O museu de novidades do N.C.P.C e a Lei nº 13.256/2016, por Luiz Octavio Pinheiro Carvalho da Silva

O novo Código de Processo Civil ou CPC/2015 ainda se encontrava no período de vacatio legis[1], quando alguns dos seus principais dispositivos foram modificados. Mesmo antes da sua entrada em vigor, a Lei n. 13.256, de 18 de março de 2016, fulminou algumas conquistas que vinham sendo aguardadas. Fez-se uma viagem redonda: dispositivos foram alterados para a “novidade” voltar a ser como antes. Essa lei, como qualifica a equipe do JOTA, foi uma espécie de “reforma da reforma”[2][3].
O novo C.P.C. pretendeu, depois de cinco anos de tramitação no Legislativo, investir em uma Justiça mais célere, efetiva na proteção de direitos e democrática. Incentivava a mudança de uma cultura de litigância, seja por meio da mediação e conciliação, seja pela reivindicação de maior coerência entre as decisões proferidas pelo Poder Judiciário[4]. Se as decisões do Poder Judiciário são coerentes entre si desestimula-se apostadores em uma loteria judicial, porque se sabe de antemão o entendimento fixado.
Como disse Teresa Arruda Alvim Wambier, no prefácio da obra organizada pelo JOTA, “O novo Código desvendado”, é bastante significativo o fato desse ser o primeiro Código de Processo Civil gestado e aprovado em um regime democrático no Brasil, especialmente quando comparado aos dois que já existiram: 1939 e 1973. Tachado pelos críticos ora como um “Código dos Advogados”, ora como um “Código dos Juízes”, André Roque Vasconcellos destaca que, na verdade, o pragmatismo é a ideologia vitoriosa do novo Código[5].
Entretanto, no seu compromisso sincrético entre ideologias variadas, o CPC/2015 efetiva conquistas muito importantes para o país. Pelo menos com relação aos dispositivos alterados pela lei de 2016, o novo C.P.C. “foi sem nunca ter sido”[6]. De fato, o Código promoveu alguns avanços e alguns retrocessos. No museu de novidades[7] processuais, a referida lei acaba por emascular algumas pautas centrais para o processo civil brasileiro, que foram debatidas por anos com a sociedade.  O CPC/2015, celebrado por ser um Código sem sotaques[8](ou de múltiplos sotaques), teve sua pronúncia abruptamente modificada, pelo menos em relação aos seguintes aspectos:
  • o fim da obrigatoriedade da ordem cronológica de tomada de decisão pelos juízes, substituída pela simples preferência (art. 12);
  • a manutenção da admissibilidade do Recurso Extraordinário pelo Presidente ou Vice-Presidente do tribunal de origem, em lugar de UM juízo apenas no STF, como previa originalmente o CPC/2015 (art. 1030, V);
  • a desnecessidade de analisar todos os fundamentos favoráveis e contrários constantes do pedido, bastando ao juiz concentrar-se sobre os que julgar relevantes (art. 1038,§3º).

“Antigas novidades” foram, assim, sem nunca ter sido, fazendo com que em alguma medida o novo C.P.C se tornasse uma legislação simbólica[9].

I.
Em primeiro lugar, o art. 12 do novo C.P.C. previa a obrigatoriedade do julgamento em ordem cronológica. Na sua redação original, o dispositivo inspirava a construção de um Judiciário mais célere, efetivo e isonômico[10], com uma duração razoável dos processos[11]. A redação original previa que “Os juízes e os tribunais deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão”, de forma a evitar favoritismos na escolha de quais processos seriam julgados primeiro.
O dispositivo era bastante razoável, especialmente por prever as necessárias exceções do seu § 2º. São dignas de nota, aqui, as positivadas nos incisos II (julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos); III (o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas); e IX (a causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada)[12].
A redação alterada pela Lei n. 13.256/16 passou a prever que “Os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão”. Não é difícil antever que o “preferencialmente” significará o fim da obrigatoriedade de decidir de acordo com a ordem cronológica de conclusão. Como bem colocou a profa. Gisele Leite, o dispositivo transformou a obrigação em faculdade[13]. Em outras palavras, a Lei n. 13.256/16 deixou o novo C.P.C. como o C.P.C. de 1973, não trazendo maiores avanços na busca de um processo realmente mais justo, com vistas à celeridade e isonomia.
Muitas foram as críticas voltadas para a defesa da necessidade de ser observada a gestão do acervo de processos, que, de acordo com a redação do original do novo C.P.C., poderia comprometer o funcionamento do Judiciário. Dentre elas destacam-se as realizadas pela AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros -, que considera que os julgadores poderiam ficar engessados e perder o poder de autonomia na administração dos processos[14][15]. Do lado do Legislativo destaca-se a realizada pelo Senador Blairo Maggi, quando da elaboração do Parecer n. 1.178 apresentado durante o trâmite do PLC n. 168, de 2015[16], ao dispor que a ordem cronológica de julgamento “com a rigidez monolítica anunciada pelo texto do novo Código revela-se, em verdade, contrária às necessidades práticas de gestão de processos nos tribunais[17]
Apesar das afirmações em sentido contrário, não nos parece ter sido adequada a alteração dada ao art. 12, ao retirar a obrigatoriedade de decidir com base na ordem cronológica, na medida em que elenca um grande leque de exceções. Na realidade, com a retirada da obrigatoriedade de se obedecer à ordem cronológica de conclusão, tudo indica que o art. 12 não trará qualquer benefício à busca de um processo efetivamente justo, assim entendido como o processo utilizado como instrumento apto a possibilitar uma atividade jurisdicional mais plena, isonômica, voltada para o direito material e para a solução de conflitos da forma mais justa possível.
Os prognósticos destacam que continuaremos a presenciar casos em que processos demorarão anos para serem julgados, permanecendo estáticos nas prateleiras empoeiradas do Judiciário. A norma original do art. 12 poderia representar um Judiciário mais célere e capaz de atender aos anseios da sociedade. Porém, o Legislativo preferiu positivar uma fórmula antiquada.

II.
Outra alteração de relevo trazida pela referida Lei n. 13.256/16 se deu no art. 1.030, que trata da admissibilidade dos recursos especial e extraordinário. Em sua redação original, o N.C.P.C. dispunha que: “Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão remetidos ao respectivo tribunal superior.” O seu parágrafo único veio ainda reforçar que “A remessa de que trata o caput dar-se-á independentemente de juízo de admissibilidade.”
Estava bem clara a intenção de dar maior celeridade ao trâmite dos recursos, pois um dos grandes problemas enfrentados pelos tribunais de segunda instância sempre foi o grande volume de recursos extraordinários pendentes de admissibilidade[18].
A Lei n. 13.256/16 não só alterou o caput do art. 1.030, como também devolveu ao Presidente ou ao Vice-presidente de cada Tribunal de origem o exame de admissibilidade. Positivou cinco incisos com as hipóteses de cabimento dos recursos extraordinários. Seguindo a ordem dos incisos do art. 1.030, o Presidente ou Vice-presidente poderão: negar seguimento aos recursos, encaminhar o processo ao órgão fracionário julgador para se retratar; sobrestar o recurso que tratar de matéria representativa de controvérsia reconhecida em recurso repetitivo; selecionar o recurso como representativo de controvérsia e, finalmente, remeter o processo às Cortes extraordinárias em caso de admissibilidade positiva[19].
A manutenção da admissibilidade do Presidente ou do Vice-presidente do Tribunal de origem, que havia sido suprimida pelo novo C.P.C, novamente trouxe ares de que nada mudou. Todo o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários se concentraria, a partir do CPC/2015, no STJ e no STF. Com saudades do C.P.C. de 1973, o legislador retornou ao modelo bipartido de admissibilidade: um primeiro juízo na Vice-Presidência do tribunal de origem e um segundo no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal (art. 1.030, V, e ss). Os fundamentos para a reforma foram o de que extinguir o juízo de admissibilidade na origem abarrotaria o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, esvaziando os propósitos de celeridade da E.C. n. 45/04.
Esta questão traz uma série de debates. De um lado, os que defendem que o STJ e o STF devem concentrar o exame de admissibilidade dos recursos extraordinários, a fim de possibilitar maior celeridade aos tribunais ordinários e impedir o usual agravo para “destrancar” recursos inadmitidos. Do outro, os que defendem que as referidas Cortes não têm estrutura suficiente para uma grande e repentina demanda de processos, razão pela qual seria mais racional manter a admissibilidade nos tribunais de origem.
O retorno da admissibilidade nos tribunais de origem foi expressamente mencionado como um dos fundamentos do Projeto de Lei n. 2384/2015 da Câmara dos Deputados, consoante Parecer apresentado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania[20], sob o argumento de que tal medida garantiria a celeridade e o filtro necessário para julgamento de REs com repercussão geral reconhecida e de recursos submetidos ao regime dos recursos repetitivos, além de permitir que os Tribunais Superiores cumpram a missão constitucional a eles atribuída. Com esta finalidade, o Parecer, defende, com base em dados estatísticos, que no ano de 2014 foram interpostos 452.700 recursos especiais nos tribunais de origem, sendo que somente 77.000 foram admitidos e remetidos ao STJ. Com efeito, concentrar a admissibilidade nos Tribunais Superiores inviabilizaria uma prestação jurisdicional célere.
Os dois lados apresentam bons argumentos. Mas, de qualquer forma, o exame da admissibilidade na origem já foi experimentado e parece contribuir para a demora do processo, especialmente em relação ao sobrestamento por conta do julgamento do paradigma no STF, conforme apontam alguns estudos empíricos[21]. Na grande maioria dos casos, as presidências ou vice-presidências dos tribunais permanecem abarrotadas de processos e, não raro, apresentam decisões de admissibilidade genéricas e deficientes.
Talvez valesse a pena perfilhar um novo caminho, como o pensado pelo C.P.C/ 2015 em sua redação original, possibilitando que as cortes superiores concentrassem o exame de admissibilidade dos recursos, de forma a buscar uma maior previsibilidade das decisões que envolvem as admissibilidades do REsp e do RE. Se, feito de forma concentrada no STJ e no STF, seria possível ter uma maior coesão nas decisões proferidas em exame de admissibilidade, privilegiando valores como a estabilidade, previsibilidade, calculabilidade e uniformidade, que são elementos caracterizadores do postulado da segurança jurídica[22]. Poderia ser evitado, com isso, a jurisprudência defensiva que tanto atinge o exame do mérito destes recursos.
É verdade que seriam necessários estudos empíricos acerca da viabilidade das propostas de se concentrar o exame da admissibilidade nos tribunais superiores, ao invés de aceitar argumentos ad terrorem de que isso seria inviável e que inviabilizaria o bom funcionamento dos mesmos. Além disso, talvez pensar em reformas institucionais, como a possibilidade da criação de setores ou sub-órgãos no STF ou no STJ, destinados exclusivamente à análise do cabimento destes recursos.

III.
A Lei n. 13.256 de 2016 também alterou o art. 1.038, §3º do CPC/2015, que trata da fundamentação dos acórdãos proferidos em recursos extraordinário e especial repetitivos. Originalmente, o dispositivo previa que “O conteúdo do acórdão abrangerá a análise de todos os fundamentos da tese jurídica discutida, favoráveis ou contrários.”. Com a nova redação, “O conteúdo do acórdão abrangerá a análise dosfundamentos relevantes da tese jurídica discutida[23].
Perceba-se que a substituição de “todos os fundamentos” pelo conceito jurídico indeterminado “fundamentos relevantes” tornará apenas simbólica a exigência de uma fundamentação exauriente e exaustiva no processo de tomada de decisões. Não é de hoje que, entre avanços e retrocessos, procura-se implementar melhorias na fundamentação das decisões judiciais.
A Emenda Constitucional n. 45 de 2004 positivou tal diretriz no art. 93, inciso IX, que prevê que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, (…)” – e no inciso X –“as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros.”.
Não é de hoje, também, que existe resistência na doutrina sobre o alcance dos fundamentos das decisões judiciais. Uma corrente defende o princípio da máxima efetividade da Constituição, entendendo que todos os pontos apresentados pelas partes na sua defesa devem ser considerados pelo julgador Em uma segunda corrente sustenta que o termo “julgamento” e “decisão” compreendem apenas a esfera de direitos dos particulares, de modo que as decisões judiciais e administrativas que necessitariam de fundamentação seriam apenas aquelas restritivas de direito[24].
Mesmo uma solução mais comedida sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais no CPC/2015 poderia ter ensejado uma redação mais consistente no sentido de minimizar o enfraquecimento do dever de fundamentação promovido pela reforma. Assim, cabe realizar uma interpretação conforme da nova redação do art. 1.038, §3º, do N.C.P.C, bem como do art. 93, IX e X, da Constituição Federal.
O retrocesso, porém, já se positivou. O que se pode fazer agora é compreender como “fundamentos relevantes” todos aqueles que sejam aptos a justificar decisões que restrinjam direitos. Não se teria a fundamentação dos sonhos do legislador original do C.P.C., uma fundamentação exaustiva. Mas seria a fundamentação das possibilidades do embate legislativo.
Deve ser buscada, então, nesse momento, a ampliação da efetividade do § 1º, do art. 489, do N.C.P.C. É verdade que o art. 489, § 1º, IV, consigna que não se considera fundamentada a decisão que não enfrentar “todos os argumentos deduzidos do processo”, mas qualifica: “capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. Embora essa parte final abra brechas para a seleção dos argumentos relevantes, em lugar de todos eles, há de se ler a parte inicial no contexto dos demais incisos que também não consideram fundamentada a decisão que apenas cita um disposto legal ou que utiliza conceito jurídico indeterminado, precedente ou súmula sem indicar a sua relação com o caso concreto[25].
Perceba-se que a interpretação teleológica do dispositivo, em consonância com uma interpretação conforme à Constituição, tendo como parâmetro o art. 93, X, revela uma pretensão de que as decisões tenham a melhor e mais ampla fundamentação possível, notadamente em relação à normas restritivas de direitos e, em especial, quando envolver direitos fundamentais.

IV.
Como o N.C.P.C. foi muito alterado desde a sua redação original, há grandes chances de termos outras novidades por conta da ADI 5492 proposta contra a Lei n. 13.105/15[26]. Centramos, porém, nossos questionamentos nas três modificações que reputamos ser pautas estruturantes de um novo processo civil: a fundamentação, a ordem cronológica e a admissibilidade dos recursos extraordinários.
O “velho” travestiu-se com a roupagem do “novo”. A Lei n. 13.256/2016 parece ter frustrado muitas expectativas sociais depositadas no novo CPC/2015. Em uma espécie de eterno retorno hermenêutico: o Código, que passou por um longo e democrático processo legislativo, foi abruptamente esvaziado em aspectos muito relevantes. No museu de novidades do CPC/2015 esperamos, sinceramente, que nossos prognósticos e receios estejam equivocados e não vejamos o futuro repetir o passado.

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