Processo e Procedimento por Jorge Amaury Maia Nunes e Guilherme Pupe da Nóbrega. Inexistência, nulidade e outras perplexidades
Há algumas coisas que temos como sedimentadas no âmbito doutrinário e que não se chocam com o que está no CPC de 2015.
Outras, certamente, podem assustar. Quando queremos entender a teoria
do direito processual, primeiramente temos de entender a teoria do
direito com amparo em suas categorias mais fundamentais, por exemplo,
lícito e ilícito. Ora, o lícito e o ilícito são, sobretudo, uma ideia
que se tem sobre eles. Não existe uma coisa essencial em um ilícito.
Então a ideia de lícito
ou ilícito vai depender, sempre e sempre, de um dizer da sociedade. Vai
depender de um dizer do detentor do poder político naquela sociedade.
Esse detentor do poder político é que vai, de acordo com a sociedade,
dizer: vamos nos comportar desta maneira. E essa maneira vai ser a forma
lícita de comportamento.
Toda vez que uma conduta
ou apropriação de qualquer natureza, e não necessariamente de natureza
patrimonial, escapulir da forma estipulada pelo detentor do poder
político para dizer que essa apropriação é válida, este escapulir
constituirá um ilícito. Essa é a regra geral das licitudes e ilicitudes.
Essa ilicitude vai
coincidir, em grande medida, com a teoria das validades ou das
invalidades, que é apropriada pelos outros ramos do direito. Pelo
direito penal, que vai apenar essas condutas; pelo direito civil, que
vai dizer se a forma de apropriação de que se lançou mão é válida ou
inválida e, portanto, se sua apropriação pode ser eficaz no mundo da
sociedade; e assim sucessivamente, até chegarmos ao direito processual
civil.
Aqui, também, o detentor
do poder político há de traçar um figurino, que entre nós atende pelo
apelido de Código de Processo Civil.
Este figurino é que vai
dar os moldes, os modelos que podem ser utilizados pela sociedade; em
particular, pela sociedade daqueles que atuam no foro, para provocar a
prestação da atividade jurisdicional do Estado.
Diante disso, aparecem
teorias várias sobre eventual desrespeito ao figurino preconcebido, não
sendo raro falar-se em teorias dicotômicas e tricotômicas de nulidades.
Temos muita preocupação com relação a esses desenhos que se fazem, até
porque não se vê um magistrado dizer assim: “Declaro que aqui acontece
uma nulidade relativa e, portanto, desconstituo o ato”. Ou: “Declaro que
essa nulidade é absoluta e desconstituo o ato”.
Essas manifestações no
âmbito do judiciário, sobre ser a nulidade absoluta ou relativa,
acontecem no máximo quando ele quer afastar uma eventual preclusão para
pronúncia da nulidade, apenas e tão somente isso, mas não é usual
encontrar-se uma manifestação dizendo que tal nulidade é absoluta ou
relativa, por parte do magistrado.
No máximo, as partes que,
quando se defendem, dizem: é absoluta, é relativa, porque perderam o
tempo para a sua arguição. Ou, “essa nulidade é cominada ou não é
cominada”, expressão que era utilizada no CPC de 1973 e que foi afastada
no Código de 2015.
Posto o cenário, vamos tentar apenas ressuscitar a discussão sobre a inexistência de um ato jurídico processual.
Parece certo afirmar que,
entre os antigos, conceito de inexistência do processo coincidia, mais
ou menos, com a chamada nulidade absoluta ou com o ilícito absoluto, e
que, talvez, a ideia sobre inexistência não fizesse nenhuma falta para a
teoria das nulidades. Não havia discrímen entre o nulo
absoluto e o inexistente. As Ordenações Filipinas também não tinham
muita clareza quanto à diferença existente entre o nulo absoluto e a
inexistência, mas preferiam cuidar da inexistência.
Tanto é assim que, numa
passagem das Ordenações Filipinas, Livro III, LXXV, está escrito assim:
“a sentença, que é per direito nenhuma [inexistente], nunca jamais em
tempo algum transita em cousa julgada”. Quer dizer que a sentença jamais
será exigível. As Ordenações, então, trabalhavam com a ideia de
inexistência, mas em detrimento da ideia de nulidade absoluta.
Pode parecer que um
estudo dessa natureza seja obra de mero diletantismo. Deveras, se se
trabalha somente com as consequências do reconhecimento da inexistência
de um ato ou com a pronúncia de sua nulidade, não haverá distinção, mas
quando se pretende verticalizar o exame do tema - até na aplicação
prática - a ideia do inexistente e do nulo começam a gerar conseqüências
diversas. Vamos investigar.
Imagine-se uma sentença
proferida por um cidadão que não é mais juiz. Aposentado
compulsoriamente porque completou setenta anos (ou setenta e cinco!),
esse cidadão, muito zeloso e cumpridor dos seus deveres, um dia após o
septuagésimo aniversario, foi ao gabinete para encerrar sentenças que
estavam praticamente produzidas, faltava um detalhezinho ou outro. Fez
as correções e assinou as peças processuais.
Ocorre que esse cidadão,
com setenta anos e um dia, não tem mais jurisdição. Tecnicamente, ele é
um ex-juiz, um não-juiz, mas assinou a peça processual. Para os fins do
direito, essa sentença vale tanto quanto uma sentença que tenha sido
assinada por um advogado militante. É a mesma coisa, é uma não-sentença.
O ato, entretanto, tem forma, cara e jeito de sentença.
Pois bem, identificado
que a sentença foi proferida por um não-juiz, não é necessário fazer
nada em relação a ela, não é necessária nenhuma providência, porque ela
em si não tem o “pressuposto mínimo de identificabilidade” com um ato
sentencial que exige, para merecer essa qualificação, ser proferido por
alguém dotado de jurisdição.
No processo civil
brasileiro, havia (e ainda há) o exemplo clássico da inexistência dos
atos processuais quando firmados por advogado desdotado de procuração e
que não a apresentara no prazo que lhe fora conferido. Dizia-se que
aqueles atos eram considerados inexistentes, porque assim dispunha o
texto do Código de Processo Civil de 1973. Ocorre que o novo Código não
diz isso, com o que talvez se pudesse alegar que o arrimo da construção
doutrinária, da construção teórica, está afastado. Apesar de afastado,
seria possível insistir: se o ato é praticado e tem até o jeito de
sentença, mas sentença não é, então não é preciso fazer nada para
hostilizar esse ato. E ele em si jamais vai existir.
De outra sorte, um ato
sentencial viciado é válido, sem que isso represente uma contradição.
Deveras, a nulidade é sempre um fenômeno endoprocessual, um fenômeno que
ocorre dentro do processo. Exatamente por isso, uma vez transitada em
julgado a sentença, aquele ato sentencial revestido de algum vício que
costuma ser apelidado de nulidade, vale e pode ser cumprido, se for o
caso de se tratar cumprimento, evidentemente.
É claro, dir-se-ia, “cabe
ação rescisória”. Considere-se, entretanto, que somente cabe ação
rescisória de ato que é, de ato que vale. Tanto que a ação rescisória é,
sobretudo, uma ação de natureza constitutiva-negativa. Então, se o ato
não fosse nada, não seria necessário lançar mão da rescisória. Do ato
que é, mas é nulamente, cabe o uso da rescisória para sua
desconstituição. Assim, até do ponto de vista prático, é possível
sustentar que há atos que são inexistentes (a rigor, não-atos) e atos
que são viciados e que existem válida ou invalidamente.
Isso parece tão mais
claro quando se percebe o trânsito em julgado e nota o seguinte: se
existe uma nulidade processual no ato chamado sentença, a apelação,
aviada no tempo próprio, pode versar sobre os chamados errores in procedendo, ao lado dos erros de julgamento, errores in iudicando.
Então, é possível
encontrar um vício processual e arguir a seu respeito para que o
tribunal, em exame do recurso de apelação, casse aquela decisão,
desconstitua aquela decisão e determine a volta do processo ao primeiro
grau de jurisdição, se for o caso, para que o magistrado profira outra
sentença, escoimada do vício que foi apontado, evidentemente se o vício
permitir sanação.
Uma coisa deve ficar
clara: só existe, segundo pensamos, uma teoria das nulidades universal
na medida em que todos os ordenamentos sejam os mesmos. Como isso não
acontece, não se pode falar em uma teoria universal das nulidades. As
nossas teorias de nulidade têm a ver com aquelas coisas que julgamos ser
logicamente adequadas, e com aquelas coisas que aparecem em determinado
ordenamento positivo, em determinado código.
Em outras palavras, uma
teoria das nulidades deve estar baseada no código de processo civil
respectivo, essa a regra; mas, humanamente, devemos ser capazes de
entender que há categorias lógicas que podem, primeiro, alimentar o
texto legal chamado código de processo e, depois, podem hostilizar esse
mesmo código.
Toda a ideia de nulidade
no CPC visa a retirar a eficácia do ato cujo vício tenha sido
judicialmente reconhecido. No que concerne à chamada eficácia normativa,
parece que os resultados são alcançáveis, mas a eficácia social, o ato
nulo pode ter e normalmente tem. Isso é inevitável, inescapável, até
porque CHIOVENDA sempre suscitou, com muita pertinência, que o processo
por si só gera um dano para o autor que tem razão. Pelo só decurso do
tempo, o autor que tem razão perde alguma coisa.
Um ato viciado, praticado
em determinado processo, pode ter a nulidade pronunciada no futuro e
até com eficácia retro-operante; mas não interessa, ele já gerou um
dano, o desenvolvimento da máquina processual contra o autor. Então,
eficácia social o ato viciado pode ter. O que se afasta com a decretação
da nulidade é a eficácia normativa prevista para aquele ato em
específico.
Nulidade declarada ou decretada?
Havia certo consenso de que nulidade era declarada e não decretada.
Temos afirmado que a nulidade processual é apenas o reconhecimento da desconformidade do ato praticado com a sua previsão in abstracto.
O código faz uma previsão, e um sujeito do processo, na hora de
praticar o ato, desborda da previsão e constrói um ato seu, um ato
próprio, que não é aquele que está no figurino legal.
Essa desconformidade
existe desde o momento que o ato é praticado. Então a nulidade seria
apenas a declaração dessa desconformidade. Apesar de não haver muita
discussão a esse respeito, a generalidade da doutrina, ao se manifestar,
fala em anular o ato. Ora, toda vez que se disser “anular o ato”, não
se está praticando ato verdadeiramente declaratório, e sim ato
desconstitutivo ou, se quiserem, constitutivo-negativo.
Isso conduz a questões
bastante interessantes. Primus: há diferença entre desconstituir o ato e
declarar que o ato é nulo, se for levada a ferro e fogo a questão dos
efeitos? Sim, poderia haver, mas é bom lembrar que os conceitos
jurídicos não possuem nenhuma essencialidade. Então é plenamente
possível construir uma teoria como parece pretender o Código de 2015,
desde que se afirme: uma decretação de nulidade de ato (uma
desconstituição de ato) pode ter efeitos retro-operantes.
É certo que atos com
natureza constitutiva têm (admitindo-se uma categoria lógica para esse
fim) a tendência natural para operar efeitos prospectivos, daqui para
frente, jamais retrospectivos.
Assim é porque houve uma
convenção coletiva, uma convenção comunitária da nossa linguagem que
levou a esse resultado; mas nada impede que se pense diferente e
construa diferente, exatamente porque a linguagem do direito não possui
nenhuma essencialidade.
Um exemplo pode
demonstrar isso de maneira mais clara. Quando o Ministro CÉSAR PELUSO
apresentou o projeto de alteração da Constituição para fazer que a coisa
julgada se operasse assim que esgotada a instância ordinária, houve uma
grita da comunidade acadêmica, porque isso ofenderia o “princípio da
coisa julgada”.
Ora, de que princípio
superior e divino decorre a afirmação de que a coisa julgada só pode ser
constituída após o julgamento em quatro instâncias, duas ordinárias e
duas de superposição? Onde está escrito isso? Não está escrito em lugar
nenhum do mundo!
Ao contrário, em vários
ordenamentos da Europa continental, a coisa julgada se opera justamente
no segundo grau. Acabou o segundo grau, transitou em julgado. Não por
outro motivo, os recursos extraordinários, na França, por exemplo — e na
Itália —, são recursos que hostilizam o quê? Hostilizam a coisa
julgada. Só há recurso extraordinário da decisão que transitou em
julgado.
Secundus: diz o art. 276
do CPC de 2015: “quando a lei prescrever determinada forma sob pena de
nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe
deu causa.” Ora, como não há essencialidade, poder-se-ia pensar assim:
apesar de ser decretação, deve possuir efeitos retro-operantes, se não
vai haver um ato que vale na metade no processo e não vale na outra
metade.
CALMON DE PASSOS, no
livro que escreveu sobre nulidades, já na introdução faz advertências
belíssimas quanto ao fato de que a única coisa que nos legitima como
operadores do direito, já que a nossa língua é imperfeita, é a precisão
terminológica. A nossa precisão terminológica, o nosso não-render ao
arbítrio, é que vão fazer de nós, operadores do direito, dignos de
legitimação social.
Assim, se o legislador
pretendeu, ao tratar o ato judicial de reconhecimento do vício
processual, atribuir-lhe eficácia constitutiva-negativa, então deveria
encontrar uma fórmula de deixar claro que abandonara a linguagem
comunitariamente aceita, que estabeleceu uma espécie de correspondência
biunívoca: a nulidade se declara; a anulação se decreta.
Assim não se houve, entretanto, o novo CPC.
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