Processo e Procedimento, por Jorge Amaury Maia Nunes e Guilherme Pupe da Nóbrega - Os negócios processuais no CPC/15


De há muito vem sendo gradativamente detrimentada a noção do processo como fim em si mesmo. A evolução da ideia de um conjunto de relações jurídicas linear, angular e triangular de que decorrem direitos e deveres recíprocos para seus sujeitos passou a privilegiar o processo, mais, como veículo de realização do direito material; meio para um fim, que é a prestação, efetiva, da jurisdição, inserido nessa efetividade o enfrentamento do mérito para real solução do conflito e reafirmação/restauração da segurança jurídica.
A forma pela qual se desenvolve esse conjunto de relações jurídicas é o rito, ou procedimento. Um marchar cadenciado para frente. Em dizeres Liebmanianos, uma série coordenada de atos tendentes à prática de um ato final, que é a sentença.
Verdade, porém, que cada pretensão é uma pretensão e que especificidades há que terão o condão de repercutir na ordem dos atos processuais que formem o procedimento. Caso a caso, certas peculiaridades influenciarão o melhor caminho a tomar para adequada prestação da jurisdição. Tanto é assim que há os chamados procedimentos especiais a destoarem do procedimento comum, geral.
A atual quadra vivida pelo Processo Civil brasileiro, nada obstante e como já adiantado, voltou-se com mais vigor para uma busca por maior efetividade. Como reflexo disso, surgem (i) a crença na insuficiênciada dicotomia entre procedimentos especiais e procedimento comum a encerrar as vias pelas quais tal ou qual processo haveria de percorrer; e (ii) a busca por seprivilegiar uma democratização do processo por meio de uma maior abertura à participação das partes, com evidente atenuação do sistema inquisitivo. A soma dessas duas coisas exerceu particular influência sobre o Código de Processo Civil de 2015, admitindo-se a uma maior flexibilização do procedimento por iniciativa dos sujeitos do processo.
Ilustram o asserto os artigos 168, que trata da possibilidade de as partes escolherem de comum acordo conciliador ou mediador, e 357, §§ 2º e 3º, que abre à participação das partes o saneamento do processo, incluída a delimitação das questões de fato, sobre as quais se produzirá prova, e de direito, relevantes para a decisão de mérito. O artigo 139, VI, no mesmo norte — e com possível inspiração nas Civil Procedure Rules do direito inglês1 — deu margem a que o magistrado, oficiosamente, flexibilizasse o rito de forma a conferir maior efetividade à jurisdição.
Sem embargo dessas previsões, os dispositivos do CPC/15 que mais têm chamado atenção no que toca à flexibilização procedimental e à participação das partes são os artigos 190 e 191.2
Bem verdade que no Código de 1973 já havia a possibilidade de as partes convencionarem o foro de eleição, a suspensão do processo e, mesmo, a distribuição do ônus da prova. A amplitude trazida pelo CPC de 2015 nos referidos artigos 190 e 191, porém, é algo inédito: é fraqueada às partes a possibilidade de, em comum acordo, dispor sobre “mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”, bem assim estabelecer vinculativo “calendário para a prática dos atos processuais”.
A novidade, que bebe na fonte do direito francês3, entusiasmou muitos doutrinadores,4 mas inspira atenção quanto aos seus limites.
É que o próprio CPC/15 submete os negócios processuais ao crivo judicial sobre a “validade das convenções”, que não devem ser aplicadas “nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.” Surge, então, a necessidade de mais bem definir esses parâmetros a separar negócio processual legítimo de ilegítimo.
Iniciativas já há nesse sentido.
Em seus comentários, Marinoni e Arenhart5 afirmam que, a despeito da previsão contida no artigo 190, não é dado às partes convencionar sobre seus próprios deveres, previstos no artigo 77 do CPC/15. Teresa Wambier et. al., de sua vez, aduzem que escapam à convenção processual as normas atinentes aos poderes do juiz.6
A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), nos enunciados que editou sobre o CPC/15, também rechaça a possibilidade de que os negócios processuais versem sobre os poderes do juiz de forma a limitar seus poderes de instrução e de sanção à litigância de má-fé. Também são reputadas inadmissíveis pela ENFAM convenções que retirem do juiz o controle da legitimidade das partes ou do ingresso de amicus curiae; criem hipóteses de cabimento recursal, de ajuizamento de ação rescisória ou de sustentação oral não previstas em lei; determinem o julgamento do conflito com base em lei alienígena; estabeleçam prioridade de julgamento não prevista em lei; afastem garantias processuais contra o uso de prova ilícita; vulnerem a regra da publicidade do processo; ou pretendam afastar normas sobre competência absoluta, dever de motivação e prazo de sustentação oral.7
O Fórum Permanente de Processualistas Civis também editou diversos enunciados a respeito do tema, deixando de reconhecer como válidas as convenções que afastem deveres inerentes à boa-fé e à cooperação, versem sobre competência absoluta; importem em supressão de instância; impeçam a participação do Ministério Público como fiscal da lei; ou vede a participação do amicus curiae. Por outro lado, os enunciados do FPPC admitem negócios processuais para realização e ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento antecipado do mérito convencional, convenção sobre prova, redução de prazos processuais, entre outras matérias.8
Como se nota, já há um esboço sobre o âmbito de aplicação das normas insertas nos artigos 190 e 191. Há orientações em sua maioria coincidentes, mas em parte contrastantes.
De nossa parte, importa ter bem presente que o artigo 190 fala na possibilidade de as partes se imiscuírem em regras procedimentais. Há ínsito nessa locução algo de relevante: caberia convenção sobre normas processuais?
Já se disse mais acima o que distingue, em nossa visão, processo e procedimento. Regulando as normas processuais direitos e deveres recíprocos para os sujeitos do conjunto de relações jurídicas que forma o processo, revestem-se elas de interesse público, sendo em grande parte inderrogáveis pela vontade das partes.
São alcançados por essa visão os deveres das partes e os poderes do juiz, competência absoluta, imparcialidade do juiz, entre outros.
Quanto aos direitos, por outro lado, seria possível admitir maior liberdade para as partes, titulares que são do objeto de negociação. Isso somente é parcialmente verdade, havendo, sim, restrições.
É que muitos dos direitos oriundos da relação processual possuem assento constitucional, fundamentais e, pois, indisponíveis, limitando o agir das partes, mercê de sua já consagrada eficácia horizontal.
Por isso é que as convenções processuais devem ser examinadas pelo juiz com detida atenção quanto ao núcleo essencial do direito que integre o objeto da negociação. Ferida a essência de um direito fundamental, a convenção não poderá ser admitida.
Com base nessa linha de pensamento, e deduzindo do devido processo legal o duplo grau de jurisdição — algo com o que nem todos podem concordar—, é que reputamos temerário, por exemplo, o “julgamento de instância única”, isto é, a possibilidade de as partes renunciarem a recursos contra a sentença de forma prévia, antes mesmo de conhecido o teor da decisão.9
De igual sorte, como leciona Jorge Amaury Maia Nunes, a ingerência sobre prazos processuais deve observar o princípio da utilidade, não havendo de ser chancelada a redução de prazos recursais para aquém do menor prazo existente, de cinco dias.10
São essas algumas das limitações feitas intuitivamente ao artigo 190, que terá seu real âmbito de aplicação construído aos poucos com a prática judicial pós-entrada em vigor do CPC/15.

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