Lei de Falências e os desafios para novas captações de recursos, por Kenneth Antunes Ferreira

 Em fevereiro de 2005 foi promulgada a atual lei de falências brasileira, trazendo uma grande expectativa de que o spreadbancário seria finalmente reduzido para os mesmos patamares praticados em países com um histórico sólido em processos de recuperação e liquidação de empresas.
O mercado de crédito, entretanto, não foge à regra de uma lei maior: a lei da oferta e demanda. O aumento da oferta de crédito, por lógica, resultaria na diminuição das taxas de juros. Mas, no que depender da interpretação e aplicação pelos tribunais da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência (“LRF” ou “Lei de Falências”), a oferta de crédito tende a permanecer reduzida.
O aumento da oferta de crédito passa, necessariamente, pelo desenvolvimento do mercado de capitais, que fornece às empresas opções fora do sistema bancário para a captação de recursos. O ciclo econômico que o País vivenciou, com o aumento dos preços dascommodities a partir de 2004, propiciou o aumento significativo do fluxo de capitais no Brasil, viabilizando o acesso de investidores internacionais a empresas locais em níveis jamais vistos. O número de ofertas públicas de ações de empresas brasileiras bateu recordes por anos consecutivos até a crise internacional do subprime, no final do ano de 2008.
A partir de 2009, apesar de redução das ofertas de ações, o mercado seguiu com atividade relevante nas ofertas locais e internacionais de instrumentos de dívida. Além disso, não foram poucos os incentivos para o investimento, tais como a isenção de imposto de ganho de capital para investidores estrangeiros e, mais recentemente, também dos nacionais que aplicassem recursos em títulos imobiliários ou do agronegócio.
Passada a euforia com empresas altamente capitalizadas, em 2014 o ciclo de expansão econômica começou a tomar sentido inverso. A retração dos preços das commodities e o ambiente político conturbado com as eleições e com as investigações da “operação lava-jato” afetaram profundamente a economia local.
Se no período de 2005 a 2008 o que se viu foram recordes no número e nos volumes de captação de recursos, o que se tem agora são recordes nos tamanhos dos processos de recuperação judicial no mercado brasileiro.
Dado o cenário de redução da atividade econômica, muitas companhias não foram capazes de entregar os resultados esperados e não tiveram outra alternativa senão iniciar processo de recuperação judicial. Criaram, assim, verdadeiros testes de fogo para a Lei de Falências, ao dar, nas negociações de planos de recuperação, protagonismo até então inexistente – ou diminuto – aos agentes do mercado de capitais. E nesses testes, alguns resultados, os quais abordamos neste trabalho, são bastante questionáveis.
Em razão do tratamento que têm recebido no judiciário, alguns pontos da Lei de Falências que carecem de maior detalhamento para dar segurança ao investidor, tais como o tratamento das garantias formadas por recebíveis, as chamadas travas bancárias, a cessão e a alienação fiduciária e a exclusão desses créditos dos processos de recuperação judicial e falência, os votos por classe de credores e etc.
Neste trabalho, trataremos de dois pontos que entendemos relevantes e que certamente influenciarão novas operações de captação de recursos por empresas brasileiras: a consolidação substancial e o alegado “voto abusivo” de credores.
Consolidação substancial
O primeiro ponto de preocupação em relação à interpretação dada à Lei de Falências nos processos de recuperação judicial é a chamada consolidação substantiva, ou consolidação substancial. Por meio desse mecanismo, as empresas de um grupo econômico que pedem recuperação judicial apresentam um único plano de recuperação, em que estão reunidos todos os credores de todas as empresas do grupo.
Essa prática tem sido aceita nos tribunais a despeito do tratamento individualizado por empresa que a Lei de Falências dispensa aos processos de recuperação. A lei foi construída de tal forma que as referências ao devedor sempre são feitas a uma única empresa “devedora” não contemplando o caso de recuperação de um grupo econômico. Portanto, não há na Lei de Falências qualquer disciplina a respeito da recuperação de várias empresas em conjunto, sendo elas de um grupo econômico ou não.
Diferentemente, na consolidação substancial, se um credor concedeu crédito a uma empresa específica de um determinado grupo, a prevalência que tal credor teria sobre a empresa e por seus ativos cai por terra e a destinação dos ativos passa a ser determinada por toda a comunidade de credores do grupo econômico que fazem parte do processo de recuperação.
Os efeitos desse mecanismo podem ser nefastos. A concessão de crédito, por exemplo, terá que considerar todo um grupo econômico e não mais uma empresa específica que tenha um determinado tipo de atividade ou opere um ativo específico. É ainda mais alarmante saber que o pedido de processamento consolidado da recuperação de um grupo econômico é feito pela própria companhia, antes mesmo que se tenha consolidado o quadro de credores.
Assim, até que os credores entendam a forma em que será processada a recuperação e quais são os elementos que terão que considerar na renegociação do endividamento da companhia, o processo está em um estágio muito avançado, quase irreversível.
Além disso, tem eficácia reduzida neste tipo de processamento as modalidades de investimento que são totalmente baseadas no ativo, caso dos financiamentos de projetos, em que todos os ativos utilizados em determinado projeto são dados em garantia, juntamente até com as ações ou quotas da empresa detentora dos ativos, geralmente uma sociedade de propósito específico.
Enfim, além dos argumentos apresentados acima, some-se a isso o fato de que a jurisprudência a respeito da consolidação substantiva não está estabilizada, gerando ainda mais incertezas a respeito do processo e da capacidade de recuperação do investimento realizado.
Voto Abusivo
Outro ponto a ser considerado em relação aos processos de recuperação judicial diz respeito ao reconhecimento de abuso de direito ou voto abusivo de credores em assembleia geral.
É certo que a Lei de Falências estabelece em seu artigo 47 que a recuperação judicial “tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dosinteresses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (g.n.).
Ocorre que o princípio da preservação da empresa tem tido interpretação demasiadamente extensiva, especialmente quando confrontado com outros interesses, até mesmo em detrimento de texto expresso da lei, o que, certamente, gera ainda mais insegurança ao credor.
O abuso do direito de voto, ou voto abusivo, pode ser classificado em positivo ou negativo. O abuso positivo ocorre quando o credor se vale do seu direito de voto para a obtenção de vantagem particular estranha à sua condição de credor. O abuso negativo ocorre quando adota comportamento obstrutivo, rejeitando um plano de recuperação judicial sem fundamento legítimo.
Nesta última hipótese é que entendemos que a jurisprudência tem dado uma interpretação extensiva sobre o que é um fundamento legítimo para considerar o que é ou não um voto abusivo.
Numa negociação entre devedor e credores, no processo em que o plano de recuperação é elaborado pelo devedor, o poder de barganha dos credores está basicamente na possibilidade de não aprovar o plano. Se ao votar contrariamente ao plano (e de forma favorável a seus legítimos interesses) o credor está cometendo abuso, não resta outra alternativa senão aceitar qualquer condição imposta pelo devedor. Ademais, tem se tornado prática comum a utilização de critérios subjetivos para aferir se determinado voto é ou não abusivo, o que impossibilita ao credor determinar previamente se um voto contra a aprovação de um plano de recuperação será abusivo ou não.
Há que se considerar também as hipóteses em que os credores vislumbram uma possibilidade maior de recuperação do crédito mediante a liquidação da companhia em relação àquela apresentada em plano que contém um desconto significativo, por exemplo. Nesses casos, é questionável se deve prevalecer a ampla interpretação do princípio da preservação da empresa em detrimento do credor, cujos interesses também tem proteção legal, e de qualquer maneira poderá ser considerado abusivo o voto de credor que se manifesta dessa forma. Assim, se o credor entender que a ele é mais apropriado votar contra um plano em que se vê prejudicado, gerando uma possibilidade maior de recuperação de seu crédito, não há que se falar em voto abusivo, ainda que tal voto resulte na falência do devedor.
A imputação de um voto abusivo ao credor também o sujeita a responsabilidade não condizente com a situação de credor, podendo ser responsabilizado civilmente pelo devedor e pelos demais credores de causar prejuízo forçando uma situação de falência. Assim, a determinação de que o credor agiu com abuso do direito de voto somente pode ser considerada em situações extremas e cabe ao juiz justificar detidamente a conexão entre o voto e o abuso do direito do credor.
O simples fato de um voto resultar na falência do devedor não deveria ser causa suficiente para caracterizar o voto abusivo. Porém, temos notado uma tendência a se considerar como abusivo todo e qualquer voto contra a aprovação de plano que resulta na falência do devedor, ainda que haja elementos que legitimam o voto pela não aprovação do plano de recuperação.
Enfim, como mencionado acima, existia uma expectativa de que com a Lei de Falências um cenário de maior segurança jurídica poderia resultar na diminuição das taxas de juros no mercado brasileiro. Entretanto, o princípio da preservação da empresa tem sido aplicado de maneira desmedida e abusiva em detrimento de legítimos interesses dos credores no processo de recuperação.
A lei que deveria funcionar como um incentivo aos investidores para conceder crédito a empresas brasileiras acabou tendo o efeito inverso, deixando-os temerosos de investirem no Brasil, diminuindo a oferta de crédito. Como consequência, o empreendedor brasileiro continua pagando uma das mais altas taxas de juros do mundo.
É de se esperar que os investidores sejam mais cautelosos na hora de conceder crédito, receosos de verem a empresa na qual investiram obter as proteções do processo de recuperação judicial previsto na Lei de Falências. Assim, os credores deverão cercar-se das cautelas jurídicas e financeiras que sejam efetivas não só para a constituição do crédito, mas também para a sua recuperação, quando for necessária.

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