Explicitando a situação
Como se sabe, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal a Emenda Constitucional 62/2009, que instituiu o novo regime especial para o pagamento de precatórios. O ministro Luiz Fux apresentou no dia 24 de outubro sua proposta de modulação no tempo dos efeitos da decisão da Corte nas ações (ADI 4.357 e ADI 4.425) que questionaram a constitucionalidade da EC 62/2009. Segundo seu voto, o regime fica prorrogado por mais cinco anos, até o fim de 2018, sendo declaradas nulas, retroativamente, apenas as regras acessórias relativas à correção monetária e aos juros moratórios. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Roberto Barroso.
Como se sabe, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal a Emenda Constitucional 62/2009, que instituiu o novo regime especial para o pagamento de precatórios. O ministro Luiz Fux apresentou no dia 24 de outubro sua proposta de modulação no tempo dos efeitos da decisão da Corte nas ações (ADI 4.357 e ADI 4.425) que questionaram a constitucionalidade da EC 62/2009. Segundo seu voto, o regime fica prorrogado por mais cinco anos, até o fim de 2018, sendo declaradas nulas, retroativamente, apenas as regras acessórias relativas à correção monetária e aos juros moratórios. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Roberto Barroso.
Aqui, o que deve
ser dito, antes de tudo — e que poucos se deram conta — é que, após a
decisão plenária de 14 de março de 2013 que declarou parcialmente inconstitucional a EC 62/2009, o ministro Fux, monocraticamente, em despacho de 11 de abril de 2013, suspendeu
o decidido pelos 11 ministros conjuntamente para determinar a aplicação
dos dispositivos declarados inconstitucionais até posterior decisão do
plenário. Ou seja, é possível dizer, no contexto, que, sozinho, ele
modulou os efeitos do julgamento (que necessita de 8 votos).[1]
E essa questão somente veio ao Plenário mais de seis meses depois de
sua decisão monocrática, o que contraria a Lei 9.868. Felizmente, até
porque não havia outra saída, o Plenário ratificou a decisão
monocrática, mas não deixa de ser inusitado um ministro suspender,
sozinho, a decisão tomada pelo plenário da Casa. Resultado: se não
houver modulação dos efeitos, todos os pagamentos de precatórios no
período serão anulados.
No último dia 24 de outubro, em seu voto
sobre a questão de ordem (levantada por representantes de estados e
municípios), o ministro Luiz Fux propôs tornar
nulas as regras relativas ao regime especial apenas a partir do fim do
exercício financeiro de 2018. Já falarei disso na sequencia.
Antes
disso, cabe referir que o regime especial instituído pela EC 62
consistiu na adoção de sistema de parcelamento de 15 anos da dívida,
combinado a um regime que destina parcelas variáveis entre 1% a 2% da
receita de estados e municípios para uma conta especial voltada para o
pagamento de precatórios. Desses recursos, 50% seriam destinados ao
pagamento por ordem cronológica, e os demais 50% destinados a um sistema
que combina pagamentos por ordem crescente de valor, por meio de
leilões ou em acordos diretos com credores. Observe-se que a aprovação
dessa emenda foi vista como um avanço, em vista da enorme dificuldade de
caixa dos estados e municípios.
Voltando ao voto do ministro Fux:
o pagamento de precatórios por leilões ou acordos, segundo a proposta
de modulação, deve ser declarado nulo imediatamente após o trânsito em
julgado das ADIs, porém sem efeitos retroativos. Foram declaradas nulas,
com eficácia retroativa, as regras que instituíam o índice da caderneta
de poupança para correção monetária e o cômputo dos juros moratórios
dos precatórios, por serem considerados insuficientes para recompor ou
remunerar os débitos.
Vencido o prazo fixado (fim de 2018), o
ministro afirmou que deverá ser imediatamente aplicável o artigo 100 da
Constituição Federal, que prevê a possiblidade de sequestro de verbas
públicas para satisfação do débito quando não ocorrer dotação
orçamentária. Ele chamou a atenção para a necessidade de o STF rever sua
jurisprudência sobre a intervenção federal em caso de inadimplência de
governos locais com precatórios. Para o ministro, a intervenção, ainda
que não resolva a questão da falta de recursos, serviria como incentivo
ao administrador público para manter suas obrigações em dia. Segundo a
jurisprudência da Corte, a intervenção federal está sujeita à
comprovação do dolo e da atuação deliberada do gestor público. Claro que
esses aspectos são todos meritórios. No entanto, vejamos na sequência o
que pode(rá) ocorrer.
Problemas da modulação proposta pelo ministro Fux
O voto do ministro Luiz Fux manda aplicar retroativamente a inconstitucionalidade do índice de correção monetária para todos os precatórios, inclusive os pagos na ordem cronológica mandando recalcular as diferenças. Dois problemas (efeitos colaterais do voto):
O voto do ministro Luiz Fux manda aplicar retroativamente a inconstitucionalidade do índice de correção monetária para todos os precatórios, inclusive os pagos na ordem cronológica mandando recalcular as diferenças. Dois problemas (efeitos colaterais do voto):
a)
nos acordos diretos, leilões e na ordem invertida o cálculo do
precatório para fins de aplicação do deságio se deu com a poupança, e
esses pagamentos ele preserva. Como não preservar os pagamentos da ordem
cronológica? E o princípio da isonomia?
b) Já a diferença o
ministro manda pagar na ordem cronológica. Ora, se é assim, será
necessário suspender todos os pagamentos e recalcular os anteriores,
pois eles preferem na ordem e por isso foram pagos. É impossível rever
esses cálculos.
Uma questão extremamente grave para as finanças públicas: a prevalecer o efeito ex tunc
para declarar o cômputo do INPC ou IPC-A em substituição à TR, somente
em relação aos precatórios ainda pendentes de pagamento, isso ocasionará
um acréscimo no passivo da ordem de 20% (no mínimo). Por isso, tudo
indica que o ideal seria aplicar a TR até a publicação do acórdão e daí
em diante outro índice. Aliás, adotar a EC tal qual ordenado na liminar é
pagar com TR enquanto se aguarda o julgamento final. Daí a pergunta:
esses cálculos são questionáveis? De que adianta pagar então? Parece
haver, aqui, uma contradição.
c) Com relação aos juros de mora,
parece-me extremamente relevante que o STF deixe claro a
constitucionalidade de aplicação dos juros de mora de 0,5% ao mês. Ou
não. Caso contrário, haverá questionamentos para aplicação de 1% nos
precatórios de natureza previdenciária e de Selic nos precatórios de
natureza tributária. Ora, conhecendo a sistemática jurídica de terrae brasilis,
em que “judicializamos tudo e de tudo”, colonizando o mundo da vida por
intermédio dos litígios (para usar uma expressão cara a Habermas),
corre-se perigosamente o risco do caos.
A questão fulcral: o Supremo Tribunal Federal não pode legislar
De todo modo, a questão fulcral é: pode o STF (e, no caso, o voto do ministro Fux) estabelecer o prazo de cinco anos para pagar todo o estoque atual? Assim fazendo, está legislando. Indubitavelmente. Parece-me muito simples a questão:
De todo modo, a questão fulcral é: pode o STF (e, no caso, o voto do ministro Fux) estabelecer o prazo de cinco anos para pagar todo o estoque atual? Assim fazendo, está legislando. Indubitavelmente. Parece-me muito simples a questão:
a) ou o STF aceita o prazo de 15 anos da EC que termina tudo em 2024
b) ou não há que se falar em prazo.
Nem
se pode exigir que o STF estabeleça percentual sobre a RCL para pagar
precatórios. Também nesse caso estaria legislando. Ou se aceita a Emenda
Constitucional na sua redação original ou não se aceita. Como venho
referindo: há somente seis hipóteses — e não encontrei, ainda, a sétima —
em que o Poder Judiciário pode deixar de aplicar uma lei (ou uma EC),
conforme explicito em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica
(RT, 2013). Para deixar de aplicar um ato normativo votado
democraticamente, deve ser utilizado sempre a jurisdição constitucional.
Assim, se a EC, votada pelo Parlamento, estabelece um prazo, ou ele é
cumprido ou ele é declarado inconstitucional (ou, ainda, dele se faz uma
interpretação conforme — verfassungskonforme Auslegung — ou uma nulidade parcial sem redução de texto — Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung — o que parece nem de longe ser o caso). Essa questão não está dentro da possibilidade de “modulação”.
Efeitos colaterais e futuros
Não esqueçamos que a Súmula 17 do STF está diretamente ligado à espécie. Como está redigida, há dúvidas acerca do termo inicial de incidência dos juros de mora quando o pagamento do precatório não se dá no prazo constitucional. Vários credores querem (quererão) a aplicação retroativa dos juros sem expurgo do período da graça (período compreendido entre a data da expedição do precatório e o último dia do ano de vencimento para pagamento do precatório). São dezoito meses. Daí o busílis: como se contam os juros de mora? Arrisco uma resposta: após a extrapolação do prazo previsto para pagamento, sem retroação.
Não esqueçamos que a Súmula 17 do STF está diretamente ligado à espécie. Como está redigida, há dúvidas acerca do termo inicial de incidência dos juros de mora quando o pagamento do precatório não se dá no prazo constitucional. Vários credores querem (quererão) a aplicação retroativa dos juros sem expurgo do período da graça (período compreendido entre a data da expedição do precatório e o último dia do ano de vencimento para pagamento do precatório). São dezoito meses. Daí o busílis: como se contam os juros de mora? Arrisco uma resposta: após a extrapolação do prazo previsto para pagamento, sem retroação.
Ainda
outro ponto da decisão que merece um cuidado: ela impede a compensação
unilateral de precatórios com dívida ativa dos entes. Ora, há casos no
plano dos Estados ou municípios que a Viúva terá que pagar precatório
para quem lhe deve dinheiros, “sabendo” que o credor do precatório não
pagará seu tributo na sequencia... Pelo menos se deveria permitir a
penhora do precatório até que se decida a execução fiscal.
Não
quero fazer raciocínios consequencialistas. Trata-se de outra coisa,
isto é, de invocar uma análise a partir das relações entre os Poderes da
República (veja-se a diversidade de modos para fazer ativismo: de um
lado, por vezes, utilizando argumentos meta-jurídicos; de outro,
buscando substituir o legislador, o que parece ser o caso na questão do
prazo de até 2018; por exemplo, por que não 2.019? ou 2017? Qual é o
critério? Isso não é tarefa do legislador?). E isso é uma questão de
princípio e não de política. Não cabe ao STF legislar sobre a matéria.
Insisto: defender isso é tratar o fenômeno a partir de princípios e não
de políticas. Por isso, decisões desse quilate devem ser examinadas e
reexaminadas amiúde, para evitar que a emenda fique pior que o soneto
(ou que a modulação fique pior que a emenda).
Finalmente, se a EC
veio para dar uma solução e nela foram encontrados problemas, há que se
prolatar (encontrar) uma decisão no Supremo que não represente uma
espécie de “descontrole” nos orçamentos públicos, uma vez que a Emenda
Constitucional esteve vigente e válida, ocasionando efeitos no mundo dos
fatos (e houve pagamentos). E que a decisão do STF não represente uma
nova Emenda Constitucional. E, finalmente, que a própria decisão do STF
não dê azo a milhares de ações, buscando correções, diferenças, etc, a
partir de um rosário de interpretações decorrentes de vaguezas ou
ambiguidades do acórdão. Ou seja, para além da impossibilidade de o STF
legislar, o que não deve ocorrer é, via modulação, colocar em dúvida os
pagamentos já efetuados de precatórios, contribuindo, assim, para a
eternização das dívidas (e mais milhares de ações). E depois ainda se
diz por aí que o ativismo no Brasil é um mito. Pois é!
[1]
Aliás, não é a primeira vez que isso ocorre no STF. O Min. Gilmar
Mendes, na ADI 4638, já chamava a atenção para um considerável número de
ADIns (de 2009 para cá, foram 8, sem contar a presente) em que a
decisão monocrática não foi levada de imediato ao plenário. Entre outras
coisas, dizia o Min. Gilmar: “o sistema definido pela Lei 9868/99 para a
concessão de medidas cautelares deixa pouco espaço para a ocorrência de
casos em que seja necessária uma decisão monocrática fora dos períodos
de recesso e de férias. A técnica da modulação dos efeitos, posta à
disposição do Tribunal no julgamento da medida cautelar, é instrumento
hábil para se assegurar a decisão de mérito na ação direta e, dessa
forma, ela praticamente elimina as hipóteses em que seja necessária uma
urgente decisão monocrática do Relator. Ficam abertas apenas as
hipóteses em que a suspensão da vigência da norma seja imprescindível
para estancar imediatamente a produção de seus efeitos sobre fatos e
estados de coisas que, de outra forma, não poderiam ser revertidos”.
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