Atualidades da jurisprudência sobre a união estável e seus aspectos patrimoniais, por Sylvie Boëchat
As
relações familiares têm evoluído significativamente nas últimas
décadas, exigindo que o direito de família também sem transforme para
abarcar as mudanças operadas na dinâmica social dos afetos.
Nesse sentido, está em vias de obter a "maioridade civil", a lei 9.278 de 10 de maio de 1996, que instituiu a "união estável" como modelo de relação entre casais, alternativa ao casamento.
A CF já legitimava o instituto por meio de seu art. 226, parágrafo 3º1, o qual também passou a ser incluído no CC, em seus artigos 1.7232 e seguintes, tendo a doutrina e jurisprudência avançado na tendência da tutela das pluralidades familiares.
Por ser um modelo de
união que em muito se assemelha ao casamento, a jurisprudência dos
tribunais estaduais e do STJ tem aplicado às uniões estáveis3, por extensão, alguns direitos previstos para o vínculo conjugal do casamento.
Entendemos que, muito
embora a matéria não se vincule diretamente ao direito empresarial, é
fato que as consequências tocantes ao regime de bens seguido pelo casal
de companheiros, a comunicação de seu patrimônio durante a relação e
após o seu término - seja por dissolução ou por morte de um dos
parceiros - podem, sim, influenciar relações jurídicas importantes
vinculadas às do empresariado, a exemplo de demandas em que se discutam
questões societárias, recuperação de créditos, validação de garantias
por pessoas viventes sob esse modelo sócio afetivo, etc.
Desse modo, tendo em
vista que o Poder Judiciário tem sido chamado a se posicionar sobre o
assunto, apontamos abaixo alguns entendimentos firmados pela
jurisprudência atual e, inclusive de recentes julgados da mencionada
Corte superior.
Constituição e validação de garantias na União Estável
O art. 1.725 do CC4,
reconhecendo a aplicação analógica do regime de comunhão parcial de
bens à união estável, "no que couber", traduziu longa evolução
doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, mas deve ser analisado
quanto aos limites dos aspectos atinentes à solidariedade que permeia as
relações familiares, especialmente no que concerne à divisão do esforço
comum.
Nesse sentido, a exemplo
da validação de garantias porventura dadas por pessoas que vivam em
união estável, nos parece acertada a jurisprudência que reconhece a
inexigibilidade de outorga uxória para o fiador que assim se mantém: "A
circunstância de manter o fiador união estável não tem o condão de
infirmar, por ausência de outorga uxória, a garantia locatícia por ele
prestada ainda que o relacionamento esteja revestido de todas as
formalidades para seu reconhecimento como unidade familiar".5
Por outro lado, deverá
ser considerado o grau de informação que a pessoa presta, ao tempo da
constituição das garantias, sobre o seu estado civil, a fim de
determinar a extensão da sua responsabilidade: "Rejeitada a alegação
de nulidade da fiança face à ausência de outorga uxória. Ônus da prova.
Caso concreto. Tendo o fiador se declarado como divorciado quando da
assinatura do contrato de locação, embora vivesse ele em união estável,
não sendo tal situação de conhecimento da locadora, é de ser considerada
válida a fiança prestada".6
Separação obrigatória de bens na União Estável de maior de 70 anos
Outro aspecto do
mencionado art. 1.275, tratado recentemente pelo STJ, diz respeito à
união estável quando um dos companheiros já possua idade superior a 70
anos e a aplicação ou não do regime de separação obrigatória de bens.
É válido lembrar que o
direito de família brasileiro estabeleceu as seguintes possibilidades de
regime de comunicação dos bens: comunhão parcial, comunhão universal,
separação obrigatória, separação voluntária e, ainda, participação final
nos aquestos (bens adquiridos na vigência do casamento).
A obrigatoriedade da separação de bens no casamento já era prevista no CC de 19167, para pessoas maiores de sessenta anos, sendo tratada pelo art. 1.641 do CC atual. Com a alteração feita pela lei 12.344 de dezembro de 2010, o regime da separação de bens passou a ser obrigatório no casamento de pessoa maior de 70 anos.
No REsp 646.259,
julgado meses antes da promulgação da referida lei 12.344/10, o
ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso, entendeu que, para a
união estável, à semelhança do que ocorre com o casamento, é obrigatório
o regime de separação de bens de companheiro com idade superior a
sessenta anos.
No caso em si, a
discussão se pautou sobre o conflito de entendimentos entre as
instâncias sobre como deveria ser tratada a matéria. Com o falecimento
de um dos companheiros (na época, com 64 anos e estando vigente o
CC/16), o juiz determinou a separação obrigatória de bens e concedeu à
companheira apenas a partilha dos bens adquiridos durante a união
estável, mediante comprovação do esforço comum.
Inconformada com a
decisão, ela interpôs recurso no TJ/RS, que reformou a decisão afirmando
que não se aplica à união estável o regime da separação obrigatória de
bens "porque descabe a aplicação analógica de normas restritivas de
direitos ou excepcionantes. E, ainda que se entendesse aplicável ao
caso o regime da separação legal de bens, forçosa seria a aplicação da
súmula 3778 do Supremo Tribunal Federal (STF), que igualmente
contempla a presunção do esforço comum na aquisição do patrimônio
amealhado na constância da união".
O espólio do companheiro
apresentou recurso especial no STJ, argumentando que se aplicaria às
uniões estáveis o regime obrigatório de separação de bens, quando um dos
conviventes fosse sexagenário, como era o caso.
A partir daí, a discussão
entre os ministros do STJ se deu a respeito dos limites de extensão do
instituto da união estável em comparação ao casamento, pois, se
argumentou que, caso se optasse pela liberdade de escolha do regime de
bens para os sexagenários, seriam estabelecidos mais direitos aos
conviventes do que aos cônjuges (referindo-se à união estável como um
"instituto menor" que o casamento); e, ainda, que negar-se a
interpretação jurisprudencial no mesmo padrão do legalmente estabelecido
ao instituto do casamento seria inverter a hierarquia
constitucionalmente sufragada.
Desse modo, concluíram os
ministros que deve se ter em favor das uniões estáveis envolvendo
sexagenários (e agora, septuagenários, por força da alteração da lei
12.344!), a mesma previsão de regime de separação de bens obrigatória
que a lei determina para os casados, em igual situação.
O entendimento dos
ministros do STJ, nesse sentido, tem o intuito de evitar interpretações
discrepantes da legislação que, em sentido contrário ao adotado pela
Corte, estimularia a união estável entre um casal formado, por exemplo,
por um homem com idade acima de 70 anos e uma jovem de 25, para burlarem
o regime da separação obrigatória previsto para o casamento na mesma
situação.
Além disso, em que pese a
tendência da defesa das pluralidades familiares, o ordenamento jurídico
nacional ainda protege com maior empenho o instituto do casamento, e
uma opção de escolha diferenciada de regime de bens para companheiros
nessa circunstância poderia desestimulá-lo.
Nesse sentido, vale apontar trecho do entendimento do ministro Massami Uyeda, ao julgar o REsp 1.090.722, "se
para o casamento, que é o modo tradicional, solene, formal e jurídico
de constituir uma família, há a limitação legal, esta consistente na
imposição do regime da separação de bens para o indivíduo sexagenário
que pretende contrair núpcias, com muito mais razão tal regramento deve
ser estendido à união estável, que consubstancia-se em forma de
constituição de família legal e constitucionalmente protegida, mas que
carece das formalidades legais e do imediato reconhecimento da família
pela sociedade".
No entanto, de acordo com
Uyeda, é preciso ressaltar que a aplicação do regime de separação
obrigatória de bens precisa ser flexibilizado com o disposto na súmula
377/STF, "pois os bens adquiridos na constância, no caso, da união
estável, devem comunicar-se, independente da prova de que tais bens são
provenientes do esforço comum, já que a solidariedade, inerente à vida
comum do casal, por si só, é fator contributivo para a aquisição dos
frutos na constância de tal convivência".
A interpretação aplicada
por Uyeda foi firmada anteriormente na 3ª turma pelo ministro Carlos
Alberto Menezes Direito, no julgamento do REsp 736.627, no qual o ministro apontou que a evolução da jurisprudência, nesse sentido, tem se operado, porque "o
que vale é a vida em comum, não sendo significativo avaliar a
contribuição financeira, mas, sim, a participação direta e indireta
representada pela solidariedade que deve unir o casal, medida pela
comunhão da vida, na presença em todos os momentos da convivência, base
da família, fonte do êxito pessoal e profissional de seus membros".
No mesmo sentido, em outro recente acórdão envolvendo sexagenário (REsp 1.171.820),
a ministra Nancy Andrighi considerou presumido o esforço comum para a
aquisição do patrimônio do casal durante a união estável, declarando não
haver espaço para as afirmações do companheiro que alegava que a
companheira não teria contribuído para a constituição do patrimônio a
ser partilhado.
Para a ministra, "do
ponto de vista prático, para efeitos patrimoniais, não há diferença no
que se refere à partilha dos bens com base no regime da comunhão
parcial ou no da separação legal contemporizado pela súmula 377 do STF".
Por fim, quanto ao
alcance da cautela da separação obrigatória de bens, não resta dúvida de
que ela tem por objetivo, “proteger o patrimônio anterior” dos
companheiros, "não abrangendo, portanto, aquele obtido a partir da união"
(nos termos da manifestação do ministro Menezes Direito, no REsp
736.627), de modo, assim, a serem compartilhados entre os conviventes,
os bens adquiridos na vigência da união estável (como são os aquestos,
no casamento), inclusive pelos maiores de 70 anos.
__________
1 § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
2 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
3 http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=110503
4 Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
5 (TJRJ, ACi nº 2006.001.46102, 12ª CC, Rel. Des. Marco Antonio Ibrahim, j. 3/5/2007)
6 (TJRS, ACi nº 70019693167, 15ª CC, Rel. Des. Otávio Augusto de Freitas Barcellos, j. 10/10/2007)
7 artigo 258, parágrafo único, inciso II, CC/16
8 No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento
__________
1 § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
2 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
3 http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=110503
4 Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
5 (TJRJ, ACi nº 2006.001.46102, 12ª CC, Rel. Des. Marco Antonio Ibrahim, j. 3/5/2007)
6 (TJRS, ACi nº 70019693167, 15ª CC, Rel. Des. Otávio Augusto de Freitas Barcellos, j. 10/10/2007)
7 artigo 258, parágrafo único, inciso II, CC/16
8 No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento
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