A série de colunas sobre o polêmico tema dos “alimentos
compensatórios” chega ao fim. Após o exame da questão na jurisprudência
do STJ, na doutrina brasileira e no Direito espanhol, apresenta-se ao
leitor a experiência de outros ordenamentos jurídicos, como o francês.
O
Código Napoleão, em seu art. 270, com a redação dada pela Lei 2004-439,
de 26 de maio de 2004, afirma que o divórcio põe termo ao dever de
assistência entre os cônjuges — primeira parte. Sendo certo que um dos
cônjuges, em relação ao outro, pode ser obrigado a “uma prestação
destinada a compensar, tanto quanto seja possível, a disparidade”,
criada pela ruptura do matrimônio, “nas respectivas condições de vida”.
Essa prestação terá o caráter de um forfait e terá a forma de
um capital, cujo valor será fixado judicialmente — segunda parte.
Ressalva-se que o juiz poderá se recusar a atribuir essa prestação sob o
fundamento da equidade, considerados os critérios do art. 271, ou
quando houver sido caracterizada a culpa exclusiva do cônjuge que
pretenda a prestação compensatória, observadas as condições particulares
da ruptura do casamento — terceira parte.
A constituição desse
capital poderá ser feita por meio de: a) um pagamento em dinheiro,
subordinado à prestação de garantias previstas no art. 277[1] do Código Civil francês;[2]
b) instituição de direitos reais ou direitos temporários — propriedade,
uso, habitação, usufruto — em favor do cônjuge, podendo o juiz proceder
à cessão forçada desses direitos. É, no entanto, necessária a anuência
do cônjuge-devedor, quando esses direitos forem advindos de doação ou
herança.[3]
Quanto ao item (b), esse dispositivo foi submetido ao Conselho
Constitucional de França, que se manifestou por sua conformidade à
Constituição, nos termos do acórdão 2011-151 QPC, de 13 de julho de
2011.
A despeito de o art. 270 mencionar que a prestação terá a
forma de um “capital”, o art. 275 — alterado pela Lei 2004-439, de 26 de
maio de 2004 — admite que o juiz fixe seu pagamento em parcelas
periódicas, no prazo máximo de até oito anos, indexadas conforme as
pensões alimentícias. Só será possível assim o determinar se ficar
comprovado que a constituição imediata do capital é impossível ao
devedor. A qualquer momento, o cônjuge-devedor poderá liquidar o saldo
remanescente do capital a ser integralizado.
Ainda segundo o art.
275, segunda parte, o cônjuge-devedor pode requerer a revisão das
condições de pagamento, em caso de alteração significativa de sua
situação. No art. 276, abrem-se as possibilidades para que, a título
excepcional e por meio de decisão especialmente motivada, o juiz fixe a
prestação compensatória sob a forma de uma renda anual.[4]
É necessário que o magistrado, além das regras do art. 271, leve em
consideração a idade e a saúde do devedor. Mais amplamente, o art.276-3[5]
prevê hipóteses de revisão, modificação ou suspensão da prestação
compensatória, constituída sob a forma de renda, em caso de alteração
relevante dos recursos ou da necessidade de qualquer das partes.
Veda-se, no entanto, a revisão da renda para um montante superior ao
disposto inicialmente pelo juiz em sentença.
À semelhança do
Código Civil espanhol, seu homólogo francês estabelece, no art. 271 —
com a redação dada pela Lei 2010-1330, de 9 de novembro de 2010 —, os
critérios para a fixação da “prestação compensatória” (prestation compensatoire).
Tomar-se-á em consideração, como critérios gerais, a necessidade do
cônjuge-credor e os meios do cônjuge-devedor, no momento do divórcio,
mas com possibilidade de alteração em razão das circunstâncias
previsíveis do futuro. Para essa finalidade, deverá o juiz levar em
conta, nomeadamente: 1) a duração do casamento; 2) a idade e a saúde dos
cônjuges; 3) sua qualificação e situação profissionais; 4) as
consequências das escolhas profissionais feitas por um dos cônjuges,
durante a vida em comum, para a educação dos filhos ou para favorecer a
carreira de um dos cônjuges em detrimento da sua; 5) o patrimônio
estimado ou previsível dos cônjuges, tanto em capital quanto em rendas,
após a liquidação do regime de bens; 6) seus direitos existentes e
previsíveis. Considerado o item 6, deve-se também apreciar (7) a relação
entre as pensões existentes, sua redução potencial e o impacto da
prestação compensatória nesse regime, de par com as circunstâncias
referidas no item 6.
Permite-se que, no caso de divórcio por mútuo
consentimento, os cônjuges determinem o valor e as condições da
prestação compensatória no próprio acordo a ser submetido à homologação
judicial. É lícito incluir cláusula que condicione resolutiva do
pagamento ante a ocorrência de determinado evento. Admite-se, ainda, que
a prestação seja oferecida sob a forma de uma renda com prazo de
duração limitado. Se as partes convencionarem cláusulas ofensivas à
equânime atribuição de direitos e obrigações entre os cônjuges, o juiz
recusar-se-á a homologar o acordo.[6]
Uma
vez homologado o acordo, ele terá força executória de uma sentença
judicial. Sua modificação ulterior só se dará por meio de novo acordo
entre os ex-cônjuges, a ser também homologado pelo juiz. Faculta-se a
inclusão de cláusula revisional, na hipótese de sobrevirem alterações
relevantes nas necessidades e nos meios econômicos dos cônjuges. Nesse
caso, caberá ao juiz apreciar a revisão da prestação compensatória,
levando-se em conta os arts. 275, 276-3 e 2764, além dos arts. 280 e
280-2, quanto a estes últimos, ressalvada disposição particular do
acordo.[7]
Os efeitos da morte sobre o dever de prestação compensatória estão definidos no art. 280[8]
do Código Civil francês: a) dá-se sua transferência para o espólio e
caberá aos herdeiros pagá-la, desde que não ultrapasse as forças da
herança. Os herdeiros não têm responsabilidade pessoal. Se não houver
como se pagar a prestação, os legatários, de modo proporcional, poderão
ser convocados a fazê-lo com parte de seus legados. Se a prestação foi
fixada sob a forma de um capital pagável nas condições do art. 275, a
morte do devedor implica o direito ao pagamento imediato.
Na
jurisprudência francesa, especialmente nos acórdãos da Corte de
Cassação, o mais alto órgão da magistratura em França, como esse
tribunal orgulhosamente se autoproclama, há um número bem razoável de
casos envolvendo as prestações compensatórias. Veja-se uma síntese dos
principais resultados: a) não se confunde com a alteração significativa
das condições relativas aos recursos e às necessidades das partes a
omissão de rendimentos, quando do divórcio. É inviável rever ou suprimir
a prestação compensatória sob esse exclusivo fundamento[9];
b) no cálculo da prestação compensatória não se pode utilizar o tempo
de coabitação anterior ao casamento como critério exclusivo para esse
fim[10];
c) o afastamento de um dos cônjuges do trabalho, logo após o nascimento
do primeiro filho, é causa relevante na definição do dever de prestar e
na quantificação do valor a ser pago a título de compensação[11]; d) o momento do divórcio é o marco decisivo para se aferir a ocorrência da disparidade econômica entre os cônjuges.[12]
Não
apenas em Espanha e França existem normas sobre os ditos “alimentos
compensatórios”. As normas civis do Uruguai e do Chile também regularam
essa matéria.
No Direito chileno, as mudanças introduzidas em 2004
na Lei de Matrimônio instituíram um “regime de compensação econômica”
para a hipótese de um dos cônjuges haver-se dedicado aos trabalhos
domésticos e aos cuidados com a prole, enquanto o outro desenvolveu uma
atividade remunerada ou lucrativa durante o casamento. Caberá o juiz, à
falta de acordo entre os cônjuges, a fixação de uma “compensação” ao
necessitado, sob a forma de um capital ou de quotas reajustáveis, ou,
ainda, por meio de ações, bens e direitos de usufruto, habitação e uso.
No
Uruguai, há uma prejudicial confusão legislativa entre o dever de
alimentos e o que se denomina de “prestação compensatória” no Direito
francês. O art. 183 do Código Civil uruguaio afirma que o marido fica
sempre obrigado a contribuir para a adequada e decente manutenção da
mulher não culpada (pela separação). E assim o fará por meio de uma
“pensão alimentícia”, cominada em atenção às “faculdades do obrigado e
as necessidades da mulher, de maneira que esta conserve, tanto quanto
possível, a posição que detinha durante o matrimônio”. Esse dever
cessará desde o momento em que a mulher passe a levar “una vida desarreglada”.
É
chegado o momento de concluir. O surgimento do debate sobre os
“alimentos compensatórios” no Brasil em muito se deve à contribuição
doutrinária, figurando Zeno Veloso como um dos nomes centrais para o
surgimento da tese[13],
e, posteriormente, a seu debate na jurisprudência, de modo especial no
Superior Tribunal de Justiça, graças aos votos de Carlos Alberto Menezes
Direito, Sidnei Benetti e Antonio Carlos Ferreira.
(i) A
diferenciação entre os “alimentos compensatórios” e os “alimentos civis”
merece ser sistematizada. Um grande contributo para que se estremem
esses conceitos é o abandono do substantivo “alimentos” em favor de
outros menos suscetíveis a confusões terminológicas, como “prestações”
ou “compensações”. (ii) Outro ponto que merece exame é a distinção entre
o que vem a ser o resultado da partilha, os frutos da partilha e a
própria função dos alimentos civis no processo de extinção da sociedade
conjugal ou do matrimônio. Em muitos casos, essas funções são objeto de
indevida miscelânea, deixando sem valor as elaboradas construções
dogmáticas (tão antigas quanto respeitáveis). Mais que uma preocupação
científica, que por si mesma já se bastaria, é também de se considerar o
problema do respeito à autodeterminação, que está presente quando os
nubentes decidem celebrar um pacto antenupcial, e da previsibilidade dos
efeitos de tais arranjos. (iii) Quem se cercou das reservas de um pacto
matrimonial, com os custos emocionais que lhes são inerentes, poderá
ter suas cautelas postas por terra em face de uma decisão judicial que
lhe condene a pagar “alimentos compensatórios”, muita vez sob o color de
substituir um regime (querido) de separação convencional por outro de
comunhão parcial. (iv) Finalmente, há o problema da ausência de previsão
legal para essa verba compensatória. Nos países mencionados — Espanha,
França, Uruguai e Chile —, houve reformas legislativas prévias ao
reconhecimento oficial desse direito. Mas, diante das questões
anteriormente suscitadas (i, ii e iii), esse problema cede ante a
necessidade de um maior diálogo entre a doutrina e os tribunais, a fim
de que se evite a transformação dos alimentos em uma figura de tal
plasticidade que se torne irreconhecível seu perfil dogmático. Os
doutrinadores devem aprofundar essa discussão, até para que consigam
cooperar com os tribunais no exame reflexivo de um tema tão atual.
[1]
O art. 277, com a redação dada pela Lei 2000-596, de 30 de junho de
2000, afirma que o juiz pode impor ao cônjuge-devedor, independentemente
de hipoteca legal ou judicial, a constituição de uma garantia, a dação
de uma caução ou a assinatura de um contrato de garantia ao pagamento da
renda ou do capital.
[2] Item 1o do art. 274, com a redação modificada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[3] Item 2o do art. 274, com a redação modificada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[4] O art. 276 teve sua redação alterada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[5] Com a redação dada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[6] Art. 278, com a redação dada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[7] Paráfrase do art. 279, cuja redação atual decorre da Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[8] Com a redação dada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[9] Arrêt n° 983 du 4 novembre 2010 (09-14.712) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[10] Arrêt n° 865 du 6 octobre 2010 (09-12.718) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[11] Arrêt n° 377 du 31 mars 2010 (09-13.811) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[12] Arrêt n° 208 du 15 février 2012 (11-14.187) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[13]
Recomenda-se a leitura de: VELOSO, Zeno. Deveres dos cônjuges:
responsabilidade civil. In. CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; SIMÃO,
José Fernando; FUJITA, Jorge Shiguemitsu; ZUCCHI, Maria Cristina (Orgs).
Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao professor Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010.
Comentários
Postar um comentário