O recurso extraordinário, atualmente, deve ser estudado sob o viés da repercussão geral, bem como da tendência de “objetivação”[1].
Tenho manifestado preocupação quanto aos caminhos percorridos pela
jurisprudência em relação à repercussão geral e ao movimento da
objetivação. Parte dos problemas deriva do fato de os procedimentos do
recurso extraordinário e da ação direta de inconstitucionalidade terem
muito pouco em comum, e a jurisprudência do STF estar realizando
adaptações para aproximá-los. O texto de segunda-feira (11/11), aqui na
coluna Processo Novo, versará sobre algumas das questões têm surgido em
relação a esses fenômenos que, a meu ver, se entrelaçam.
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É importante compreender, inicialmente, que prequestionamento e repercussão geral são requisitos que não devem ser visualizados separadamente. Explica-se:
Para a admissibilidade do recurso extraordinário, a questão constitucional deverá ser qualificada pela repercussão geral.
O
fundamento do recurso extraordinário é um só: alegação de questão
constitucional (contrariedade à norma constitucional) que ostente
repercussão geral, questão esta existente na decisão recorrida. Embora
isso não esteja explícito no artigo 102, inciso III, alínea “a”, da CF,
esta disposição deve ser lida através do parágrafo 3º do mesmo artigo[2].
A
questão constitucional, assim, não pode ser simples (no sentido do que
ocorre com a questão federal-infraconstitucional veiculada através de
recurso especial): a questão constitucional deve ser qualificada.
Por
isso que, a rigor, repercussão geral não é um requisito a mais, além do
prequestionamento, já que a questão prequestionada é a própria questão
constitucional qualificada pela repercussão geral.
As situações
previstas nas demais alíneas do artigo 102, inciso III, são hipóteses de
cabimento que decorrem da alínea “a” — esta compreendida, sempre, em
simbiose com o disposto no parágrafo 3º do mesmo artigo.
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A repercussão geral opera em dois planos, em relação ao recurso extraordinário: de um lado, funciona como mecanismo de restrição das questões constitucionais que podem ser levadas ao STF; de outro, funciona como veículo de transposição de recurso extraordinário,
já que, uma vez havendo repercussão geral, tende a jurisprudência do
Supremo a abrandar a exigência de presença de outros requisitos do
recurso.
Algo semelhante ocorre em relação ao recurso extraordinário do direito argentino. A jurisprudência da Corte Suprema daquele país criou, na década de 1960, a doctrina de la gravedad institucional,
segundo a qual em determinados casos, considerados institucionalmente
graves, podem ser desprezados alguns requisitos formais do recurso
extraordinário (o leading case é o caso “Jorge Antonio”).
Não se confunde o fenômeno com a transcendência
da questão constitucional (semelhante à repercussão geral da questão
constitucional, para o recurso extraordinário brasileiro), que, de
acordo com o artigo 280 do CPC argentino (na redação da Lei
23.774/1990),[3] é requisito para que o recurso extraordinário seja conhecido (embora exista evidente relação entre os fenômenos).
A
exigência de repercussão geral da questão constitucional para cabimento
do recurso extraordinário, assim, torna as hipóteses em que o recurso
extraordinário deve ser admitido bastante restritas (repercussão geral
como mecanismo de restrição).
Por outro lado, tendo em
vista que a jurisprudência do STF tem se manifestado no sentido de dar a
maior rendimento às suas decisões, alguns requisitos de admissibilidade
do recurso extraordinário têm sido mitigados, nos casos em que aquele
Tribunal note que a higidez da orientação fixada por sua jurisprudência,
acerca da interpretação da norma constitucional, esteja sendo colocada
em risco (repercussão geral como veículo de transposição).
Nesse
sentido, já decidiu o STF no sentido da “flexibilização do
prequestionamento nos processos cujo tema de fundo foi definido pela
composição plenária desta Suprema Corte, com o fim de impedir a adoção
de soluções diferentes em relação à decisão colegiada. É preciso
valorizar a última palavra — em questões de direito — proferida por esta
Casa”.[4]
Caso se consolide a orientação estabelecida no julgado citado,
poder-se-á dizer que, sempre que for caso de incidência do parágrafo 3º
do artigo 543-A do CPC, será caso de “flexibilização” dos requisito de
admissibilidade do recurso extraordinário.
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Ao
decidir recurso extraordinário que veicule questão constitucional que
ostente repercussão geral, o STF julga não apenas a questão que
interessa ao caso concreto, mas delibera, também, sobre a tese jurídica a
ser observada no julgamento de recursos que veiculem idêntica questão
de direito. Julgado o recurso extraordinário selecionado, espera-se que
os órgãos jurisdicionais recorridos se conformem à decisão
proferida pelo STF, revendo as decisões impugnadas pelos recursos que
tenham ficado sobrestados (CPC, artigo 543-B, parágrafo 3º).
Embora o julgamento do mérito do
recurso extraordinário não seja vinculante (no sentido do que sucede em
uma ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo), o mecanismo
previsto na Constituição e no CPC dificulta a manutenção de decisões que
contrariem a orientação firmada no julgamento de um recurso
extraordinário.[5]
O
julgamento de um recurso extraordinário, assim, interessa não apenas a
recorrente e recorrido (como, antes da EC 45/2004, poderia ocorrer), mas
a todos aqueles que se envolvem em situação jurídica em que a tese
firmada pelo STF será, muito provavelmente, aplicada.
Afirma-se
que, com a implantação da repercussão geral da questão constitucional
para o recurso extraordinário, a tendência de “objetivação” que já se
vinha verificando, na jurisprudência do STF[6] se consolidou.[7] A repercussão geral, sob esse prisma, fez com que se aproximassem os controles difuso e concentrado de constitucionalidade.
Assim,
temas como modulação dos efeitos do julgamento, e o modo como tal
técnica pode ser empregada, passam a interessar, assim, também ao
julgamento de recursos extraordinários. Por exemplo, decidiu-se “no
sentido da exigência de quórum de 2/3 para modular os efeitos de decisão
em sede de recurso extraordinário com repercussão geral”.[8]
Tenho
afirmado que um dos problemas, quanto a esse aspecto, está no fato de,
nos casos em que se dá a “objetivação”, ficar-se sabendo disso a posteriori, isso é, no curso ou após o julgamento do recurso extraordinário.
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A
repercussão geral da questão constitucional deve ser demonstrada “nos
termos da lei”, diz o parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição. O tema
é objeto do artigo 543-A do CPC, segundo o qual, “para efeito da
repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões
relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico,
que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (artigo 543-A,
parágrafo 1º, do CPC).
Não ficam claros, pelo que consta do
referido dispositivo legal, os critérios a serem considerados, para se
dizer que uma questão constitucional é relevante do ponto de vista
econômico, por exemplo. Não por acaso, boa parte das decisões proferida
pelo STF quanto à existência de repercussão são tomadas por maioria.
Tenho
defendido que o requisito deve ser compreendido com vistas a assegurar a
plena realização da função do Supremo Tribunal Federal, em nosso
ordenamento jurídico.
Como o STF somente examina a conformidade
das decisões judiciais com a Constituição quando a questão
constitucional nelas examinada tem repercussão geral, sobram, sem
controle, as demais decisões proferidas pelos tribunais que versam sobre
questões constitucionais destituídas de repercussão geral.[9]
Pode
ocorrer, assim, que vários tribunais do país interpretem de modo
diverso um mesmo tema da Constituição: se o STF entender que, a respeito
de determinado dispositivo constitucional (isto é, da situação fática sobre a qual ele incida) não há repercussão geral, a interpretação divergente a respeito perdurará, sem correção.
Esse
estado de coisas contraria a razão de ser do recurso extraordinário e
os motivos — político e jurídico — que exigiram a criação desse recurso.
Por
tal razão, defendo que deve ser reconhecida a repercussão geral da
questão constitucional, sempre que o dispositivo constitucional for
objeto de divergência, na jurisprudência.
Deve ser reconhecida a
repercussão geral sob o ponto de vista jurídico, assim, sempre que o
recorrente demonstrar a existência de dissídio jurisprudencial a
respeito da inteligência da norma constitucional, já que, caso se
permita a manutenção da divergência, se estará a contrariar a própria razão de ser do
recurso extraordinário, que, além corrigir decisões contrárias à
Constituição, tem por função também uniformizar a inteligência da norma
constitucional.
A Câmara dos Deputados tem, agora, a oportunidade
de minimizar o problema. Basta que, no art. 1.048, § 3.º do projeto de
novo CPC,[10]
seja inserido inciso que reconheça haver repercussão geral sempre que o
recurso questionar decisão que der à Constituição interpretação
divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
Passei ao largo de muitas questões importantes, relacionadas ao tema,
mas delas tratarei em textos vindouros desta coluna. Até breve!
[1] A respeito, cf., especialmente, o que escrevi em Prequestionamento e repercussão geral, 6. ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2012.
[2]
Com a reforma decorrente da EC 45/2004, o art. 102, § 3.º, da CF passou
a estabelecer que “no recurso extraordinário o recorrente deverá
demonstrar a repercussão geraldas questões constitucionais discutidas no
caso, nos termos da lei”. A Lei 11.418/2006, posteriormente, inseriu no
CPC o art. 543-A, com a finalidade regulamentar o requisito. A mesma
Lei inseriu também o art. 543-B do CPC, que dispôs sobre o sobrestamento
dos recursos extraordinários, no contexto da análise da repercussão
geral. Assim, precisará o recorrente demonstrar que o tema
constitucional discutido no recurso extraordinário tem uma relevância
que transcende aquele caso concreto, revestindo-se de interesse geral.
[3] Estabelece o referido dispositivo legal: “La
Corte, según su sana discreción, y con la sola invocación de esta
norma, podrá rechazar el recurso extraordinario, por falta de agravio
federal suficiente o cuando las cuestiones planteadas resultaren
insustanciales o carentes de trascendencia”.
[4] STF, AgRg no AgIn 375.011/RS, rel. Min. Ellen Gracie, j. 05.10.2004.
[5] Cf. regime previsto no art. 103, § 2.º, da Constituição e nos arts. 543-A e 543-B do CPC.
[6]
A respeito, cf. voto do ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do
AgRg em SE 5.206-EP: “E a experiência demonstra, a cada dia, que a
tendência dominante – especialmente na prática deste Tribunal – é no
sentido da crescente contaminação da pureza dos dogmas do controle
difuso pelos princípios reitores do método concentrado. [...]. Ainda que
a controvérsia lhe chegue pelas vias recursais do controle difuso,
expurgar da ordem jurídica lei inconstitucional ou consagrar-lhe
definitivamente a constitucionalidade contestada são tarefas essenciais
da Corte, no interesse maior da efetividade da Constituição, cuja
realização não se deve subordinar à estrita necessidade, para o
julgamento de uma determinada causa, de solver a questão constitucional
nela adequadamente contida” (o voto foi proferido em 1997; cf. íntegra aqui,
especialmente fls. 990-991). Esta orientação foi confirmada no
julgamento do RE 388.830/RJ (2.ª T., rel. Min. Gilmar Mendes, j.
14.02.2006), em que se afirmou que o recurso extraordinário “deixa de
ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes,
para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem
constitucional objetiva”.
[7]
“A exigência de repercussão geral da questão constitucional tornou
definitiva a objetivação do julgamento do recurso extraordinário e dos
efeitos dele decorrentes, de modo a que a tese jurídica a ser firmada
pelo Supremo Tribunal Federal seja aplicada a todos os casos cuja
identidade de matérias já tenha sido reconhecida pelo Supremo Tribunal
(art. 328 do RISTF) ou pelos juízos e tribunais de origem (art. 543-B do
CPC), ainda que a conclusão de julgamento seja diversa em cada caso”
(STF, RE 565.714/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, j.
23.04.2008).
[9] Há, assim, uma lacuna sistêmica,
após a EC 45/2004: decisões sobre variados temas de direito
constitucional (sem repercussão geral) passam em julgado, a despeito de
poder haver divergência na jurisprudência a respeito. A outra face dessa
situação, decorrente da ausência de controle acerca da unidade de inteligência da norma constitucional nos casos em que não há repercussão geral, é o consequente aumento de poder de interpretação “final” dos tribunais locais a respeito da Constituição.
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