Que estrangeiros podem adquirir imóveis rurais no Brasil? (parte 1), por Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes
A convite de dois colegas da USP, os professores Ignácio Poveda e
Otávio Luiz Rodrigues Junior (a quem agradeço sinceramente a
oportunidade), inicio hoje minha participação na coluna “Direito Civil
Atual”, produzida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.
Acompanho as inúmeras (e regulares) publicações desta coluna desde seu
princípio, em fevereiro deste ano. Trata-se, sem sombra de dúvida, ao
lado da “RDCC – Revista de Direito Civil Contemporâneo” (também editada
por essa Rede de Pesquisa), de um dos mais importantes meios de
divulgação no Brasil de uma forma-de-pensar crítica do Direito Civil.
Acolhendo sugestão do professor Otávio Luiz Rodrigues Junior, escolhi
como meu tema inaugural uma questão não muito explorada pela doutrina,
mas cujos reflexos econômicos no atual momento do Brasil têm provocado
acirradas discussões na prática: a aquisição de imóveis rurais por
estrangeiros.
Há muito que estrangeiros fazem investimentos no
Brasil, adquirindo imóveis. Tal fato não é recente. Na verdade, em mais
de um momento histórico foi mesmo desejável, sendo incentivado, sempre
por questões econômicas, pelo Governo. Veja-se, por exemplo, o caso da
grande vinda de imigrantes no final do século XIX a Estados como São
Paulo (mormente o caso dos imigrantes italianos). Em outros momentos, o
fluxo de imigrantes diminuiu, mas acentuou-se uma remodelação interna da
população (migração). Ainda nestes momentos, a aquisição de imóveis por
estrangeiros não era de forma ampla restringida, mas limitações sempre
havia (diferentemente do que ocorre hoje na União Europeia, tendo em
vista que a Diretiva 88/361/CEE veda que sejam feitas restrições a
movimentos de capitais, dentre os quais os investimentos imobiliários
efetuados por “não-residentes” – artigo 1g e Anexo I, item II.A.).
Atualmente,
o problema ganhou contornos novos. De fato, trata-se de uma das
questões geopolíticas mais interessantes da atualidade: a aquisição de
propriedade de bens imóveis por estrangeiros e o fenômeno da
concentração fundiária (land grabbing).
Desde 2008, em
função da grave crise econômica que atingiu grande parte dos países do
mundo, indivíduos, empresas e governos estrangeiros sentiram a
necessidade de ampliar significativamente o seu investimento na
aquisição de grandes extensões de terras (em especial no Hemisfério Sul)
para a produção agrícola, como uma forma de minimizar o impacto de
futuras novas crises no preço de alimentos e combustíveis (neste último
aspecto, pela produção de biocombustíveis). Em suma, dentre outros
aspectos, quer-se evitar um novo episódio de “agroinflação”; pretende-se
diminuir a volatilidade especulativa nos preços dos produtos
agropecuários.
Dentre os países que mais sofreram o impacto dessas
medidas de proteção está o Brasil. O nosso país é um dos principais
destinos de investimentos estrangeiros diretos (IED), sendo “o mais
internacionalizado dentre os membros dos Brics em termos de estoque de
IED em relação ao seu PIB (18%), seguido por Rússia (13%), Índia (10%) e
China (9%)”[1].
Ademais, especificamente quanto ao mercado imobiliário, o Brasil
apresenta vantagens evidentes com relação aos demais membros do Brics no
que diz respeito a investimentos.
Surgiu daí a preocupação do
ogverno brasileiro em, de alguma forma, controlar o ritmo dessas
aquisições pelos estrangeiros. Não que se quisesse impedir a entrada de
capital estrangeiro por esse modo ou que não existisse, já há muito
tempo, uma clara preocupação e regulamentação da matéria (aquisição de
terras por estrangeiros), mas houve um aumento de interesse sobre ela
nos últimos anos (que estimulou amplos debates).
Oficialmente, o
governo brasileiro, além de destacar o caráter estratégico desse
controle, sustentou que a ausência deste implicaria: “a) expansão da
fronteira agrícola com o avanço do cultivo em áreas de proteção
ambiental e em unidades de conservação; b) valorização desarrazoada do
preço da terra e incidência da especulação imobiliária gerando aumento
do custo do processo desapropriação voltada para a reforma agrária, bem
como a redução do estoque de terras disponíveis para esse fim; c)
crescimento da venda ilegal de terras públicas; d) utilização de
recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da
prostituição na aquisição dessas terras; e) aumento da grilagem de
terras; f) proliferação de "laranjas" na aquisição dessas terras; g)
incremento dos números referentes à biopirataria na região amazônica; h)
ampliação, sem a devida regulação, da produção de etanol e biodiesel;
i) aquisição de terras em faixa de fronteira pondo em risco a segurança
nacional” (item 7 do Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ, aprovado pelo
Parecer AGU LA-01/2010).
Se a necessidade de restringir o ritmo
dessas aquisições é clara, não se pode dizer o mesmo dos limites dessas
restrições. Primeiramente, há a questão de se determinar quais imóveis
podem ou não ser adquiridos por estrangeiros (e qual a limitação
quantitativa dessas aquisições).
A Constituição Federal, em seu
art. 190, indica somente um critério objetivo: a legislação deve regular
e limitar a aquisição de propriedade rural (não da urbana) por pessoa
física ou jurídica estrangeira. “Propriedade rural”, nos termos da
legislação infraconstitucional, é “o prédio rústico, de área contínua
qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração
extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos
públicos de valorização, quer através de iniciativa privada” (art. 4.º,
I, Lei 4.504/64 – Estatuto da Terra).
A matéria foi tratada pela
Lei 5.709/71 (regulamentada pelo Dec. 74.965/74), nos seguintes termos
(pressupondo a adoção da noção de “módulo de exploração indefinida” –
MEI, que varia conforme o município):
I - caso o imóvel tenha até 3
MEI e o adquirente seja pessoa física, não é necessária qualquer
formalidade especial (art. 7.º, §1.º, Dec. 74.965/74), salvo no caso de
aquisição de mais de um imóvel (§3.º).
II - caso o imóvel tenha entre 3 e 20 MEI e o adquirente seja pessoa física, deverá haver autorização do Incra (§2.º).
III-
caso o imóvel tenha entre 20 e 50 MEI e o adquirente seja pessoa
física, deverá haver autorização do Incra e aprovação de projeto de
exploração pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (§4.º).
IV-
caso o imóvel tenha mais de 50 MEI e o adquirente seja pessoa física, a
aquisição somente seria possível se esse limite fosse aumentado pelo
presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional (§5.º)
ou se houvesse autorização do Congresso Nacional (art. 23, §2.º, da Lei
8.629/93).
V- caso o imóvel tenha até 100 MEI e o adquirente seja
pessoa jurídica, o imóvel rural deve ser destinado à implantação de
projetos agrícolas, pecuários, industriais ou de colonização, vinculados
aos seus objetivos estatutários (art. 5.º, Lei 5.709/71) e deve haver
aprovação de projeto de exploração pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (art. 14, §1.º, Incra IN 76/2013).
VI- caso o imóvel tenha
mais de 100 MEI e o adquirente seja pessoa jurídica, deve haver
autorização do Congresso Nacional (art. 23, §2.º, da Lei 8.629/93).
A
esses limites objetivos, soma-se a necessidade de prévio assentimento
do Conselho de Segurança Nacional acerca de quaisquer “transações com
imóvel rural, que impliquem a obtenção, por estrangeiro, do domínio, da
posse ou de qualquer direito real sobre o imóvel” na faixa de fronteira
(art. 2.º, V, da Lei 6.634/79).
Como se vê, a regulamentação da
matéria é confusa e implica a observância de inúmeras formalidades para a
aquisição da propriedade do imóvel. Ainda assim, quanto a essas
formalidades, poucas são as controvérsias na prática. Na verdade, o
maior problema é a definição de quem sofreria as restrições da
legislação, ou seja, de quem é, para o fim dos diplomas legais citados, o
“estrangeiro” quando pessoa jurídica. Este tema será objeto da parte
seguinte (parte 2) desta coluna[2].
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