Processo Familiar: Culpa cabe na religião e na mente, mas não no Direito de Família, por Giselle Câmara Groeninga
Algumas notícias recentes tais como a votação do Estatuto da Família[1],
que exclui a realidade da diversidade das organizações familiares, as
discussões quanto ao aborto e pílula do dia seguinte, inclusive nos
casos de estupro, em muitos aspectos representam um retrocesso quanto à
laicidade do Estado e do Direito.
A dinâmica pendular, de avanços e
de retrocessos, e de tensão entre os poderes, e mesmo ideologias, é um
movimento inerente às mudanças legislativas que devem acompanhar a
sociedade. No entanto, às ideologias devemos atentar.
Após um
Outubro Rosa, que iluminou questões ligadas às mulheres, em muito
transcendendo o nosso contexto a cena mundial foi invadida pelas mais do
que alarmantes notícias dos ataques terroristas em Paris, na última
sexta feira 13 de novembro.
Polarizados dois lados. De um, o
amálgama de religião e Direito; de outro, direitos fundamentais e
conquistas quanto à liberdade, inclusive de credo e de pluralidade
quanto às várias formas de constituição das famílias, aí incluída a
diversidade quanto às manifestações da sexualidade, e conquistas quanto à
laicização do Estado e do Direito.
Aponto que algumas diferenças
marcam também os contrastantes avanços havidos pelo nosso Direito de
Família, avanços dos quais devemos cuidar. O choque dos ataques alerta
para a importância, e mesmo urgência, da discussão dos temas que, em
nossas terras, têm sido defendidos muitas vezes de forma passional.
A
exclusividade de valores religiosos do matrimônio indissolúvel e
sacralizado, e entre homens e mulheres, com fins de procriação, passou,
há já algum tempo, a contemplar diferenças e diversidades. A família,
atualmente, se define como eudemonista, em que cada um busca sua
realização e bem estar, pautadas as relações pela igualdade e pelo
respeito às diferenças, e pelos valores da ética do cuidado e da
solidariedade.
A mudança que vejo como definidora das diferenças é
a da laicização do Direito e, do ponto de vista que aqui enfatizo, é a
mudança de paradigma daquele baseado na culpa para aquele baseado na
responsabilidade.[2]
Há
muito a culpa tem sido usada e abusada pelo Estado e pelo Direito de
Família, e ideologias religiosas para o controle das relações.
Não
abordo aqui, absolutamente, a culpa estritamente do ponto de vista
religioso, mas aponto que não mais cabe a utilização acrítica de tal
instrumento pelo nosso Direito de Família. E, neste sentido é que alerto
para o cuidado quanto aos retrocessos.
A culpa é uma poderosa
forma de dominação utilizada para o quê, hoje, por vezes detectamos como
indevido exercício do poder afetivo por parte de instituições. Poder
amalgamado com aspectos da ideologia religiosa, patriarcal, e outras.
Inclusive servindo-se, por vezes, também de racionalizações subtraídas
da psicologia. Uma forma de dominação da mente e dos comportamentos.
A
culpa é um sentimento que, por ter a peculiaridade de ser também
inconsciente, diversamente de todos os outros sentimentos, se priorizado
e se não evoluir para a responsabilidade, traz várias consequências.
Pode nos vitimizar quando ao outro a atribuímos indiscriminadamente;
pode nos martirizar quando a nós a atribuímos de forma inconsciente.
Mas, sobretudo, nos infatiliza, pelo caráter impessoal que ela tem, e
leva a radicalizações.
A culpa pode, também, servir de álibi
quanto à enfrentar e assumir pessoalmente as responsabilidades. Uma
equação que se traduz como: culpado por tudo responsável por muito
pouco.
O Direito de Família era pautado pela atribuição de culpas,
prenhe de interpretações não só com alta dose de subjetividade e
ideologias, como, em consequência, parciais. Atualmente, temos mais
consciência de impensáveis violações ao direito à intimidade e dos
ataques à dignidade, cometidos sob o manto da investigação da culpa,
dividindo as relações em culpado, algozes, e vítimas, inocentes.
Preciso
dizer que a culpa, no mais das vezes, recaía (e ainda recai) sobretudo
sobre mulheres, na tentativa de exercer controle sobre a sexualidade e,
também, sobre a maternidade e mesmo o patrimônio, transformando-as em
vítimas do sistema. Necessário, ainda, dizer o quanto a homossexualidade
é alvo da tentativa da imputação da culpa.
Não perquirir culpas
denota um amadurecimento bem vindo da laicização do Direito, e mais
livre do controle de ideologias e propósitos outros que fogem à sua
finalidade. Mas, certo é que outros capítulos, no sentido não mais das
culpa e sim das responsabilidades, deverão ser escritos nas evoluções da
legislação.
Em tempos de uma bem vinda consideração e integração
dos afetos no Direito de Família, em que evoluímos de modelos que
pretendiam ignorá-los, cabe relembrar que somos seres particularmente
vulneráveis aos afetos e sentimentos deles derivados. Disso ninguém
duvida.
Mas, o somos inadvertidamente, sobretudo, vulneráveis ao
sentimento de culpa que, diversamente dos outros sentimentos, tem a
peculiaridade de ser também inconsciente. E, ao se tratar do
inconsciente, como disse Freud, não somos lá muito donos de nossa mente.
Se
a culpa não deve mais ter o lugar que tinha no Direito de Família, cabe
dizer que em termos psíquicos, ela é um sentimento com o qual estamos
sempre às voltas, no incessante trabalho mental de diferenciar entre a
culpa e a responsabilidade.
Assim, por ser um sentimento também
inconsciente, lhe somos particularmente vulneráveis, do que decorre o
imenso poder de controle dos comportamentos e das relações.
Ninguém
desconhece nos relacionamentos, sobretudo os familiares, o poder e o
custoso trabalho de discriminação que o sentimento de culpa demanda no
processo de individuação e do assumir responsabilidades.
A culpa é
um sentimento inerente ao ser humano e muito do trabalho mental e de
amadurecimento se dá no sentido da transformação de uma posição de
vítima passiva das circunstâncias e dos outros em agentes e narradores
da própria vida. Por exemplo, é natural durante a infância e
adolescência, atribuir-se a culpa e responsabilidades aos pais, para se
chegar à equação da responsabilidade que aqueles cabe e coube, para
aquela que efetivamente agora cabe ao sujeito, inclusive quanto às suas
escolhas.
Longo o caminho de amadurecimento de sujeito assujeitado
a sujeito agente, com a devido equilíbrio na atribuição das
responsabilidades — a si e ao outro.
Longo o percurso da
cidadania, e de valores democráticos e republicanos, de sujeito
assujeitado, vítima passiva de instituições e de ideologias que lhe
ferem direitos fundamentais, para sujeito que assuma responsabilidades, e
que, devidamente, as possa assim, também, cobrá-las.
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