Que estrangeiros podem adquirir imóveis rurais no Brasil? (parte 2), por Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes
Na primeira parte
desta coluna, viu-se que o redirecionamento do fluxo de investimentos
estrangeiros diretos após a crise mundial de 2008 e o fenômeno da land grabbing
fizeram surgir a necessidade de uma readequação de políticas
governamentais e de normas jurídicas. No caso do Brasil, que aumentou
muito a sua participação nesse novo cenário econômico mundial e se
tornou um dos principais centros de investimentos estrangeiros no que
diz respeito à especulação imobiliária, a revisão da legislação nacional
(e sua interpretação) acerca da questão da aquisição de imóveis rurais
por estrangeiros se impôs.
Por diversos motivos (e por escolha
política), nos últimos anos houve uma tendência de se restringir a
participação estrangeira na aquisição de imóveis rurais (portanto,
ligados à agricultura) por meio de mecanismos jurídicos. E, justamente, a
maior controvérsia diz respeito à determinação de quem sofreria as
restrições da legislação constitucional e infraconstitucional para a
aquisição de imóveis rurais, ou seja, de quem é o “estrangeiro” quando
pessoa jurídica.
O cerne dessa questão está em corretamente interpretar o disposto no artigo 1º (caput
e parágrafo 1º) da Lei 5.709/71 (que regula, criando limites e
restrições, a aquisição de imóvel rural por estrangeiro), segundo o qual
só podem adquirir imóveis rurais no Brasil as pessoas físicas
estrangeiras que residam no país e as pessoas jurídicas estrangeiras
autorizadas a funcionar no Brasil. Desse modo, quando pessoa física, as
restrições só atingem os estrangeiros residentes no país; a contrario sensu,
no caso de estrangeiro não residente, não seria possível a aquisição de
imóvel rural. O parágrafo 1º desse texto legal, contudo, estende as
restrições legais à pessoa jurídica brasileira “da qual participem, a
qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a
maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior”.
Assim,
resta fora de dúvida que pessoas jurídicas brasileiras, nas quais
brasileiros detêm a maioria do capital ou nas quais estrangeiros detêm a
maioria do capital, mas residem ou têm sede no Brasil, não estão
sujeitas às restrições indicadas na Lei 5.709/71 (cujo fundamento de
validade é o artigo 190, CF/88). De outro bordo, é igualmente pacífico
que pessoas jurídicas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil
estão sujeitas a tais restrições e que as pessoas jurídicas estrangeiras
não autorizadas a funcionar no Brasil não podem adquirir imóveis
rurais. A grande controvérsia diz respeito às pessoas jurídicas
brasileiras nas quais estrangeiros detêm a maioria do capital e não
residem ou têm sede no Brasil.
A CF/88, de forma inovadora,
constitucionalizou o conceito de empresa brasileira, que seria a
“constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e
administração no país” (artigo 171, I). Assim, evidente que não teria
sido recepcionada pela nova ordem constitucional o disposto no artigo
1º, parágrafo 1º, da Lei 5.709/71. A consequência prática desse
entendimento foi o de que as pessoas jurídicas brasileiras, ainda que
tivessem controle acionário de estrangeiros residentes no exterior, não
poderiam sofrer as limitações dessa lei (esse, aliás, foi o entendimento
da AGU, em seu parecer de 7/6/1994 – Parecer AGU GQ-22/1994).
Contudo,
como se sabe, o artigo 171 da CF/88 foi revogado pela EC 6/1995,
deixando novamente à legislação infraconstitucional a tarefa de
conceituar as pessoas jurídicas brasileira e estrangeira. Em um primeiro
momento, considerou-se impossível a repristinação do artigo 1º,
parágrafo 1º, da Lei 5.709/71 (e a consequente volta das restrições às
pessoas jurídicas brasileiras “da qual participem, a qualquer título,
pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu
capital social e residam ou tenham sede no exterior”).
Mas a
mudança da conjuntura econômica mundial na segunda metade da década de
2000 forçou o governo brasileiro a rever sua posição anterior. Após
diversas oscilações, ele fixou o entendimento (por meio do Parecer
CGU/AGU 01, aprovado em agosto de 2010) de que as pessoas jurídicas
brasileiras “da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras
físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e
residam ou tenham sede no exterior” também estão sujeitas às restrições
da Lei 5.709/71, que foi recepcionada, em seu artigo 1º, pela ordem
constitucional de 1988. Com isso, acabaram por ficar equiparadas essas
pessoas jurídicas brasileiras com as estrangeiras autorizadas a
funcionar no país (ou seja, ambas ficaram sujeitas aos limites,
controles e restrições da Lei 5.709/71).
Em apertada síntese, no momento atual:
a)
pessoas físicas estrangeiras não residentes no país e pessoas jurídicas
estrangeiras não autorizadas a funcionar no país não podem adquirir
imóveis rurais no Brasil;
b) pessoas
físicas estrangeiras residentes no país, pessoas jurídicas estrangeiras
autorizadas a funcionar no país e pessoas jurídicas brasileiras da qual
participem estrangeiros residentes (ou com sede) no exterior e que
detenham a maioria do seu capital ficam sujeitas aos limites, controles e
restrições da Lei 5.709/71;
c) pessoas
físicas brasileiras, pessoas jurídicas brasileiras da qual brasileiros
detenham a maioria ou totalidade do capital social e pessoas jurídicas
brasileiras da qual participem estrangeiros residentes (ou com sede) no
país não estão sujeitas aos limites, controles e restrições da Lei
5.709/71.
Faltaria somente definir as situações anteriores ao
referido parecer (mais especificamente, discutiu-se, nos últimos anos,
os casos que ficaram pendentes entre 7/6/1994 e 22/8/2010, ou seja,
entre a entrada em vigor do Parecer AGU GQ-22/1994 e a publicação do
Parecer CGU/AGU 01/2010). Tal questão foi solucionada pela Portaria
Interministerial AGU/MDA 4/2014, que entendeu como “situação jurídica
aperfeiçoada” algumas hipóteses, dentre as quais a aquisição objeto de
escritura pública lavrada no período mencionado, ainda que não
registrada.
Seja como for, autorizada a aquisição do imóvel rural
por estrangeiro, deverá ser feita anotação em cadastro especial, em
livro auxiliar, do Cartório de Registro de Imóveis (além do habitual
registro na matrícula do imóvel) — artigo 10, da Lei
5.709/71. Aliás, a esses cartórios impõem-se o dever de,
trimestralmente, elaborar e enviar relação de todas as aquisições de
áreas rurais por estrangeiros à Corregedoria da Justiça dos estados a
que estiverem subordinados e ao Incra — artigo 11, da
Lei 5.709/71, e artigo 16, do Decreto 74.965/74. A preocupação com o
controle da participação estrangeira na agricultura é evidente.
O
impacto econômico do parecer CGU/AGU 01/2010 é grande, tendo os
economistas estimado um prejuízo inicial de US$ 15 bilhões ao
agronegócio, por inibir investimentos estrangeiros. Como a matéria
continua polêmica, e só para citar um exemplo, muito recentemente (em
8/9/2015) foi apresentado projeto de lei (pelo senador Waldemir Moka -
PMDB) que altera a Lei 5.709/71 e estima, na sua “justificação”, em R$
37,32 bilhões o impacto negativo no setor florestal do parecer (PLS
590/2015).
Assim, resta claro que a nova posição oficial do
governo brasileiro não está adequada à forma de ser e espírito dos Brics
(principal bloco econômico do qual o Brasil é membro), que, desde a sua
criação, visa criar em cada um de seus membros (Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul) espaços mais propícios ao investimento
estrangeiro (é claro, contudo, que há outras preocupações que devem ser
consideradas, inclusive de um neocolonialismo e potencial ofensa à
soberania do país).
De outro lado, é interessante observar que,
embora se tenha conseguido aumentar a participação de seus membros no
produto mundial, o fluxo de investimentos estrangeiros diretos
realizados pelos Brics entre si não aumentou significativamente
(mantendo-se em patamares semelhantes aos do início dos anos 1990). Isso
se nota especialmente com relação ao fenômeno da land grabbing,
uma vez que os países investidores mais relevantes são externos aos
Brics (desses, os maiores investidores são, em ordem decrescente, a
Índia, a África do Sul e a China), apesar de seus membros terem recebido
grandes investimentos estrangeiros diretos (em 2010, só para mencionar
um exemplo, esses investimentos chegaram a US$ 302,1 bilhões de
dólares).
Em suma, se do ponto de vista jurídico a solução de
ampliar a restrição à aquisição imobiliária por “estrangeiros” parece
tecnicamente adequada, talvez do ponto de vista econômico a melhor
solução para a questão fosse não restringir esses investimentos
estrangeiros e estimular a maior participação dos membros dos Brics
nessas aquisições imobiliárias (evitando-se sempre uma excessiva
concentração fundiária, mesmo que por brasileiros)[1].
[1] Para referências mais exatas e indicação bibliográfica, cf. o nosso artigo: Bernardo B. Queiroz de Moraes, Registro da propriedade imobiliária no direito brasileiro – aquisição de terras por estrangeiros, in T. Alexeeva (org.), Земля как Объект Права в России и Бразилии, São Petersburgo, HSE, 2014, pp. 82-95.
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