Brasil se prepara para disciplinar o tratamento de dados pessoais, por José Eduardo Pieri e Rebeca Garcia
O
ministério da Justiça apresentou, no último dia 20/10, por meio da
Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), a versão final do
Anteprojeto de Lei que disciplina o tratamento de dados pessoais, a ser
submetida ao Congresso Nacional. O texto é resultado de um amplo e
transparente processo colaborativo e multissetorial, iniciado em 2010 e
consolidado após a consulta pública ocorrida entre 28/1 e 5/7 de 2015,
por meio de plataforma online para apresentação de comentários e
sugestões – paralelamente à consulta pública sobre a regulamentação do
Marco Civil da Internet.
O tema tem
especial interesse para o mercado empresarial, uma vez que o avanço da
tecnologia tem proporcionado oportunidades, há pouco inimagináveis, no
mapeamento de hábitos e tendências de consumo. A precisão na análise de
dados pode levar à tomada de decisões com mais confiança e menor margem
de erro. Por sua vez, melhores decisões podem significar uma maior
eficiência operacional, redução de risco e de custos.
Pelo que já de vê
da versão final apresentada, o Anteprojeto traz diversas e importantes
novidades – sobre as quais só se pode falar, por ora, em caráter
especulativo, eis que o caminho pela frente ainda é imprevisível, e pode
ser longo. De todo modo, já vale destacar que o objeto da proteção do
Anteprojeto são os dados pessoais e a privacidade da pessoa natural –
não que a pessoa jurídica não tenha proteção, mas ela se dá por outros
meios já existentes ou porventura mais desenvolvidos no futuro.
Além de
estabelecer importantes princípios e consagrar direitos do titular dos
dados, o texto deixa claro que o sistema brasileiro de proteção de dados
pessoais não se concentra apenas na figura do consentimento, que pode
assumir nuances diversas a depender da relação concretamente
considerada. Antes, trata-se especialmente de conferir ao titular dos
dados pessoais objeto de tratamento mecanismos que lhe permitam ter
maior ou algum controle sobre o tratamento que se faz de seus dados.
Como relação às
empresas que se valem de dados pessoais de consumidores, o texto
proposto estabelece regras até certo ponto claras, homenageando o
fundamental princípio da transparência – que chega de mãos dadas com
princípios como o da finalidade (que de ser definida, informada e,
especialmente, legítima) e da proporcionalidade. Entende-se que assim
haverá maior segurança jurídica para o desenvolvimento de atividades
empresariais que se valem do tratamento e uso de dados pessoais para
melhor atender seus clientes.
O Anteprojeto é
importante também por estabelecer conceitos-chave, como o de dados
pessoais, tratamento de dados, dados sensíveis, bancos de dados,
consentimento etc. Merecem particular atenção, também, as regras
previstas com relação aos requisitos para o tratamento de dados
pessoais, dentre os quais inclui-se o consentimento livre e inequívoco
do titular dos dados, bem como as regras sobre a transferência
internacional de dados – que é expressamente permitida, mas em condições
e hipóteses bem definidas. A transferência, além de observar o
princípio da transparência e a necessidade de consentimento, só pode
ocorrer para países que proporcionem nível de proteção ao menos
equiparável ao estabelecido na lei que vier a ser sancionada no Brasil.
É possível
destacar também o tratamento conferido pela minuta de texto com relação
aos agentes envolvidos no tratamento de dados e, especialmente, ao
regime de responsabilidade que se lhe aplica. Nesse sentido, por
exemplo, estabelece-se regime de responsabilidade solidária e objetiva
entre cedente e cessionário em hipóteses de transferência de dados
pessoais – prática cada vez mais comum em operações societárias.
Atenção também
merecem as regras sobre segurança de dados pessoais e boas práticas,
além da instituição da figura do órgão competente para zelar pela
implementação e fiscalização da lei de proteção de dados. Segundo o
Anteprojeto, em caso de incidentes de segurança que possam acarretar
risco ou prejuízo relevante aos titulares, deve-se comunicar o órgão
competente – e, nos casos em que se possa identificar que o incidente
coloque em risco a segurança pessoal dos titulares ou lhes possa causar
danos, deve haver pronta comunicação aos próprios titulares dos dados
pessoais afetados pelo incidente.
Estas são apenas
algumas das tantas inovações inauguradas com o Anteprojeto de Lei, que é
relevante em sua inteireza. Trata-se não só de um passo crucial, mas de
importante (e esperado) marco legislativo em matéria de proteção de
dados e privacidade, que poderá inserir o Brasil no grupo de países que
contam com um nível legislativo considerável de proteção de dados
pessoais – o que não apenas garante proteção aos cidadãos, mas pode
mesmo fomentar ainda mais negócios, parcerias, acordos.
A proteção de
dados pessoais e privacidade da pessoa no Brasil é ainda fragmentada,
mas vai ganhando substância com alterações legislativas substanciais,
além de ganhar mais espaço no espectro de atenção e participação da
sociedade. Regras esparsas continuam sendo editadas, aplacando, de certa
forma (e apenas pontualmente), a atual timidez legislativa em matéria
de proteção de dados. Não se sabe qual será o destino do Anteprojeto de
Lei recentemente apresentado, ou dos projetos relacionados atualmente em
tramitação (não só no Senado, mas na Câmara). Uma coisa, porém, é
certa: o país precisa urgentemente de uma lei geral de proteção de dados
pessoais. Como há pouco tempo afirmou o Senador Aloysio Nunes, relator
de dois projetos de lei no Senado relativos ao tema (PLS 181/2014 e 330/2013), "já passa da hora de o Brasil ter uma lei sobre guarda de dados pessoais".
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