Ou
deveria ser. Ao menos em relação às biografias "não" autorizadas. Esta
proibição não faz qualquer sentido e não importe o eufemismo que se
utilize para a ele se referir, trata-se de censura. E de censura da pior
espécie: censura prévia. No estilo "não vi e não gostei". No caso, "não
li e não gostei".
O interessante é
que muitos dos artistas que defendem a proibição das biografias "não"
autorizadas foram defensores intransigentes da liberdade de expressão
durante a ditadura militar e totalmente contra qualquer forma de
censura. Pois era um posicionamento óbvio, já que não há arte sem
liberdade de expressão. Às vezes a censura demanda mais criatividade
para que seus limites sejam contornados, mas, ainda assim, não se torna
benéfica por esse motivo. Toda a forma de censura é odiosa e deve ser
evitada. Se necessária, sua utilização deve ser excepcional e
parcimoniosa. Nunca deve ser a regra.
Nossos artistas –
notadamente nossos compositores, músicos e intérpretes – são os maiores
e melhores representantes da nossa cultura e da nossa sociedade. São
personalidades queridas, das quais nos orgulhamos. São respeitados não
só no Brasil, mas também no exterior e, sem sombra de dúvida, a sua
produção cultural é de altíssima qualidade e somos reconhecidos como uma
nação culturalmente relevante graças a eles.
A despeito disso e
de toda a importância e respeito que inspiram, artistas não podem ser
tratados como se pertencessem a uma categoria "especial" de cidadãos. O
princípio da igualdade perante a lei, do tratamento legal isonômico, é
basilar da nossa sociedade. Quanto mais "categorias" de cidadãos
tivermos - e já temos muitas, todas informais e ilegais – mais divididos
estaremos e mais desiguais seremos.
Há uma
curiosidade natural em relação à vida dessas personalidades, que fazem
parte do nosso dia-a-dia e estão tão perto de nós, quanto estão
distantes. Quanta esperança nos dão aqueles artistas de origem simples,
que venceram pelo talento! Seus exemplos de mobilidade social e de
igualdade de oportunidades nos fazem acreditar na democracia e na
liberdade mais do que o resultado de qualquer eleição absolutamente
transparente e democrática.
Esses mesmos
artistas reclamam, agora, de uma imprensa que os persegue e que não lhes
dá oportunidade de manifestarem-se quanto às suas objeções à liberação
das biografias "não" autorizadas. Desculpe, mas não é verdade. Esses
artistas, como já dito aqui, são pessoas queridas de toda a nossa
sociedade, inclusive de grande parcela de jornalistas, políticos e
juristas. Por conta disso, gozam de um prestígio – cultivado e merecido –
que faz com as discussões sobre tópicos de seu interesse reverberem
muito mais do que as discussões sobre tópicos de interesse de outras
categorias de artistas, tão merecedores de respeito e admiração da
sociedade quanto eles próprios. Ora, ninguém propôs a isenção de
impostos para livros eletrônicos, por exemplo, como uma medida de
beneficiar seus autores. Ou, ainda, uma regulamentação clara e precisa
para o direito de sequência devido aos artistas plásticos.
A discussão sobre
a necessidade de autorização para biografias é de toda inócua e, me
desculpem seus defensores, não se sustenta. Ora como se defender que um
político pode ser biografado sem sua autorização, mas um artista não?
Com o singelo e absurdo argumento de que políticos vivem de dinheiro
público? Então só se poderia biografar a parte da vida do político e que
ele se sustentou com "dinheiro público"? Todo dinheiro é público antes
que passe a nos pertencer. Os artistas – assim como médicos, advogados,
etc. – vivem, senão de dinheiro público, do dinheiro do público.
O que faz toda a
diferença não é o dinheiro público ou o dinheiro do público, mas a
decisão do artista em se tornar uma personalidade pública. Nessa
discussão, muito se tem falado em se equilibrar o direito de liberdade
de expressão com o direito à privacidade. No entanto, o que alguns
artistas querem é que o fato de que abriram parte de sua privacidade
para se tornarem personalidades públicas seja ignorado e que somente
eles possam controlar quando lhes é conveniente serem personalidades
públicas ou personalidades privadas. Não estou aqui dizendo que artistas
não têm direito à privacidade, mas, isto sim, que eles próprios abriram
mão de grande parcela desse direito quando optaram por seguir uma
carreira que os alçou à condição de personalidades públicas. E não pode
haver dúvida que vivem desta exposição pública.
A discussão é
inócua e já adentrou a esfera simplesmente opinativa. Não está mais
sendo discutida como uma questão de cunho social e tomando-se em
consideração aspectos legais. Tornou-se apenas uma discussão fundada em
"eu acho" e "eu quero". E é assim porque, no campo legal e jurídico, não
há o que se discutir: a proibição é absurda.
E essa discussão
afasta o foco de questões na seara do direito autoral que afetam os
artistas mais diretamente. Há a questão de todas as violações que são
praticadas e difundidas no meio virtual, sem que o país tenha adotado um
marco regulatório para a Internet. Há a questão das cópias
reprográficas de obras literárias e técnicas, que castiga e inviabiliza a
produção acadêmica. Há a questão do direito de sequência, da obra sobre
encomenda e dos direitos dos músicos que deveriam receber como
intérpretes e no mais das vezes são remunerados uma única vez e por
"tarefa". No campo da limitação dos direitos, caberia discutir o prazo
de proteção da obra: 70 anos após a morte do autor, beneficiando seus
descendentes, não seria um prazo muito longo? Enfim, há questões mais
prementes e bem mais relevantes que estão sendo esquecidas.
A proibição das
biografias "não" autorizadas, a título de proteção da "privacidade" do
biografado, não se sustenta. Há meios legais de coibir os abusos
cometidos. Sim, a justiça brasileira é lenta e as indenizações são,
muitas vezes, ínfimas. Infelizmente, o são para todos os
jurisdicionados. Não é um problema que aflige apenas a nossos artistas.
Aflige a todos nós. Mas, ainda assim, uma vez ou outra publicações que
se dedicam a acompanhar a vida das celebridades – as popularmente
chamadas "revistas de fofocas" – são processadas e penalizadas,
inclusive ao pagamento de danos morais. As indenizações por danos morais
pagas a artistas e celebridades são, na maioria das vezes, muitíssimo
superiores àquelas pagas a cidadãos "comuns" e não há nada de errado ou
de perverso nisso. Ora, quanto mais pública a personalidade, maior a sua
exposição popular, daí a necessidade de indenizações maiores para
desencorajar o aviltamento de sua fama. Pode-se entender o valor de tais
indenizações como uma compensação pela opção do artista em se expor
mais, expondo a sua privacidade a maior risco.
Se o biografado
deve ou não ser remunerado pela publicação de suas biografias é uma
questão que extrapola a discussão se biografias "não" autorizadas podem
ser publicadas. Como as partes envolvidas são partes privadas, elas
podem negociar livremente. No entanto, a inexistência de remuneração ao
biografado ou a seus descendentes não deve ser razão para impedir a
publicação de uma biografia. Deve ser reconhecido, no entanto, que o
trabalho é do biógrafo que pode ter contado ou não, com a colaboração do
biografado; o quê, em muitos casos, fará a diferença entre uma
biografia “autorizada” e oficial e uma biografia “não” autorizada. Como
negar, por exemplo, que o trabalho do biógrafo e historiador Paulo
Sérgio de Araújo - autor da biografia "proibida" Roberto Carlos em Detalhes
- que 15 quinze anos pesquisou a vida do biografado através de fontes
públicas e nunca teve uma única entrevista concedida a si pela
biografado, pertence somente a ele?
Há mecanismos
para que as biografias sejam publicadas e há mecanismos para que aquelas
que sejam mentirosas e caluniosas sejam recolhidas e seus autores e
editores, devidamente penalizados. Deve-se, também, confiar na
maturidade e na responsabilidade dos editores. Uma editora séria não irá
publicar biografias levianas. Um autor sério, não irá publicar uma
biografia mentirosa, desprovida de fundamentação fática. Diga-se, que
ser biógrafo não é uma escolha fácil, ainda que esse biógrafo se
dedicasse somente a biografias autorizadas ou oficiais: a quantidade de
pesquisa para fundamentar a biografia é extensa e, em muitos casos,
feita em fontes remotas e de difícil acesso. Além disso, escritores
tendem a ser remunerados em menor proporção que outros artistas.
Em que pese a
liberdade de expressão, biografias – assim como quaisquer outros
escritos – que incentivem a prática de crimes, que enalteçam criminosos e
seus crimes e denigram suas vítimas, que atentem contra a sociedade e
seus valores, devem ser proibidas pelo poder público, numa análise caso a
caso. No entanto, essas exceções não podem ser alçadas à condição de
regra para impedir todas as biografias "não" autorizadas.
As vidas públicas
– de artistas, de políticos, de celebridades e de quem quer que seja –
são parte da história de um povo. As biografias refletem essa história,
que pode ser vista por diferentes perspectivas, sem, contudo, perder a
importância para aquela sociedade. A história, as personalidades e suas
biografias se renovam e se renovarão sempre e "apesar de você" – de nós –
"amanhã há de ser um novo dia".
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