Repercussões do novo CPC no processo administrativo: a intimação eletrônica e sua implementação normativa, por Milton Carvalho Gomes

O  CPC, em vigor desde março de 2016, trouxe ao mundo jurídico inúmeras inovações, algumas de muito destaque e repercussão e outras que, embora também de grande importância, são menos percebidas, talvez por estarem em dispositivos que a uma primeira leitura não revelam o imenso impacto prático que contém.
Um desses dispositivos é o artigo 15, que prevê a aplicação supletiva e subsidiária do novo código aos processos administrativos, eleitorais e trabalhistas, assim dispondo: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.
É certo que a expressão adotada – “na ausência de normas” – não denota a extensão que a aplicação do código pretende ter, e pode levar a interpretações que restrinjam seu alcance, o que não parece ter sido a intenção do legislador. Ao inserir um dispositivo que expressamente prevê sua aplicação aos processos administrativos, eleitorais e trabalhistas, o novo CPC se assume como uma norma mãe, mais extensa e minuciosa, portadora de regras e princípios que podem e devem ser transportadas aos demais processos, de forma a complementá-los e atualizá-los.
Como destacaram Leonardo Ferres da Silva Ribeiro, Maria Lúcia Lins Conceição, Rogerio Licastro Torres de Mello, Teresa Arruda Alvim Wambier, “o legislador disse menos do que queria. Não se trata somente de aplicar as normas processuais aos processos administrativos, trabalhistas e eleitorais quando não houver normas, nestes ramos do direito, que resolvam a situação. A aplicação subsidiária ocorre também em situações nas quais não há omissão. Trata-se, como sugere a expressão ‘subsidiária’, de uma possibilidade de enriquecimento, de leitura de um dispositivo sob outro viés, de extrair-se da norma processual eleitoral, trabalhista ou administrativa um sentido diferente, iluminado pelos princípios fundamentais do processo civil”(Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 75).
O campo de aplicação do novo CPC ao processo administrativo é especialmente amplo, sobretudo porque a lei do processo administrativo no âmbito federal – Lei 9.784/99 –, além de ser sintética quando comparada ao CPC – , praticamente não sofreu atualizações desde sua edição, em janeiro de 1999.
Os princípios contidos no CPC, como a promoção da solução consensual dos conflitos, o prazo razoável para solução do processo, os deveres de boa-fé, a cooperação processual, o novo perfil do contraditório – com sua significação ampliada – entre outros, tem perfeita aplicação aos processos administrativos e estão certamente abrangidos pelo caráter supletivo e subsidiário do código.
Não apenas os princípios e regras gerais do novo CPC – objeto que são de uma nova teoria geral do processo – têm aplicação no processo administrativo, tendo também aplicação as regras sobre o início do processo, legitimidade ativa, impedimentos e suspeições, forma tempo e lugar dos atos do processo, comunicação dos atos, instrução, etc, que devem ser interpretadas em conjunto com a legislação administrativa vigente.
Não houve, entretanto, uma substituição dessas normas, ou mesmo alguma espécie de revogação ou enfraquecimento. Pelo contrário.  O novo CPC, ao afirmar sua aplicação supletiva e subsidiária ao processo administrativo, realizou verdadeira ampliação normativa, atualização e enriquecimento das normas então vigentes, sem que para isso as tenha suprimido.
O novo CPC impõe ao aplicador e ao intérprete uma nova leitura das normas que regem o processo administrativo, uma leitura conjunta e sistemática, que contemple o alargamento semântico e garanta o desenvolvimento e a adaptação de todo o regramento procedimental brasileiro, nos sentidos formal e material, ao novo sistema.
A Lei 9.784/99 prevê, por exemplo, que os atos do processo devem ser por escrito, com a assinatura da autoridade responsável, e que o processo deverá ter suas páginas numeradas e rubricadas, normas estas que seguramente devem ser atualizadas, adequando-as ao processo virtual, à certificação digital. O novo CPC sequer faz referência à produção do processo por escrito, como o faz a Lei 9.784/99, limitando-se a afirmar que em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso da língua portuguesa – uma nova linguagem que se adéqua tanto aos processos digitais quanto aos atos praticados oralmente, ou por videoconferência, e até mesmo aos escritos. Essas funções de atualização e expansão dos diplomas administrativos promovidas pelo CPC são fundamentais e devem ser implementadas na sua mais ampla extensão, aproximando, o quanto possível, o processo administrativo do processo judicial.
Dentre as normas do novo código perfeitamente aplicáveis, de forma supletiva e subsidiária, ao processo administrativo, está o novo regramento da citação e da intimação na forma eletrônica.
Segundo o novo código, a citação pode ser: I – pelo correio; II – por oficial de justiça; III – pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório; IV – por edital; V – por meio eletrônico, conforme regulado em lei (artigo 246).
O CPC cria, ainda, a obrigação de empresas públicas ou privadas – ressalvadas as de pequeno porte e microempresas – manterem cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por este meio (artigo 246, §1º). Por sua vez, as intimações “realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei” (artigo 270).
Segundo a lei geral do processo administrativo, a intimação tem um sentido mais amplo, abrangendo o conceito de citação, para a qual não há referência expressa. A intimação é, portanto, o meio mais básico de comunicação entre a administração e o administrado, no âmbito do processo administrativo federal.
Sobre a forma da intimação, a referida lei prevê que “pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado” (artigo 26, §1º). A lei traz uma fórmula casuística seguida de uma previsão aberta, admitindo, por fim, quaisquer formas de intimação que assegurem a ciência do interessado.
A intimação eletrônica, prevista pelo novo CPC, é plenamente aplicável ao processo administrativo, devendo ser considerada, inclusive, a formapreferencial de comunicação dos atos processuais, dada a sua economia e celeridade, evidenciando-se, novamente, suas funções de atualizar e expandir as normas administrativas. Embora não haja previsão de intimação eletrônica na Lei 9.784/99 não há mais quaisquer dúvidas acerca da sua possibilidade.
A elaboração de um sistema tecnológico que permita o envio e registro de intimações eletrônicas, nos diversos processos administrativos, é a menor das dificuldades, já existindo, atualmente, instrumentos que permitem essa execução. O arcabouço normativo, por outro lado, precisa ser inteiramente construído e moldado a cada situação, a cada tipo específico de relação existente entre a Administração Pública e seus administrados, para que funcione e garanta o efetivo conhecimento e exercício do contraditório e da ampla defesa, consagrando o devido processo legal administrativo.
A Administração Pública relaciona-se com os administrados de diversas formas, seja como prestador de serviços públicos, como agente econômico, ou mesmo no exercício de seus poderes administrativos (poder de polícia, poder disciplinar, poder hierárquico, etc.). Em cada um desses casos, a organização administrativa atua por meio de processos administrativos, instaurados com finalidades diferentes e seguindo procedimentos diferentes. Essa enorme diversidade de relações travadas pela Administração Pública com os administrados deve ser necessariamente levada em conta ao se trazer ao processo administrativo as regras e princípios do novo CPC.
No campo do processo civil, a Lei 11.419/2006 já estabelece parâmetros para a comunicação eletrônica de atos processuais, prevendo um cadastramento prévio do interessado junto ao Poder Judiciário (artigo 2º). Realizado o cadastramento, as intimações podem ser feitas por comunicação eletrônica, iniciando-se a contagem do prazo a partir do dia em que o usuário acessar o conteúdo da intimação no sistema. Caso a parte não acesse a intimação em 10 dias, considera-se realizada a intimação (artigo 5º). Traz ainda a lei uma previsão interessante, admitindo a citação, exceto em questões penais, por meio eletrônico, desde que a íntegra dos autos seja acessível ao citando (artigo 6º).
A exceção feita aos processos criminais, quanto à citação inicial, parece se justificar na medida em que todos os indivíduos da sociedade são potenciais interessados, tornando inviável a exigência de cadastramento prévio de toda a comunidade. Não se aplicaria tal restrição, por exemplo, ao processo administrativo disciplinar, onde existe uma relação jurídica previamente estabelecida entre o Estado e o servidor público, já havendo, inclusive, o cadastro de cada um deles no banco de dados. Nesse caso, bastaria uma construção normativa que permitisse a citação e as intimações.
A possibilidade de cadastramento prévio de interessados se coloca como um obstáculo importante a ser enfrentado no momento da construção normativa para a adoção da intimação eletrônica no processo administrativo. O CPC exigiu o cadastramento prévio obrigatório para empresas e entes da Administração Pública – com a ressalva das microempresas e empresas de pequeno porte. No âmbito administrativo, porém, não se pode criar uma obrigação geral de cadastramento dirigida a todos os cidadãos, o que além de demandar lei específica – talvez em um futuro não tão distante – violaria gravemente a razoabilidade, considerando as concretas restrições de acesso à tecnologia existentes em muitos setores sociais.
Por outro lado, nas situações nas quais já existe uma relação jurídica específica estabelecida entre Estado e pessoa privada – pessoa natural ou jurídica – a dificuldade parece muito menos presente. Situações como ações disciplinares e ações de fiscalização, nas quais o interessado no processo administrativo já possui, previamente, cadastro junto ao ente público, a construção normativa para exigir a atualização cadastral e passar a prever a comunicação dos atos processuais na forma eletrônica é muito mais simples.
Assim ocorre com os processos administrativos decorrentes da competência fiscalizatória das Agências Reguladoras, nos quais as pessoas – naturais ou jurídicas – autuadas pelo cometimento de infração possuem, em regra, a obrigação de prévio cadastramento como condição para a obtenção de autorização do ente público para o exercício da atividade econômica. Nesses casos, quando do cometimento de uma infração, o agente econômico já possui um cadastro junto à agência reguladora, havendo uma relação jurídica específica entre Administração e administrado, tornando possível, com pouca dificuldade, a implantação da regra de intimação eletrônica para os atos do processo administrativo fiscalizatório.
No caso das Agências, em razão do poder normativo que possuem, há a possibilidade da criação de normas regulatórias estabelecendo obrigações aos agentes econômicos, dotadas de obrigatoriedade e cogência, podendo nesse âmbito ser instituída a previsão de cadastramento do agente econômico para recebimento de eventuais intimações eletrônicas do ente regulador.
A adoção do formato eletrônico de intimação, em processos de fiscalização por infração administrativa, no âmbito das agências reguladoras, necessita apenas de previsão normativa e regulação da matéria no âmbito administrativo, o que pode ser feito por meio de adequação do arcabouço normativo regulatório interno. Nesses casos, não se pode alegar a ausência de lei, pois o CPC tem aplicação ao caso, de forma supletiva e subsidiária, dispensando a exigência de outra lei com a mesma previsão no âmbito administrativo. É suficiente que a norma administrativa preveja, como obrigação do agente econômico, ao efetuar seu cadastro e solicitar autorização para o exercício da atividade econômica, o fornecimento de endereço eletrônico para o recebimento das comunicações em processo administrativo, à semelhança do que determinou o novo CPC no âmbito do processo judicial.
A realização de intimação eletrônica nos processos administrativos constitui uma evolução inevitável, parte de uma evolução ainda maior, ou mesmo de uma verdadeira revolução administrativa, da qual ainda não se consegue medir os resultados, que é a aplicação das normas do novo CPC aos processos administrativos.
A comunicação eletrônica de atos do processo administrativo gera segurança e economia para a Administração e, em última análise, para o cidadão responsável pelo custeio de todo o sistema de gestão pública. Com a previsão agora expressa em lei – o novo CPC – cabe à Administração a regulação interna da matéria, em cada caso, para trazer esse importante avanço para o campo das relações administrativas.

Comentários