estabelecido pela Lei 9.307/96, todavia, elevou a cláusula compromissória a um novo patamar, de máxima expressão da autonomia privada enquanto materialização de um negócio jurídico.
A cláusula compromissória deriva de um acordo de vontades, manifestada por escrito (e, portanto, declarada), e que visa atribuir a árbitros a competência para processar e julgar determinado litígio. [3] Através da cláusula compromissória, as partes se comprometem, com efeito vinculativo, a utilizarem-se da arbitragem para resolver controvérsias oriundas de uma relação jurídica entabulada entre as mesmas.
Sendo certo, pois, a qualificação da cláusula compromissória como negócio jurídico, na presença de eventual dificuldade interpretativa, o próprio ordenamento jurídico é quem fornece as ferramentas necessárias a serem utilizadas sempre no sentido de se valorizar a vontade das partes, a cooperação existente entre elas e aos mandamentos da boa-fé.
Real vontade das partes e a eficácia do art. 112 do Código Civil
Como importante regra de interpretação contratual, plenamente aplicável às cláusulas compromissórias, tem-se que, nos termos do artigo 112 do Código Civil, “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.
Pela referida regra, busca-se garantir que no âmbito da atividade de captar o sentido dos ajustes contratuais, deva o intérprete atender muito mais à real vontade, aos propósitos declarados pelos sujeitos ao firmarem determinada cláusula, do que ao eventual sentido literal distinto que a redação possa conter.
Por aplicação do artigo 112 do Código Civil, tem-se claro que a interpretação deve prestigiar a intenção declarada das partes. Nesta linha, sendo, como se sabe, a jurisdição arbitral excepcional e vinculada à vontade das partes, a sua pactuação, ainda que em termos ambíguos ou contraditórios, raramente não refletirá um desejo genuíno dos sujeitos de retirarem da jurisdição estatal a exclusividade na solução dos seus litígios. A alusão à arbitragem não pode ser compreendida senão como a vontade honesta de atribuir a uma câmara especializada, a um conjunto de especialistas, o dever de dizer a quem o Direito socorre, em determinada questão.
Sendo a cláusula compromissória espécie de ajuste absolutamente excepcional, não se deve de pronto desqualificá-la quando não for possível, prima facie, uma interpretação literal daquilo que as partes procuraram ajustar. Assim, é prudente e absolutamente razoável o alerta de Selma Leme, para quem “a primeira ilação obrigatória a influenciar qualquer regra de hermenêutica na área arbitral é que ninguém incluiria, em sã consciência, as formas autocompositivas ou heterocompositivas de solução extrajudicial de conflitos se não tivesse minimamente a intenção de utilizá-las”. [4] 
Sobre o ponto, a regra de interpretação ora enunciada, presente no sistema de Direito Privado brasileiro, alinha-se com as mais modernas normas de interpretação presentes em outras jurisdições. Merece nota, por exemplo, a semelhança de objetivos presentes tanto no artigo 112 do Código Civil, quanto na regra de interpretação do Draft Common Frame of Reference (DCFR) – modelo de regras e princípios de Direito Privado construído por especialistas da União Européia para uso como referência no âmbito dos Estados Membros. Nos termos do Capítulo 8, 101, (1), “a contract is to be interpreted according to the common intention of the parties even if this differs from the literal meaning of the words”.
Também nesta linha, estatui o DCFR que “an interpretation which renders the terms of the contract lawful, or effective, is to be preferred to one which would not” (Cap. 8, 106). Embora não exista regra semelhante no Brasil, a norma do artigo 112 do Código Civil, tomada como mandamento para se buscar, em dado negócio, a interpretação que melhor se ajuste às vontades manifestadas pelas partes, autoriza concluir que, na hermenêutica contratual, deve-se privilegiar conclusões que tornem tais convenções efetivas, e não sem efeito algum.
Boa-fé objetiva como parâmetro de interpretação
Outro importante parâmetro para a interpretação dos negócios jurídicos em geral, e das cláusulas compromissórias em particular, pode ser localizado no âmbito da boa-fé objetiva.
De modo particularmente importante no âmbito da atividade de interpretar as cláusulas compromissórias, tem-se na boa-fé uma função interpretativa. Como reflexo legislativo desta função, prevê o artigo 113 do Código Civil que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé”. Por força desta regra, deve-se concluir, em exercício simples da lógica mais linear, que a cláusula compromissória deve ser interpretada conforme a boa-fé – conclusão que impede de se obter, como resultado da atividade interpretativa, qualquer consequência jurídica que justamente venha a afrontar a lealdade e a honestidade exigidas dos contratantes que se sujeitam a uma cláusula compromissória.
Tudo converge, pois, ao aplicar-se o que se viu à interpretação da cláusula compromissória, que a previsão contratual de resolução de disputas pela arbitragem, no contexto da boa-fé, deve ser tomada a sério; uma vez prevista a arbitragem, incumbe ao intérprete garantir-lhe a eficácia mais óbvia, que vem a ser justamente aquela que permitirá a instituição do painel arbitral, e não a que lhe inviabilizará.
Não poderá ser considerado conforme a boa-fé o sentido que, eventualmente, um contratante venha a atribuir à cláusula compromissória, com o objetivo de escapar da instituição da arbitragem. Veja-se que, mesmo para as chamadas “cláusulas vazias”, isto é, as cláusulas compromissórias nas quais as partes não definem desde já determinada câmara para solucionar as disputas ou os procedimentos para tal, a Lei de Arbitragem prevê procedimentos para que, ainda assim, o painel arbitral seja instituído (art. 6º).
Todo este procedimento institui ferramenta fundamental para a prática de arbitragem no Brasil. Veja-se: tanto a boa-fé exige das partes respeito e consideração com relação a cláusula compromissória contratada, que caso uma das partes negue a sua eficácia, através de qualquer interpretação que lhe retire ou restrinja seus efeitos, poderá a outra acionar o Poder Judiciário para garantir a constituição do painel arbitral; a jurisdição estatal, neste caso, fará prevalecer a interpretação que privilegie a boa-fé, isto é, aquela que viabilize a arbitragem prevista como mecanismo de resolução de disputas.
Enfim, a boa-fé como parâmetro de interpretação de cláusula compromissória atuará “auxiliando a reconstrução da declaração negocial ‘conforme o espírito’, isto é, enquadrando-a na totalidade das circunstâncias”. [5] Ao fazê-lo, ressalvadas as eventuais causas de invalidade da cláusula (por exemplo, incapacidade, simulação, estado de perigo, dentre outros diversos vícios) ou de ineficácia (uma causa suspensiva, por exemplo), tem-se certo que a melhor interpretação possível terá em conta que honestidade, lealdade e a autonomia negocial não se compatibilizam com a fuga da arbitragem previamente combinada.
Conclusão
Com tudo isso em vista, verificando a presença de uma cláusula compromissória num contrato, esforços deverão ser empreendidos no sentido de tornar este negócio plenamente eficaz. Tais esforços, muitas vezes, perpassam pela utilização das técnicas aqui destacadas, que visam privilegiar a vontade das partes aliada aos deveres de honestidade e de lealdade, de modo a se incentivar e possibilitar a utilização da arbitragem, contribuindo para o seu desenvolvimento teórico e prático.
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[1] NUNES PINTO, José Emilio. A cláusula compromissória à luz do código civil. In: Revista de Mediação e Arbitragem, vol. 4, ano 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 38.
[2] NANNI, Giovanni Ettore. Direito civil e arbitragem. São Paulo: Atlas, 2014, p. 13.
[3] NANNI, op. cit., p. 15.
[4] LEMES, Selma Maria Ferreira. Quando as Cláusulas Compromissórias Demandam Interpretação. Disponível em: http://selmalemes.adv.br/artigos/Quando%20as%20%20%20Cl%C3%A1usulas%20Compromiss%C3%B3rias%20demandam%20interpreta%C3%A7%C3%A3o-Selma%20F%20Lemes.pdf
[5] MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Interpretação do Negócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 273.

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