Após referendo, saída britânica da União Europeia vai ao tribunal, por Mariana Muniz

A Suprema Corte do Reino Unido irá realizar uma audiência nesta terça-feira (25/7) para ouvir detalhes da disputa legal sobre o início do processo da saída britânica da União Europeia (UE) – decidida por meio de referendo no último 23 de junho. Esta é a primeira de uma série de audiências sobre o assunto que a corte britânica sediará. Uma decisão é esperada para outubro.
A questão é se os eleitores britânicos podem, de fato, tirar seus países da União Europeia ou se essa tarefa cabe apenas aos membros do parlamento. Trata-se de um procedimento de revisão judicial: nele, a corte avalia a legalidade de como uma decisão do governo foi alcançada.
Os ministros da mais alta instância judicial britânica irão considerar determinados aspectos constitucionais do ‘Brexit’. Desde o referendo, há dúvidas sobre se a atual primeira-ministra conservadora, Theresa May, tem poder para entregar o aviso de saída da UE nos termos do artigo 50 ou se ela precisará contar com o crivo do parlamento para bater em retirada.
O artigo 50 é a notificação legal para deixar o bloco europeu, que abrirá um processo de dois anos até a saída completa e total do Reino Unido. Um voto parlamentar sobre o lançamento do artigo 50 pode postergar o Brexit, já que a maioria dos parlamentares deseja a permanência na União Europeia.
O referendo do mês passado perguntou à população se o Reino Unido deveria ou não permanecer sob as regras de Bruxelas: a maioria apertada de 51,9% optou por desembarcar. Foram 7,4 milhões de britânicos, cujo retrato oficial mostra a maioria das pessoas pró-Brexit acima dos 60 anos, moradoras das regiões interioranas dos países que integram o reino.
Dois direitos 
A realização dessas audiências são uma amostra dos ajustes jurídicos que serão necessários para o divórcio britânico-europeu.
Além dos aspectos operacionais – quem pode ou não decidir – o aspecto legal perpassa contratos, acordos e até aposentadorias. Dúvidas que vêm, inclusive, pelo fato de haver dois “tipos” de direito: a common law, aplicada no Reino Unido, e o direito comum europeu, usado no continente, uma dualidade que gera implicações no “Brexit”.
Ao longo dos anos em que fez parte da União Europeia, o Reino Unido teve que adaptar-se juridicamente ao direito praticado do outro lado do Canal da Mancha.
Em 1972 o Reino Unido ingressou na antiga Comunidade Econômica Europeia. “Essa inclusão gerou uma verdadeira revolução copernicana no seu direito”, explica a professora Jânia Maria Lopes Saldanha, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Segundo ela, isso ocorreu tanto pela recepção interna dos princípios da primazia, da aplicabilidade imediata e do efeito direto das normas comunitárias europeias, quanto pelo impacto que causaram sobre o modelo de produção do direito no Reino Unido.
Guias para aplicação do direito
Entretanto, esses princípios foram uma construção jurisprudencial do Tribunal de Luxemburgo – o tribunal comunitário – ainda na década de 1960 e, nesse tom, nada foi estranho aos povos do common law.
“O grande impacto derivou do fato de terem servido e ainda servir de guias poderosos para a aplicação do direito da União Europeia que é produzido conforme o modelo da tradição civil, ou seja, é essencialmente escrito”, explica Saldanha.
Como exemplo, a especialista diz que a Inglaterra, ao aceitar o princípio da primazia, colocou em cheque uma regra cardeal de seu sistema jurídico-político, que é o princípio da soberania do Parlamento inglês.
“Essa foi, então, uma profunda adaptação a que o Reino Unido teve de submeter-se”, assinalou.
A participação do Reino Unido no que é hoje a União Europeia sempre teve notas particulares baseadas na sua posição derrogatória em relação a inúmeras matérias comunitárias.
Saldanha lembra que, de fato, além de não ter adotado o euro e tampouco aderido ao espaço Schengen – de livre circulação de pessoas -, os britânicos sempre se beneficiaram de possibilidades derrogatórias em matéria de liberdade, de segurança e de justiça.
Próximos passos
Do ponto de vista das leis internas, tudo dependerá do modelo de relação que o Reino Unido adotará com a União Europeia, caso o Brexit seja implementado.
De acordo com a professora, uma “saída total” inevitavelmente conduzirá os Parlamentos a revogar, manter ou modificar as leis internas feitas para atender as exigências do direito comunitário, por exemplo, aquelas derivadas das diretivas europeias.
Cerca de 80 normas seriam revogadas com a saída, numa consequência direta do choque de direitos, segundo estimativa do professor de direito internacional José Ribas Vieira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A estimativa tem como premissa uma bem-sucedida transitoriedade dos aspectos constitucionais do Reino Unido, com experiências inovadoras como a criação de parlamentos regionais na Escócia e no País de Gales e referendos como o de agora.
“Tudo o que falarmos por enquanto é precipitado ou imaturo, mas acredito que estamos diante de novos horizontes”, pontua Vieira. “É impressionante pois ao mesmo tempo que tem um aspecto isolacionista conservador, o ambiente jurídico britânico inova com experiências dentro de um constitucionalismo radical.”
Legislação sem UE
Novas leis também devem ser editadas – especialmente nas áreas que dizem respeito aos interesses nacionais, como os relacionados aos consumidores, ao meio ambiente, à concorrência e à agricultura.
De maneira prática, milhares de texto normativos que hoje vinculam a vida do Reino Unido às leis europeias serão desprezados e deverão, seguramente, ser substituídos por outros, até mesmo para evitar o vazio jurídico.
Do ponto de vista institucional, o Reino Unido deverá criar instituições nacionais destinadas a atuar na regulação de domínios hoje pertencentes à União Europeia e que estão sob responsabilidade da Comissão Europeia.
“Sem dúvida que a elaboração desses novos textos normativos apresentará sérios desafios à política interior e exigirá muita engenharia jurídica”, observa Saldanha.

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