A resistência de alguns Estados à realização de concurso público para delegação da função notarial e registral, por Vitor Frederico Kümpel
Muito tem se
discutido sobre a eficácia das normas e disposições que regem tanto a
atividade notarial e registral como os meios de delegação de tais
funções. Sempre gerou polêmica o disposto no artigo 236, § 3º, inclusive
no que toca o período máximo de vacância, sem abertura de concurso, por
até 6 meses.
O exercício da
atividade dos notários e registradores não tem origem muito clara na
história. No Brasil não existe um estudo aprofundado sobre a origem
histórica da atividade notarial e registral, bem como a forma de
delegação advinda de nossas raízes lusitanas.
Sabe-se, no
entanto, que, desde os primórdios do que se denomina "sistema
cartorial", a atividade era atribuída ao Estado por meio das capitanias
hereditárias, remanescendo o governo responsável pela manutenção desses
serviços1.
Pouco a pouco, de forma difusa, foram surgindo normas que buscavam
regulamentar as diversas funções sem se preocupar em sistematizar as
várias modalidades de serventias (RCPN, RI, RTD, Tabelionato de Notas,
Tabelionato de Protesto) nem ao menos legitimar a forma de delegação.
Segundo Celso
Bastos, foi em 1820 que as serventias se consolidaram como órgão estatal
de titularidade concedida de forma vitalícia a um particular2.
Tal entendimento tornou-se norma constitucional com a redação do
disposto no art. 187 da Constituição Federal de 1946. Mais tarde, em
1969 a Emenda Constitucional de nº 1 tirou o caráter de prestação de
serviços da atividade e tornou-a diretamente regulada pelo Estado, ainda
que sujeita à normatização por Lei complementar. A dispensa da Lei
complementar para determinar os parâmetros e definir as normas que iriam
reger a atividade notarial e registral sobreveio com a Emenda
Constitucional nº 22 de 1982.
Contudo, a
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 236 acabou por definir,
novamente, a atividade notarial e registral como sendo púbica porém
prestada em caráter privado, tendo, portanto natureza "sui generis”
trazendo grande confusão entre os administrativistas que procuravam
elencar a atividade como “de particular em colaboração com o poder
público".
O art. 236 da
Constituição Federal, além de determinar que as serventias exercem
atividade pública em caráter privado delegou à Lei Federal (Lei
8.935/94) a competência de disciplinar a atividade e fixar a
responsabilidade, estabelecendo ainda, após muita controvérsia, que
compete ao Poder Judiciário dos estados a regulação e a fiscalização das
diversas delegações.
É bom reparar que toda
essa normatização constitucional está presente no Título IX "Das
disposições constitucionais gerais", porque o legislador constitucional
não encontrou um capítulo melhor para arrolar a atividade. Como já dito,
o § 3º procurou definir a forma de legitimidade para o exercício da
atividade: concurso público, tanto para o ingresso por provimento quanto
para ingresso por remoção, lembrando sempre que a atividade é função,
portanto nunca geradora de cargo. Muito se pretendeu, durante esse
período (1988 até hoje), legitimar os atuais interinos por meio da PEC3 que iria suprimir concursos, porém, para a felicidade geral (menos dos próprios interinos), jamais foi aprovada.
Não obstante o
texto constitucional seja de clareza meridiana ao determinar que cada
Estado da federação, por meio do Poder Judiciário, tenha a incumbência
de realizar concurso a cada 6 meses, muito se discutiu nesses anos todos
sobre a inefetividade do prazo semestral do concurso bem como sobre a
possibilidade de, nos concursos de remoção, ser realizado apenas o exame
de títulos.
Como já dito
acima, por mais incrível que possa parecer, após 25 de vigência
constitucional, por força da incidência de um § 3º que em nenhum momento
exigiu regulamentação por lei, só o Estado de São Paulo está indo para o
seu nono concurso. Muitos estados da federação ainda não realizaram
nenhum concurso público, ou realizaram apenas um, o que demonstra a
resistência corporativa na realização do concurso, prova disso é a
insistência para que a remoção seja apenas decorrente da aferição de
títulos.
A lei previu que não
poderia destituir todos os titulares das serventias e renomear novos
titulares a partir de concursos. Por este motivo é que o art. 504
da lei 8.935 de 1994 prevê que, apenas uma vez vacantes, os serviços
notariais e de registro estatizados passarão automaticamente a estar
submetidos ao regime da própria Lei 8.935/94. É bom mencionar que, sob o
texto constitucional 17/695, já havia sido garantido direito adquirido a muitos titulares que não haviam prestado concurso nenhum.
Por força de um
continuísmo histórico, quase unanimidade dos Estados retardou a
realização de concurso ou realizou apenas um concurso ou mesmo nunca os
realizou. Fato que o número de concursos chega a ser insignificante
quando comparado ao número de anos (25) de vigência da Lei e quando
considerada a obrigação da serventia não ficar vaga por mais de 6 meses.
As serventias continuaram, para esses Estados, como verdadeiras
capitanias hereditárias (transmitidas de pai para filho) e continuaram a
honrar as "tradições" luso-cartoriais.
Todos esse estado
de coisas obrigou o Conselho Nacional de Justiça a editar a Resolução
81, em 9 de junho de 2009. Assim, 21 anos após a vigência
constitucional, a foi a Resolução 81 que passou a regular o modelo de
concursos para o Brasil todo, nos moldes desenvolvidos por São Paulo
desde 1999. Vale lembrar que o CNJ tem controlado não só a realização
dos concursos, mas a maneira como as provas têm sido desenvolvidas pelos
Estados. Tudo na busca da moralidade e eficiência dos referidos
concursos.
É bom citar como exemplo o Procedimento de Controle Administrativo decidido pelo Ministro Joaquim Falcão6
sobre uma serventia em Goiás. Trata-se de um caso em que houve remoção
de um Oficial de serventia extrajudicial por decreto judicial e o voto
do Ministro reitera a "necessidade inafastável, conforme determinação
constitucional, de realização de concurso público para provimento de
serventias extrajudiciais após 1988, para ingresso ou remoção",
determinando o retorno do Oficial para a última serventia que havia
assumido de acordo com a norma na época vigente.
Ainda como
exemplo, Goiás é um dos Estados que mais demonstra resistência para
realização de concursos. Os primeiros concursos do Estado referido para o
exercício da função notarial e de registro são datados de 2006, ou
seja, mais de 15 anos depois da promulgação da Constituição. Além da
demora em realizar concursos, há ainda a natural dificuldade de prover
serventias remotas e deficitárias.
É bom lembrar
nesse ponto que é obrigação do estado federativo, na figura do Poder
Judiciário e por meio de lei de iniciativa deste mesmo Poder,
reorganizar a atividade notarial e registral e unificar serventias
deficitárias com as não deficitárias para gerar interesse aos candidatos
pelo concurso e, por via de consequência, prestar um serviço de boa
qualidade.
Outro estado que
demonstrou resistência ao dispositivo constitucional aqui estudado foi o
da Bahia. Apenas agora, em 2013, a Bahia realiza o seu primeiro
concurso para delegação da função notarial e de registro. É bom lembrar
que as serventias eram todas estatizadas descumprindo mandamento
constitucional por 25 anos. Os efeitos do concurso são de melhorar a
qualidade dos serviços e desonerar o Estado.
Como já dito, por
incrível que pareça passados 25 anos de vigência e eficácia do texto
constitucional são raros os Estados que têm realizado os concursos pelo
menos nos moldes da resolução 81 do CNJ, observando o prazo de um ano
estabelecido para iniciar e findar o concurso.
A boa notícia é que o
Ministro Francisco Falcão, Corregedor Nacional de Justiça, exigiu a
abertura de concurso no prazo de três meses7
e, recentemente, deu um ultimato para que os últimos estados da
federação que não abriram concurso procedam a abertura em 30 dias8.
Deste modo, está
ocorrendo finalmente uma uniformização no que toca à efetividade
constitucional legalidade e moralidade e as serventias extrajudiciais
aos poucos, por meio de profissionais extremamente tarimbados estão
cumprindo o papel social que a sociedade dela reclama.
__________
1Artigo disponível: (Clique aqui)
3PEC 471/2005 "PEC dos cartórios".
4Lei 8.935/94, art. 50: "Em caso de vacância, os serviços notariais e de registro estatizados passarão automaticamente ao regime desta lei"
5Emenda Constitucional 17/69, art. 153: "A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (..) § 3º A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
6Procedimento
de Controle Administrativo 20091000011895. Requerente: José Ferreira de
Paiva. Requerido: Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
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