É
tormentosa a disciplina jurídica dos convênios com o terceiro setor no
âmbito Federal. A legislação vigente e os mecanismos de controle dos
ajustes – como o ainda embrionário e controverso SICONV-Sistema de
Convênios do governo Federal – são fonte de grande insegurança jurídica
para entidades privadas e administradores públicos.
O governo Federal
chegou a reconhecer o quadro de instabilidade que caracteriza o assunto.
A ideia seria louvável: substituir um problemático arranjo normativo
composto por decretos, instruções normativas, portarias, além de normas
de vigência limitada (como regras anuais de LDOs) por um único diploma
legal, que oferecesse estabilidade às relações jurídicas que envolvem o
terceiro setor, incluindo os problemáticos ajustes conveniais. O
trabalho de elaboração de um anteprojeto esteve a cargo da secretaria
geral da presidência da República.
Aparentemente,
contudo, o difícil legado das décadas anteriores, consolidado sob uma
legislação "caótica", apenas se agravará nos próximos anos. Até o
momento, não houve qualquer medida convincente a respeito do assunto.
Diversas entidades e movimentos, como a Abong – Associação Brasileira de
Organizações Não Governamentais, a Cáritas Brasileira, o Instituto
Socioambiental, entre outras, apresentaram, na semana passada, um apelo ao Governo Federal intitulado: "Marco regulatório das organizações da sociedade civil e o controle da corrupção – o que está por trás do descaso do governo?"
Problemas permanentes e, ao que tudo indica, insuperáveis
a) A comum equiparação dos convênios federativos com os convênios firmados com o terceiro setor
Um dos mais graves
problemas da legislação vigente é a "indistinção" entre o que se pode
definir como "convênios federativos" e os "convênios de fomento social"
mantidos com entidades sem fins lucrativos. Regras previstas em
decretos, portarias e instruções normativas do Executivo não segregam
esses dois tipos de ajustes. Em poucas palavras, a legislação, por
vezes, parece conferir a uma entidade privada sem fins lucrativos o
mesmo tratamento que a União oferece a um Estado ou a um Município
conveniado.
Assumir que uma
entidade privada tem exatamente os mesmos deveres que um Município ou um
Estado – e seus dirigentes políticos – na execução de recursos públicos
é uma premissa que, no mínimo, deveria ser afastada no exercício de
interpretação das normas jurídicas. Não é o que ocorre. Aparentemente, o
tratamento uniforme oferece a comodidade de controlar os convênios pela
"lente única" da Administração Pública Federal. Mesmo que o uso dessa
lente produza consequências perdidamente equivocadas, como, por exemplo,
a extensão às entidades privadas da aplicação de normas gerais de
licitação e de direito financeiro, descaracterizando totalmente o perfil
institucional dessas entidades e a própria eficiência buscada através
da parceria.
Não se verifica,
contudo, qualquer inclinação no sentido de corrigir esse tipo de
problema, mesmo dentro do marco regulatório atual, que é formado por
atos do Poder Executivo.
b) A ausência ou a inconsistência dos critérios de elegibilidade das despesas: a emblemática questão do pagamento de pessoal
A questão da
(in)elegibilidade de despesas em convênios com entidades sem fins
lucrativos tem sido marcada por interpretações e discussões
inexplicáveis. Tornou-se cada vez mais comum a vedação de despesas a
posteriori – não previstas na legislação ou no instrumento de convênio e
só identificadas depois da conclusão do ajuste. Uma proibição que não
era previamente conhecida e ajustada com o conveniado, em geral
proveniente de entendimentos de técnicos que não participaram do
processo de formação do acordo.
Esse problema tem
sido bastante relacionado ao pagamento de pessoal próprio da entidade
privada com recursos de convênio. Ou seja, uma despesa elementar em um
tipo de contrato que visa, fundamentalmente, reconhecer que aquele
perfil institucional (entidade sem fins lucrativos) deve ser
incentivado.
O convênio é um
ajuste pautado pela aglutinação de esforços das partes signatárias e
orientado por interesses comuns. Assim, convergir esforços significa,
necessariamente, aglutinar pessoas em torno de um objetivo. A
mobilização de pessoal é um elemento básico, que permite oferecer outros
instrumentos de apoio, como know-how específico, metodologias etc.
Seria ilógico e antieconômico, portanto, estabelecer vedação à
remuneração de pessoal próprio com recursos advindos de convênios ou de
outros ajustes de igual natureza. Significaria que a entidade, depois de
celebrado o ajuste, teria de recrutar pessoas de fora da sua estrutura,
capacitá-las, estabelecer vínculos de confiança e, só então, iniciar os
serviços acordados.
Em alguns convênios
já concluídos, a falta de clareza sobre o pagamento de pessoal ocasiona
discussões infindáveis. As interpretações majoritárias tendem a
restringir esse tipo de despesa – sugerindo, assim, que a precarização
das relações de trabalho, através de contratação de pessoas jurídicas,
teria sido uma forma mais "segura" do que o pagamento de empregados
celetistas. As regras que "vedam" o pagamento de pessoal são
"instituídas" caso a caso. Há entendimentos curiosos, como uma analogia à
vedação de pagamento de servidores públicos com recursos do convênio –
ainda que esta regra, especificamente, tenha o propósito de evitar uma
ruptura do regime remuneratório de servidores...
c) Os processos de prestações de contas e os efeitos do decurso do tempo: uma obrigação infinita?
Uma das questões
que mais tem causado preocupação é a que diz respeito aos efeitos do
decurso do tempo em processos de análise de prestação de contas.
Diversos órgãos Federais tem assumido como regulares, por exemplo, a
análise por tempo indefinido de prestações de contas ou a reabertura de
prestações de contas já devidamente aprovadas há mais de cinco anos.
Convênios
encerrados, com prestações de contas devidamente apresentadas,
permanecem por anos paralisadas, "sob análise". Repentinamente, algumas
entidades são surpreendidas com pedidos de documentos e esclarecimentos.
Não se tem admitido
que o decurso do tempo e a inércia da Administração produzem
consequências. Invoca-se, sem qualquer preocupação, uma espécie de dever
"infinito" de prestar contas, ou seja, como se o Estado pudesse
subordinar os administrados a um infindável processo, de consequências
imprevisíveis.
Mesmo que
entendimentos recentes do STF e do TCU sinalizem o contrário, não parece
haver constrangimento, por parte de órgãos e entidades do governo
Federal, em levar a efeito processos de prestação de contas com mais de
uma década de atraso.
d) A arbitrária inscrição das entidades no "SIAFI" e no "CEPIM"
A rejeição da
prestação de contas de um convênio conduz ao processo de Tomada de
Contas Especial, cujo mérito pode estar sujeito à deliberação do
Tribunal de Contas da União.
Contudo, após a
análise do órgão encarregado de apreciar a prestação de contas, as
entidades são incluídas, desde logo, em cadastros de inadimplência
(Sistema de Administração Financeira do governo Federal – SIAFI, cuja
base de dados alimenta o Cadastro de Entidades Privadas Sem Fins
Lucrativos Impedidas – CEPIM). Ficam então impedidas de contratar com o
Poder Público no plano federal, mas o impedimento não decorre de lei e
nem de uma condenação definitiva no TCU. O processo ainda está em
andamento quando se inicia o cumprimento da pena – é a chamada "fase
externa" da tomada de contas especial.
Ora, mas como se
pode admitir que, sem qualquer previsão em lei, à entidade seja imposta
uma sanção equivalente – porém mais grave, pois mais ampla e por tempo
indefinido – ao impedimento de contratar com a Administração Pública? Se
o TCU vier a julgar as contas regulares, passados alguns anos, terá a
entidade sido submetida à aplicação de pena, é claro, injustificada. Por
vezes, essa medida pode representar o fim da instituição, sobretudo
quando vocacionada à atuação de interesse público em parceria com o
Estado.
Não há, no entanto,
qualquer esforço para definir uma sistemática coerente e amparada por
uma lei específica – o que seria obviamente necessário. Enquanto isso,
os cadastros federais são utilizados como um "filtro", totalmente
ilegítimo e arbitrário, não apenas pelo governo Federal, mas por órgãos
de outras unidades da federação.
A penalização como tendência: o que vem pela frente
Não se vislumbra,
ainda, um caminho de superação desses problemas. Ao contrário. A
disciplina dos convênios, à falta de uma legislação adequada, permanece
ancorada em novos decretos, portarias, instruções e, é claro,
interpretações oscilantes dos órgãos "concedentes".
Essa normatização
segmentada e incerta chegou a um limite. O quadro normativo atual não
oferece soluções e mecanismos para a efetivação de procedimentos abertos
e transparentes de escolha dos parceiros privados, não se harmoniza aos
paradigmas da lei de acesso à informação,
nem enfatiza os resultados e a contribuição potencial das parcerias
para as políticas públicas coordenadas pelo governo Federal. O SICONV,
adotado como solução "inovadora", apenas agrava e amplia o quadro de
arbitrariedades e incoerências brevemente resumido acima.
A aposta do governo
Federal continua sendo o enrijecimento despropositado das regras e a
penalização a qualquer custo das entidades – vistas, genericamente, como
adversárias do interesse público. Ao que tudo indica, a opção política é
por concepções e estruturas que, na prática, inviabilizarão a execução
de parcerias com o terceiro setor. Seria mais honesto admitir, portanto,
que a verdadeira proposta do governo Dilma é evitar ou, muito
provavelmente, eliminar os convênios com as entidades do terceiro setor.
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