Análise Constitucional Romper (pre)conceitos sobre jurisdição constitucional, por Carlos Bastide Horbach
“O controle de constitucionalidade no Brasil nasce com a República”.
“O Tribunal Constitucional exerce um papel contramajoritário”. “A
jurisdição constitucional é expressão da democracia”. “No debate sobre
quem deve ser o guarda da Constituição, Kelsen triunfou sobre Schmitt”.
As
frases que abrem esta coluna têm em comum pelo menos dois aspectos:
todas — com pequenas alterações de formulação — aparecem com frequência
em obras sobre jurisdição constitucional, sejam manuais de graduação ou
artigos em revistas científicas; e todas expressam, pelo menos, meias
verdades.
Esses são apenas alguns dos lugares comuns impensada e
amplamente repetidos, que formam o conjunto de informações básicas a
partir do qual os alunos de graduação são chamados a meditar sobre a
jurisprudência constitucional.
Como ressaltado por José Levi Mello
do Amaral Júnior, na primeira das colunas quinzenais publicadas neste
espaço da ConJur, as reflexões a serem aqui desenvolvidas dizem com os
temas tratados em sala de aula, na disciplina optativa “Análise de
Jurisprudência Constitucional”, ministrada na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo pelo próprio professor Levi – no curso noturno
– e por mim, aos alunos do diurno. Trata-se, como bem destacado, de um
verdadeiro “diário de classe”.[1]
Nesse
contexto, outro não poderia ser o meu primeiro registro nesta coluna
que a síntese das questões que — suscitadas por textos de Gilmar Mendes,
Jeremy Waldron, Robert Dahl, Carl Schmitt e Hans Kelsen — fizeram com
que os alunos colocassem em xeque alguns dos clichês antes mencionados,
permitindo que se despissem, num primeiro momento, de (pre)conceitos
sobre a jurisdição constitucional e possibilitando que estejam
habilitados a fazer, posteriormente, uma análise da produção
jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal qualitativamente
diferenciada. Serão a seguir, pois, examinadas as duas primeiras
afirmações que abrem este texto, deixando-se para minha segunda
manifestação neste espaço, no próximo mês, as duas últimas.
Inicialmente, por meio da leitura de Gilmar Ferreira Mendes,[2]
foi possível determinar as diferentes fases de evolução do controle de
constitucionalidade, registrando o autor – como sói acontecer com nossos
constitucionalistas — a inexpressividade dessa atividade jurídica no
Império do Brasil.[3]
Entretanto, se é correto afirmar que não havia no Império um controle judicial
da constitucionalidade das leis, não menos correto é assentar que se
desenvolveu, durante o regime de 1824, um interessante sistema de
controle jurídico-político de constitucionalidade, por meio do qual
várias leis foram consideradas inconstitucionais e que propiciou, até
mesmo, a formulação de técnicas decisórias assemelhadas à moderna
interpretação conforme à Constituição.
Tal modelo é resgatado por
José Reinaldo de Lima Lopes, na cuidadosa pesquisa que fez sobre o
Conselho de Estado no Segundo Império,[4] cabendo aqui simplesmente descrevê-lo em linhas gerais.
Com
o advento do Ato Adicional de 1834, as Assembleias Legislativas das
Províncias tiveram um considerável incremento em suas competências,
assumindo definitivamente poder normativo próprio para dispor sobre
assuntos de seu peculiar interesse.[5]
Assim, foi reconhecida no Brasil – que continuava a ser um Estado
unitário – a existência de duas ordens jurídicas distintas, uma geral e
outra local, num movimento muito próximo ao do federalismo moderno. E
tal qual ocorre nos Estados federais, tornou-se comum no Império a
disputa acerca da competência para legislar sobre esta ou aquela
matéria, sendo necessária a instituição de uma instância para dirimir
esses conflitos.
Nesse contexto, a Seção de Justiça do Conselho de
Estado passou a analisar esses conflitos de competência entre as ordens
jurídicas geral e local, emitindo pareceres sobre a
constitucionalidade, ou não, das leis provinciais; pareceres estes que,
por meio dos Ministros de Estado, ensejavam a apresentação de proposição
à Assembleia Geral do Império, à qual competia editar uma lei anulando o
texto provincial.
Evidente que não se está diante de um controle judicial
da constitucionalidade das leis, pois não era o Poder Judicial do
Império o responsável por seu exercício. Mas é inegável a existência
desse modelo, que congregava – como é comum a alguns sistemas modernos –
um juízo jurídico acerca da regularidade constitucional das leis
provinciais, exercido pela Seção de Justiça, com um juízo político,
representado pelas atuações dos Ministros e da Assembleia Geral. E é
igualmente inegável a eficácia desse sistema, ainda que criticado pelos
defensores de uma maior centralização política no Império.[6]
Por
outro lado, ao Conselho de Estado ainda respondia a consultas dos
Juízes acerca da correta interpretação das leis do Império ou mesmo de
autoridades que buscavam saber qual o real sentido das normas, em
especial frente ao texto constitucional.[7]
Exemplo do exercício dessa competência se tem na Resolução de 16 de
dezembro de 1846, da Seção de Justiça, por meio do qual o Conselho
interpreta o Código de Processo Criminal à luz da Constituição, fixando o
sentido constitucionalmente adequado da norma infraconstitucional.[8]
Não se pode deixar de reconhecer que desenvolvia o Conselho de Estado
verdadeira interpretação conforme à Constituição, assegurando a
supremacia desta ante a legislação ordinária.[9]
Assim,
há na experiência jurídica do Império uma original e pouquíssimo
estudada jurisprudência constitucional, cuja análise pode revelar muitos
aspectos interessantes do nascimento de um constitucionalismo com
soluções institucionais genuinamente brasileiras. Soluções
institucionais essas ainda não influenciadas pela matriz
norte-americana, que viria a fundamentar o controle judicial de
constitucionalidade das leis com o advento da República.[10]
Se
a primeira reflexão desenvolvida neste texto permite lançar novas luzes
sobre a defesa da Constituição no Brasil imperial, a questão a seguir
examinada propicia um questionamento acerca do papel atual do Supremo
Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional.
Cada
vez é mais comum, nas decisões da Suprema Corte brasileira, a afirmação
de sua função contramajoritária, como elemento legitimador de certas
decisões consideradas “polêmicas”. Essa linha de fundamentação pode ser
verificada, por exemplo, no julgamento do RE 477.554 — AgR, rel. min.
Celso de Mello, DJe 26.08.2011, relacionado com uniões homoafetivas.[11]
Essa
argumentação, como reconhecido em diferentes precedentes do próprio
STF, não é original, estando — há muito — presente nas decisões dos
tribunais constitucionais europeus e da Suprema Corte norte-americana. E
é exatamente sobre a natureza contramajoritária das decisões da Suprema
Corte dos Estados Unidos o artigo Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, de Robert A. Dahl, datado de 1957.[12]
Dahl
inicialmente questiona se é possível identificar o que chama de
“maioria legiferante” — a soma das maiorias das duas casas do Congresso
com a vontade política do Presidente, por meio da sanção — com a
“maioria nacional”, ou seja, a maioria da população norte-americana.
Mesmo reconhecendo que essa identidade somente pode ser estabelecida a
partir de bases altamente questionáveis, o autor parte dessa premissa
para testar a hipótese de que a Suprema Corte é o escudo das minorias
contra as maiorias nacionais.[13]
Em
seguida, Dahl afirma que seria ingênuo pensar na Suprema Corte
desempenhando o papel de Galahad, combatendo solitariamente em favor dos
fracos e indefesos; e conclui que, na realidade, “as visões políticas
dominantes na Corte nunca são, por muito tempo, desalinhadas das visões
políticas dominantes entre as maiorias legiferantes dos Estados Unidos.
Em consequência, seria sumamente irreal supor que a Corte ficaria, por
mais do que poucos anos no máximo, contra qualquer uma das grandes
opções defendidas pela maioria legiferante”.[14] Afinal, os presidentes geralmente indicam, em seus mandatos, alguns dos juízes do Tribunal[15]
— e “presidentes não são famosos por indicar juízes hostis a suas
próprias visões sobre políticas públicas” –, além do que seria difícil
assegurar a confirmação de um indicado cuja posição em questões
essenciais fosse flagrantemente contrária àquela dominante na maioria do
Senado.
Na prática, verificando todos os casos em que — até 1957 —
teria sido exercida essa função contramajoritária, Dahl conclui que
pouquíssimas são as decisões da Corte que podem ser interpretadas a
partir do referencial “maioria versus minoria”, o que
demonstraria que o Tribunal não difere, em regra, das orientações da
maioria legiferante. Na verdade, em muitas dessas decisões “polêmicas”, a
Suprema Corte atuaria em campos nos quais se verifica uma instabilidade
das maiorias legiferantes, mas mesmo nessas situações a legitimidade de
suas posturas somente prevalece quando se conforma e reforça padrões
implícitos ou explícitos amplamente aceitos pela liderança política; o
que é exemplificado pelas decisões sobre a integração racial nas escolas
norte-americanas.[16]
As
reflexões de Dahl, ainda que formuladas em contexto espacial e temporal
diverso, podem servir de referência no exame das ditas decisões
contramajoritárias do STF. Até que ponto essas decisões representam, de
fato, a defesa da minoria contra a maioria? Ou representam o triunfo da
maioria sobre minorias que conseguem, por meio de diferentes
instrumentos institucionais ou de pressão, barrar sua vontade? Até que
ponto a Suprema Corte brasileira não funciona, na linha preconizada por
Dahl, como força auxiliar de maiorias instáveis?
Essas são algumas
das perguntas que não podem deixar de estar presentes na análise que se
faz da jurisprudência constitucional, para dela retirar os verdadeiros
sentidos e motivações; sob pena de se reduzir complexas relações de
poder a equações repletas de idealismo, mas incapazes de explicar a Realpolitik.
[1]
Os autores e as obras aqui citadas são, exclusivamente, aqueles que
foram lidos com os alunos da disciplina “Análise de jurisprudência
constitucional” ou os que foram mencionados quando das discussões
levadas a cabo em sala de aula.
[2] Gilmar Ferreira Mendes. “Evolução do direito constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei”. Revista de Informação Legislativa, ano 32, n. 126, abr/jun 1995, p. 87-102.
[3]
Mendes registra, logo no início de seu texto, que a “Constituição de
1824 não contemplava qualquer sistema assemelhado aos modelos hodiernos
de controle de constitucionalidade” (p. 87); para concluir, com as
seguintes palavras, a análise que faz do controle no texto
constitucional imperial: “não havia lugar, pois, nesse sistema, para o
mais incipiente modelo de controle judicial de constitucionalidade” (p.
88). Mais peremptório, sobre esse assunto, é, por exemplo, Luís Roberto
Barroso, para quem: “ausente do regime da Constituição imperial de 1824,
o controle de constitucionalidade foi introduzido no Brasil com a
República” (cf. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 57).
[4] O Oráculo de Delfos.
O Conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
198 e seguintes. O autor ainda ressalta a função de controle preventivo
de constitucionalidade, igualmente exercido pela Conselho de Estado ao
analisar os projetos de lei (cf. p. 161).
[5]
Essa expressão – “peculiar interesse” – constante do Ato Adicional foi
incorporada ao constitucionalismo brasileiro como um referencial
normativo na definição das competências legislativas dos entes locais, o
que se projeta atualmente no “interesse local”, de que trata o art. 30
da Constituição de 1988. Aliás, Pimenta Bueno já associava o “peculiar
interesse” ao “interesse local”: “(...) observamos que os interesses
provinciais ou locais, que não afetam imediatamente as relações
nacionais, devem certamente ser deixados às provinciais ou localidades”
(cf. Direito Público Brazileiro, p. 162).
[6] Como registra José Reinaldo de Lima Lopes, citando trecho da obra Estudos práticos sobre a administração das províncias no Brasil, do Visconde do Uruguai, um dos grandes juristas do Império – formado no Largo de São Francisco – e Conselheiro de Estado.
[7]
Sobre essa competência, assim se manifesta José Reinaldo de Lima Lopes:
“Esta lista de competências complica-se ligeiramente na Seção de
Justiça porque por ela passaram algumas das questões mais candentes do
debate jurídico e político do Império por um mecanismo não previsto no
regulamento do Conselho: trata-se da resolução de dúvidas surgidas na
aplicação da lei. As dúvidas provinham de órgãos do Executivo e dos
órgãos do Judiciário. A prática mostra que se adotou um sistema parecido
ao sistema do conflito de jurisdição ou de competência. O presidente da
província tomava conhecimento da dúvida do juiz, promotor, ou outro
oficial de justiça, resolvia-a (provisoriamente) e encaminhava o caso do
Conselho de Estado, que fixava em última instância o entendimento
devido. Com o tempo criou-se um verdadeiro hábito de consultas ao
Conselho (via presidente de província e ministro da justiça), diversas
vezes repreendidos os consulentes por abdicarem de seu poder e dever de
interpretar a lei no caso concreto. Foram encontradas 378 consultas em
que se pedia a resolução de dúvidas na aplicação da lei ou do
regulamento. Destas, 185 procederam de juízes e/ou tribunais
judiciários, e 193 de autoridades administrativas. É um número
significativo que ocupa um terço de todas as consultas publicadas” (cf. O Oráculo de Delfos, p. 165).
[8] Cf. Consultas da Seção da Justiça do Conselho de Estado,
volume I, anos de 1842 a 1846, Rio de Janeiro: Tipografia Nacional,
1877, p. 219-221. No caso, o Vice-Presidente da Província da Bahia
indagou ao Conselho se era correta a interpretação dada pelos juízes
locais de que a pronúncia suspenderia totalmente os direitos políticos,
impedindo que os empregados públicos desenvolvessem suas funções. Ante
esse quadro, a Seção de Justiça define qual a interpretação que deve ser
dada ao Código de Processo Criminal à luz do disposto na Constituição
de 1824.
[9] As atas da Seção de Justiça do Conselho de Estado estão digitalizadas e disponíveis no site da Brasiliana USP: http://www.brasiliana.usp.br/
[10] Sobre essas influências estrangeiras, ver o texto publicado nesta ConJur: Referências estrangeiras são constante no STF.
[11] A ementa do julgado desde logo deixa claro o aspecto central dessa função contramajoritária:
“A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEÇÃO DAS MINORIAS.
- A proteção das minorias e dos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito.
- Incumbe, por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guarda da Constituição (o que lhe confere “o monopólio da última palavra” em matéria de interpretação constitucional), desempenhar função contramajoritária, em ordem a dispensar efetiva proteção às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria, eis que ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado. Precedentes. Doutrina” (destaques no original).
[13] Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, p. 284.
[14] Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, p. 285, tradução livre.
[15]
Para desde logo estabelecer um paralelo com o Brasil, deve-se lembrar
que a atual Presidente da República já indicou quatro ministros do
Supremo em seu mandato, enquanto seu antecessor teve a oportunidade de
nomear oito ministros. Com exceção de Fernando Henrique Cardoso (três
ministros) e Itamar Franco (um ministro), todos os presidentes
brasileiros desde Humberto Castelo Branco nomearam no mínimo quatro
ministros para a Suprema Corte (cf. http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp?periodo=stf&tipo=quadro).
[16] Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker,
p. 294. De fato, como bem demonstra Robert A. Caro, no terceiro volume
de sua monumental biografia de Lyndon Johnson, os projetos de lei
tendentes a abolir a segregação racial nos Estados Unidos encontravam
barreira não na vontade da maioria legiferante, mas sim no modo como a
minoria formada pelos Senadores dos 11 antigos Estados confederados
exerciam suas manobras regimentais na câmara alta americana, em especial
por meio do instituto, até hoje polêmico, do filibuster (cf. Master of the Senate, New York: Vintage Books, 2003, p. 693 e seguintes).
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