Na coluna desta semana, gostaria de dar início a um debate sobre princípios jurídicos. Dar início
porque, evidentemente, esse é daqueles temas sobre os quais devemos
tratar compassadamente. Há temas de que tratamos em uma primeira
conversa, mas se sabe que a ele não podemos voltar, senão depois de boa
meditação. Princípios jurídicos, a meu ver, é tema que se insere nesse
rol.
Minha intenção, também, é dar início a um debate.
Não espero que aqueles que se afeiçoam ou que são contrários ao que eu
disser nesta e nas próximas colunas aqui compareçam, para confirmar ou
infirmar algo. Sendo honesto com o leitor, uso a expressão “debate”,
aqui, porque considero que o estudo dos princípios é aporético. Considero imprescindível tratar do tema sob variadas perspectivas.
Quando, pela primeira vez, me coloquei a estudar o tema, fiz referência a um sem-número de opiniões.[1]
Não tinha a pretensão, à época, de apresentar uma “teoria dos
princípios”. Aliás, não tenho essa aspiração nem mesmo hoje. Afinal, não
me considero “teórico” ou “filósofo” do direito. Sou professor e
advogado, estudioso e aprendiz do Direito. Sou, sobretudo, preocupado
com o que tem sido feito com os princípios e em nome dos princípios, entre nós.
Já que minha preocupação gira em torno do que tem sido feito, partirei de problemas,[2] pois.
A
primeira questão que logo se coloca diz respeito ao seguinte: estamos
falando, eu e você, do mesmo assunto? Quero dizer, com isso, que quando
uso a palavra “princípio”, pode ser que eu esteja falando de algo
diferente do que você esteja esperando que eu fale. Posso estar me
referindo, por exemplo, a um tipo especial de norma que tem estrutura
de princípio — desse modo, por exemplo, se costuma referir à teoria de
Robert Alexy. Sendo assim, aludo a um direito fundamental como a um
princípio, mas — note-se bem! — não se trata de um “princípio jurídico”,
mas de um direito que, confrontado com outro de semelhante estatura,
com o qual entra em colisão, pode ou não ceder, conforme o caso. Assim,
costuma-se dizer que a liberdade de expressão pode ceder em relação à
proteção à intimidade, ou vice-versa. Afirma-se, seguindo essa linha,
que se está diante de conflito de princípios, que deve ser resolvido de
modo diferente do de um conflito de regras... Mas, é correto dizer que a
liberdade de expressão é um princípio, que poderíamos chamar de
“princípio da liberdade de expressão”?
Que dizer do princípio
da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição)?
De difícil definição, esse princípio merece um cuidado especial, pois é
a base dos direitos fundamentais. Ganhou destaque com a Constituição de
1998, mas só recentemente
tem servido, de modo significativo, de base às decisões proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal — o mesmo sucedendo com o Superior Tribunal de
Justiça.
O fato é que, em nome do princípio da dignidade da
pessoa humana, tem-se decidido sobre os mais variados temas, e em
qualquer sentido possível. Invoca-se a dignidade da pessoa humana para
se justificar qualquer tomada de posição, como se o argumento
funcionasse como uma licença para se decidir livremente. Algo parecido
sucede com o “princípio da função social da empresa”, que vem se
tornando lugar-comum e sendo usado para se decidir em qualquer sentido.
Chama-se
de princípio, da mesma forma, a proporcionalidade. Mas, também aqui,
parece que se usa a expressão “princípio” com outro significado.
Proporcionalidade é considerada, por muitos, como critério de sopesamento entre direitos (que teriam estrutura de princípios). Logo, não é princípio, em nenhum dos sentidos antes mencionados.
Algo diferente se passa, ainda, quando alguém se refere ao princípio da nulla executio sine titulo.
Aqui não há um direito a ser “sopesado” em relação a outro. Quando se
afirma que o ordenamento processual civil observa tal princípio, isso
significa que a tutela executiva é condicionada à apresentação de um
título, que é, como se diz em conhecida fórmula, condição estabelecida
definida lei como necessária e suficiente para a
execução. Revela-se, assim, uma opção do legislador, que restringe os
poderes do magistrado, em relação aos fatos que podem autorizar a
realização de medidas executivas. Algo parecido se pode dizer, por
exemplo, do princípio da taxatividade dos recursos, da unicidade (ou
unirrecorribilidade) recursal etc. Assim considerados, os princípios
revelam características de um dado campo do direito – algo que Boulanger
chamou de “princípios de organização técnica”. Sabendo que um
determinado princípio impera, e entendendo-se seu significado, pode-se
compreender o funcionamento do respectivo sistema.
Em outros
casos, chamamos de princípios algo que não se insere em nada do que se
disse antes. Pense-se, por exemplo, no princípio do contraditório. É
certo que o contraditório encontra-se no rol de direitos fundamentais
(artigo 5º, inciso LV) e saber que ele informa o sistema permite ao
intérprete extrair uma série importantíssima de consequências —
pense-se, por exemplo, em tudo o que se pode dizer a respeito de temas
como direito à influência, proibição de prolação de decisão judicial
“com surpresa” para a parte etc. Mas é fácil entrever que do
contraditório extrai-se, sobretudo, uma regra: à parte deve ser dada
ciência e a parte deve ser ouvida. Pode haver alguma discrepância sobre o
modo ou o tempo em que tal contraditório deve ocorrer. Não se
desconhece, porém, que deve ocorrer, sob pena de não se reputar válido o que suceder, no processo.
Também
é comumente referida como princípio a boa-fé objetiva. O Código Civil
brasileiro a ela se refere no artigo 113, em relação à interpretação dos
contratos, e, no artigo 422, quanto à imposição de deveres às
partes, “na conclusão do contrato, como em sua execução”. O espectro de
abrangência da boa fé objetiva, entre nós, é amplíssimo. A partir do
ideal de conduta conforme a boa-fé, podem-se deduzir os mais
variados comportamentos que a contrariam, e que, assim sendo, devem ser
reprimidos. Não se admite, por exemplo, comportamento contraditório (venire contra factum proprium).
Mas costuma-se dizer que a boa-fé objetiva atua também como limitação
ao exercício de direitos, o que nos remete à figura prevista no artigo
187 do Código Civil. No ponto, o Direito brasileiro seguiu critério
objetivo: mais importante que a intenção do sujeito é a constatação de
que o direito foi exercido de modo contrário à sua finalidade econômica
ou social.[3]
Note-se que, em casos como o da boa-fé objetiva, talvez falemos de “princípio” em razão de seu alto grau de generalidade. Mas,
ao menos na hipótese prevista no art. 187 do Código Civil, é de regra
que se trata. Algo parecido pode ser dito à respeito do dever de
cooperação, também muitas vezes chamado de princípio. Há que se
encontrar, tal como sucede com a boa-fé objetiva — que, penso, está na
base do dever de cooperação — o que disciplina a lei, a respeito. Por
exemplo, tem o executado faculdade ou dever de
cooperar, em relação à identificação de bens penhoráveis? A resposta a
essa pergunta deve ser extraída do que dispõem as regras processuais,
sobre o tema.
Por fim, há também a tendência de se chamar um valor não transposto para o Direito
de princípio. Não me refiro aos princípios oriundos do direito natural —
afinal, creio que pouco ou nada sobrou de direito natural que tenha
ficado fora do âmbito normativo. Aludo, aqui, por exemplo, a valores pessoais
do intérprete/aplicador do Direito. Embora essa postura nem sempre (ou
quase nunca) seja assumida, parece ser possível entrever que, entre nós,
ainda que de modo dissimulado, impera a ideia de que princípios são preferências pessoais. Também lidamos com os princípios como se fossem valores quando procuramos conhecer o ethos
de um grupo social, para, daí, definir, à luz dos valores supostamente
mais importantes numa comunidade, o que devemos entender, por exemplo,
por moralidade administrativa (artigo 37, caput, da
Constituição). A questão aqui, reside em saber se tais valores podem ser
levados em consideração (sejam ou não chamados de princípios), para se
resolver questões.
Apresentei alguns exemplos de fenômenos que
chamamos de princípios, mas que não pertencem, necessariamente, a uma
mesma categoria jurídica. Dependendo da perspectiva que se adote, alguns
sequer deveriam ser chamados de princípios. O que quero destacar, hoje,
é que dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, contraditório, nulla executio sine titulo...
etc. não pertencem a uma mesma categoria de “princípios”, e que nem
tudo – eu arriscaria dizer, praticamente nada — do que chamamos de
princípio acabará se sujeitando a um mesmo regime jurídico. Assim, por
exemplo, caso se aceite a tese de Robert Alexy — que, hoje, não desejo
discutir — não se permite “ponderar” entre “princípios” de categorias
distintas, apenas pelo fato de os chamarmos de “princípios”.
Minha
maior preocupação está na prática, que vem se tornando bastante
difundida, consistente em atribuir a algo a natureza de princípio para
ponderá-lo com outro (?) princípio. Segundo esse modo de proceder,
bastaria, no início de uma argumentação, chamar, v.g.,
preclusão de princípio, e, pronto!, isso autorizaria a “ponderação” do
“princípio da preclusão” com outros “princípios”... Essa é uma atitude
perigosa, pois pode ser usada como estratégia para se decidir
contrariamente ao Direito.
Essa será minha maior preocupação, nos textos dedicados à análise de problemas
referentes a princípios. Teremos, pois, que identificar se algo é
princípio, ou não; se as variadas figuras chamadas de princípios se
sujeitam a uma mesma disciplina; se o que se chama de princípio não
seria, na verdade, uma regra, ou um valor...
Não espere o eventual
leitor desta coluna, pois, uma “teoria dos princípios”. Mas, se
conseguirmos chamar a atenção para o fato de que, muitas vezes, regras
são “ponderadas” como se fossem princípios, e de que muitas vezes
chamamos de princípios são, na verdade, valores (pessoais, ou "captados"
dos anseios sociais...), já teremos dado um grande passo.
Até a próxima semana!
[1] Estudei o assunto para a defesa de minha tese de doutorado, intitulada Sobre os princípios fundamentais da tutela jurisdicional executiva – Uma nova abordagem,
que elaborei sob a orientação da Professora Teresa Arruda Alvim
Wambier. A tese foi defendida em 2001 e, depois, o trabalho foi
publicado pela Editora Revista dos Tribunais (Execução civil: teoria geral; princípios fundamentais, 2. ed., 2004).
[2]
Para Josef Esser, os princípios são descobertos e comprovados a partir
de uma problemática concreta, “de modo que é o problema, e não o
‘sistema’ em sentido racional, que constitui o centro do pensamento
jurídico” (Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado, p. 9).
[3]
Segundo o art. 187 do Código Civil, “comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. O
direito brasileiro assemelha-se ao português, que lhe serviu de
inspiração (cf. art. 334 do Código Civil português), adotando o critério
objetivo, funcional ou finalístico para que se possa aferir a
existência de exercício abusivo do direito.
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