Da visibilidade à transformação social, por Ângelo Emílio da Silva Pessoa (Departamento de História da UFPB)
Talvez
a melhor função de um trabalhador intelectual que se pensa solidário a algum
movimento social – e a palavra social aqui não está colocada gratuita nem casualmente
– seja a de estabelecer algum apoio crítico (e não incondicional), que aponte
eventuais problemas e sugira alguns elementos para a reflexão, que é uma condição
necessária para uma ação efetivamente transformadora dessa mesma sociedade.
Poderá se questionar com alguma boa dose de razão: por que alguém que não sofre
exatamente na pele esses problemas, tem direito
de dar algum “pitaco” sobre aquilo que não é da sua conta? Exatamente por não
sofrê-los diretamente na pele, talvez isso possibilite obter uma
sensibilidade/percepção particular para essas questões e apontar dimensões não
percebidas numa outra condição, mais ou menos como: quem está de fora, vê
diferente. Enfim, todo o apoio crítico merece ser igualmente criticado e o
próprio exercício da contradição pode nos permitir afiar os argumentos
intelectuais, aporte mais que necessário ao bom encaminhamento das boas lutas.
Parto
de uma constatação que pode/deve ser errônea – e que inviabilizará todo o
restante –, mas que pode ter algum grau de plausibilidade e contribua para
entreabrir toda uma zona de reflexão/ação. Indo direto ao ponto, penso que as
políticas de ações afirmativas, principalmente de bem sucedidos movimentos
negros e homossexuais (abarcando uma grande diversidade de condições),
realizadas num crescendo desde a década de 1990, têm efetivamente atingido um
de seus objetivos mais caros, que é a questão da visibilidade de uma série de discriminações/repressões que estariam
invisíveis na nossa sociedade, ou seja, o racismo e a homofobia seriam
componentes estruturais e ocultos de nossa teia social e seria necessário
trazer esses discursos e práticas à luz do dia para ser possível combatê-los
efetivamente (não deixando de esquecer que essa paleta de horrores reúne ainda
outras tintas tão fortes quanto o machismo e outras práticas que chamaremos de
“nefandas” (que não devem ser ditas), bem ao gosto do linguajar do Santo Ofício
da Inquisição). Não resta dúvida que o noticiário nos vomita dia a dia uma
série generalizada de situações que deixam às claras os paroxismos de racismo e
homofobia que sacodem nossa sociedade; se se desejava tornar visíveis esses
problemas, parece que o objetivo foi em larga medida atingido e essas
perversões ocultas vieram se explicitar na cena pública.
Essencialmente,
atacaram-se as bases de nossas ideologias integrativas/agregadoras, que
pretendiam interpretar nossa ordem social como dotada de uma grande
plasticidade para absorver suas próprias contradições e resolvê-las de modo
singular num grande oceano de malemolência e afetividade (e doses maciças de
sadomasoquismo Brasil varonil afora). Talvez, sua expressão mais bem acabada e
intelectualmente eficaz esteja num autor muito condenado e, lamentavelmente,
pouco lido (e combatido equivocadamente de maneira simplista e insuficiente),
Gilberto Freyre. Freyre tem como diapasão fundamental não uma pueril ideologia
da democracia racial – que pode ser derrubada com um piparote fraseológico ou
com um arroubo de slogan – mas uma
sofisticadíssima percepção daquilo que denomina equilíbrio de antagonismos, que seria uma engenhosa capacidade
social/cultural brasileira de sublimar os intensos antagonismos que sacodem
nossa sociedade, de criar uma zona de confraternização, indistinção, penumbra e
quase total invisibilidade que elide esses antagonismos para uma dimensão
oculta, que permite que os mesmos se resolvam sem desagregar o tecido dessa
singular sociabilidade. O seu corolário quase necessário seria que, dada essa
possibilidade de equilibrar esses antagonismos nas “alcovas sociais”, cada um
“saberia o seu lugar”, por introjeção de regras implícitas, e seria possível manter um discreto status quo, sem ser necessário tornar
muito explícitas e formalizadas as regras de dominação/discriminação/repressão.
Tudo se resolveria numa democracia racial, onde a violência seria apanágio de
indivíduos torpes, não de toda uma sociedade encoberta pelo manto da
afetividade que nos garantia que o brasileiro era bonzinho e a empregada era
“quase da família”. Seria assim como se resolvêssemos
na “casa” aquilo que não deveria ir à “rua”. No bipolo
homem/branco/heterossexual, estaria a mulher/negra/homossexual e cada qual saberia
de antemão qual o seu papel. Mostrar que existia realmente racismo e homofobia,
por baixo dessa capa de docilidade, seria uma missão essencial para enfrentar e
superar esse “atavismo nacional”.
Se
os movimentos de ações afirmativas permitem elevar indivíduos de segmentos
sociais anteriormente excluídos à proa da sociedade (mesmo que ainda amplamente
minoritários), têm como subproduto trazer à tona aquilo que denunciam: o
caráter racista e homofóbico dessa sociedade, antes introjetado e agora
explicitado. Nada a estranhar, então, com as explícitas e horrendas
manifestações daqueles que subjetivaram o ethos do mando e, agora, se sentem
desafiados e desautorizados em casa e na rua pela intensa visibilidade do que
estava encoberto e vem se mostrar à luz do sol. Nada a estranhar – e tudo a
repudiar – com o comportamento de gente que faz questão de estacionar seu carro
possante em duas vagas como desafio explícito ao espaço público. Outro
intelectual de porte, Sérgio Buarque de Holanda, já tinha nos alertado sobre
esse desapreço estrutural ao espaço público, o que podemos traduzir nos dias
que correm, pelo desrespeito dos direitos do
outro. Casos escabrosos se repetem e chegam às manchetes ou redes sociais, envolvendo
desde o incômodo raivoso de sinhôs e sinhás com empregadas e pedreiros – não
raro, afrodescendentes – viajando de avião, ou
ainda de bons pais, mães e filhos de família revoltados com homoafetividades
explicitadas, até o mais recente e absurdo caso da sinhá fortalezense que atacou verbalmente e por escrito dois
trabalhadores que rebocaram seu carro estacionado irregularmente, dizendo a um
deles que, graças à maldita Princesa Isabel
(seria uma sublimada Isabel Rousseff?), ele não estava no tronco, que era o
lugar que o mesmo merecia, não sem antes proferir toda a espécie de sortilégios
de pragas e maldições que fizeram o inquisitorial século XVII falar pela sua
boca.
Não houvesse isso, essa
verdadeira explosão de nossos esgotos sociais/culturais, Freyre estaria
redondamente certo. A luta pela afirmação não será ganha numa parada cívica na
qual os desafetos de ontem baterão palmas para os novos heróis; desafiados e
inseguros, os que se sentiam até ontem donos da casa (e da rua), partirão para
tentar afirmar seus lugares, defender seus privilégios, provavelmente se
tornarão mais raivosos e agressivos, mas isso os movimentos não devem temer ou
estranhar. Devem enfrentar sem partirem para a “guetização”; devem falar para
toda a sociedade, em vez de se encastelarem em pequenos grupos de solidariedade;
devem estabelecer laços maiores de solidariedade e articulação, enfrentando
efetivamente a sociedade de sinhôs e sinhás que gerou no mesmo ventre racismo,
homofobia e todo o cortejo de horrores que não começam nem acabam aí. Se
quiserem se tornar sinhôs e sinhás negros e/ou homossexuais numa “nova ordem”,
a casa grande e o patriarcalismo terão saído vencedores, apenas incorporando
mais alguns personagens privilegiados, que olharão sobranceiramente das
varandas para aqueles que labutam duramente ao sol.
Ou seja, se o negócio
era dar visibilidade ao que era antes invisível, agora a luta muda de patamar:
é necessário encontrar uma forma efetiva (e social) de combater essas
verdadeiras patogenias sociais, bem além da mera afirmação (necessária, mas não
suficiente) de indivíduos afrodescendentes e homossexuais a lugares de proa de
nossa sociedade. Trata-se de mudar as regras do jogo e não apenas de encontrar
um nicho no jogo alheio. Bem além de travar ruidosas batalhas lingüísticas (dos
que vêem ingenuamente as linguagens como constituintes e não como constitutivas
das relações sociais), é necessária a coragem de mudar lugares sociais, ou
mais, de mudar efetivamente a sociedade, e, aqui, sociedade não é mais um jogo
de linguagem, é aquilo que paga as contas dos soldados da linguagem e que tem
uma concretude bem real e, muitas vezes, dolorosa.
Numa das críticas mais
pertinentes que já vi a Gilberto Freyre, Luís Felipe de Alencastro (A Pré-Revolução de 30. IN: Novos Estudos
CEBRAP, nº 18, Set, 1987, p. 17-21) apontou cirurgicamente que o gênio de
Apipucos só pôde criar sua engenhosa e sofisticada formulação elidindo do
engenho/berço da nação os fluxos de comércio internacional, que tinham o
tráfico de escravos numa ponta e a demanda de produtos agrícolas na outra. Ou
seja, em bom e velho idioma sonante: só escondendo sorrateiramente as relações
capitalistas, pôde Freyre mergulhar tudo num saboroso
“caldeirão de cultura”. O historiador ainda apontou argutamente, ao final do
referido artigo, que o livro ainda teria belos dias diante de si, como obra
seminal da ideologia patriarcal. Todo o cuidado é pouco para que o
patriarcalismo apenas não amplie sua plasticidade, em vez de ser efetivamente
liquidado, como herança quase perene do nosso belo e saudoso passado.
Parece que, agora, mais
que a visibilidade, é necessário apostar na transformação social efetiva, no custoso enfrentamento e desmonte
de todo esse pesado ethos patriarcal
que domina séculos de nossa sociedade e que resistirá tenazmente a qualquer
mudança, ou cooptará os mais talentosos para o seu regaço (que terão sido como
aqueles arrivistas que dizem ser contra o capitalismo – ou algo mais diáfano
como “o sistema” – apenas por que não são burgueses, aderindo rapidamente tão
logo encontrem alguma prebenda dando sopa). É necessária uma segunda onda de
visibilidade, a visibilidade da
necessidade de transformação social, pois a manutenção das redes de poder (às
vezes obliteradas em engenhosos jogos de linguagens),
que chamamos capitalismo e sociedades de classes,
é que garantem a perpetuação de espécies diferentes de
dominação/sujeição/discriminação/exploração, que aparecem modernamente em
outras práticas igualmente nefandas como a agressão física e moral a mulheres,
o horror patológico a pobres, a superexploração dos trabalhadores, a periculosa
agressão/destruição sócioambiental, enfim, essa dantesca paleta de cores fortes
que tornam hediondos os cenários de nossas vidas coletivas. E não basta
mudar/acrescentar os personagens da trama, é preciso destruir mesmo essa trama
e contar uma outra história. Não criar um mundo de novos senhores, mas um mundo
sem senhores.
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