Possibilidade de alegação em juízo do desequilíbrio econômico nos contratos particulares, por Flávia de Oliveira Machado

Os contratos, como já é sabido, têm papel relevante na Economia, sendo elemento essencial à garantia das transações, trazendo segurança jurídica às partes e mitigando os riscos decorrentes das obrigações assumidas pelos contratantes.
Desde o Estado Liberal no século XIX imperava de forma absoluta o postulado pacta sunt servanda, segundo o qual o contrato fazia lei entre as partes, devendo ser cumprido sem ressalvas1. Os particulares podiam contratar livremente, sem qualquer interferência pública nos direitos e obrigações reciprocamente assumidos por conta do ajuste ou mesmo do seu impacto na seara econômica ou social. Ainda, o contrato se revestia como se norma legal fosse, tangenciando a imutabilidade.
Segundo Maria Helena Diniz2, o pacta sunt servanda se justifica porque o contrato, uma vez celebrado livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo uma verdadeira norma de direito.
Entretanto, no curso da execução do contrato muitas vezes o cenário fático e econômico se alterava, gerando "situações injustas" e tornando desproporcional a prestação de uma parte perante a da outra naquela determinado instrumento, razão pela qual atualmente este princípio tem sido mitigado.
Dessa forma, a obrigatoriedade aos termos pactuados não é absoluta. Como bem explica Maria Helena Póvoas3, há que se respeitar a lei e, sobretudo, outros princípios que coexistem juntamente com as obrigações das partes, como o da boa-fé, o da legalidade, o da igualdade, entre tantos outros; afinal, os princípios gerais do Direito integram um sistema harmônico.
Referida mudança se dá por força da equivalência das prestações contratuais, ligada ao princípio da igualdade, que procura, dentre outras coisas, evitar a desproporcionalidade em prejuízo de um dos contratantes.
"a nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância"4. (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 3. ed. São Paulo : RT, 1991. p. 101)
Aqui nos deparamos com a expressão do Direito Canônico rebus sic stantibus, entendida como "permanecendo as coisas como estavam antes", ou seja, que nos pactos de execução continuada e cujas prestações se perpetuam no futuro deve-se manter a proporcionalidade entre elas de forma a não alterar esse equilíbrio existente quando da celebração do instrumento. Tal cláusula consagra a Teoria da Imprevisão.
A legislação brasileira, no intuito de solucionar essa questão, prevê em seu art. 478 do CC/02 que, em contratos a prazo ou duradouros, "se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato".
Observa-se assim que o legislador permite a resolução contratual quando um elemento inusitado e surpreendente afetar a execução do contrato, colocando em situação de extrema dificuldade um dos contratantes, isto é, ocasionando a excessiva onerosidade em sua prestação, como consagra o art. 317 do CC/02.
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Para fundamentar a revisão do contrato pela quebra do equilíbrio econômico a doutrina se socorre da chamada Teoria da Imprevisão, considerando os dois dispositivos acima citados (art. 478 e 317 do CC/02). E são os elementos trazidos pelo art. 478 do CC/02 o núcleo do desequilíbrio econômico superveniente no direito civil brasileiro.
Trazemos também o enunciado no. 176 do Conselho da Justiça Federal que diz:
176 – Art. 478: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.
Nos termos da legislação vigente e dos ensinamentos da renomada professora Maria Helena Diniz5, "o órgão judicante deverá, para lhe dar ganho de causa, apurar rigorosamente a ocorrência dos seguintes requisitos:
a) vigência de um contrato comutativo de execução continuada;
b) alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do benefício exagerado para o outro;
c) imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação, pois é necessário que as partes, quando celebram o contrato, não possam ter previsto esse evento anormal, isto é, que está fora do curso habitual das coisas".
Nessa esteira, conforme esclarece Flávio Tartuce6, a revisão não será possível quando o contrato assumir a forma unilateral ou gratuita. O contrato deve ser bilateral ou sinalagmático, presentes o caráter da onerosidade e o interesse patrimonial, de acordo com a ordem natural das coisas. Ainda, o contrato deve assumir a forma comutativa, tendo as partes envolvidas total ciência quanto às prestações que envolvem a avença.
Vale lembrar que os contratos instantâneos ou de execução imediata (que são aqueles em que o cumprimento ocorre de imediato, caso da compra e venda à vista) estão fora da aplicação da revisão judicial por imprevisibilidade.
No mesmo sentido, Arnaldo Rizzardo7 afirma que a razão justificativa da teoria da imprevisão está, como o nome indica, nos acontecimentos imprevistos, que acarretam a impossibilidade subjetiva, ou absoluta, ou mesmo a onerosidade excessiva da prestação. Daí parte-se para a recomposição das obrigações assumidas, ou a atenuação de suas consequências.
Observa-se assim que para que a revisão judicial por fato imprevisto seja possível também deve estar presente a onerosidade excessiva, situação desfavorável a uma das partes da relação contratual (geralmente a parte mais fraca ou vulnerável).
Pois bem, a doutrina entende que o fator onerosidade não necessita de prova de que uma das partes auferiu vantagens, bastando a prova do prejuízo e do desequilíbrio negocial. Nesse sentido, foi aprovada na IV Jornada de Direito Civil o enunciado 365, que prevê:
365 – Art. 478: "A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena"8.
Importante se faz ressaltar que, para que haja quebra do equilíbrio do contrato é imprescindível que a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, e proporcione extrema vantagem para a outra parte, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Significa dizer, as situações identificadas sejam excepcionais, externas ao contrato, que são inusitadas.
Pelo exposto, a alegação de desequilíbrio contratual é um caminho legal criado com o objetivo de evitar que alguns contratos, afetados por fatores imprevisíveis e extraordinários, tornem-se uma fonte de prejuízos para as empresas. Em outras palavras, os acontecimentos extraordinários devem ser de grande alcance, a ponto de determinar uma dificuldade intransponível ao contratante devedor, tornando a obrigação excessivamente onerosa, e redundando, para o credor, um proveito desproporcional àquele estimado no momento da celebração.
M. Reale sustenta que o desequilíbrio é algo que torna o contrato "destituído de sentido" e "absurdo o vínculo negocial", "esvaziando-o de seu conteúdo econômico", com "encargos brutalmente desproporcionais às vantagens alferidas"9.
Pode ser citado, nesse contexto, o seguinte julgado do STJ no REsp 135151 RJ 1997/0039327-5, 4ª turma, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar10:
PROMESSA DE COMPRA E VENDA. FATO SUPERVENIENTE. AÇÃO DE MODIFICAÇÃO DO CONTRATO. PLANO CRUZADO. CORREÇÃO MONETÁRIA.CELEBRADO O CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA, COM PRESTAÇÕES DIFERIDAS, SEM CLAUSULA DE CORREÇÃO MONETÁRIA, DURANTE O TEMPO DE VIGENCIA DO PLANO CRUZADO, QUANDO SE ESPERAVA DEBELADA A INFLAÇÃO, A SUPERVENIENTE DESVALORIZAÇÃO DA MOEDA JUSTIFICA A REVISÃO DO CONTRATO, CUJA BASE OBJETIVA FICOU SUBSTANCIALMENTE ALTERADA, PARA ATUALIZAR AS PRESTAÇÕES DE MODO A REFLETIR A INFLAÇÃO ACONTECIDA DEPOIS DA CELEBRAÇÃO DO NEGOCIO. PRECEDENTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (grifos nossos)
Dessa forma, sendo constatado o desequilíbrio econômico na relação contratual, sua revisão é indispensável para restauração do estado de equidade, assim como para a preservação da utilidade coletiva, ou seja, a função social do contrato.
É função do direito criar regras que garantam a ampla liberdade econômica e, paralelamente propicie meios de garantir às partes envolvidas trocas econômicas que atinjam a satisfação pretendida com a circulação da riqueza11. Isso porque, surgem hipóteses no decorrer da relação contratual em que distorções no funcionamento dos mercados exigem a atuação do Estado-juiz a fim de restabelecer uma condição mínima de igualdade entre os contratantes.
Pelo exposto, conclui-se que, havendo comprovada onerosidade excessiva que acarrete o desequilíbrio do contrato, a procedência do pedido com base no art. 478 do CC/02 é medida que se impõe, sob pena de se afrontar o princípio da função social do contrato e os demais princípios balizadores das condutas das partes na busca da proteção dos interesses envolvidos nas relações contratuais, sobretudo o princípio da eticidade que tem como pressupostos a boa-fé objetiva, a justa causa e o equilíbrio das relações jurídicas.
Esse, inclusive, é posicionamento que se solidifica no TJ/MS, consoante voto da desembargadora Julizar Barbosa Trindade da 2ª turma, no AGR 11299, publicado no DJ em AGR 11299:
E M E N T A – AGRAVO REGIMENTAL EM APELAÇÃO CÍVEL -RESCISÃO DE CONTRATO -COMPRA E VENDA DE SOJA -ESTIAGEM PROLONGADA - ONEROSIDADE EXCESSIVA -ART. 478 DO CC -RAZÕES RECURSAIS QUE INSISTEM NA TESE APRESENTADA NA APELAÇÃO -RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
A teoria da imprevisão admite a revisão ou rescisão contratual em certas circunstâncias especiais, quando ocorrer um acontecimento imprevisível anormal; uma alteração profunda de equilíbrio das prestações decorrentes do fato novo e levando uma das partes à insolvência, ou fazendo-a arcar com um prejuízo sobremaneira gravoso; enriquecimento injusto e lucro desmedido para o outro contratante; e a ausência de mora ou culpa por parte daquele que pede revisão ou resolução.
Certo é que a teoria da imprevisão, em regra, não se aplica aos contratos de risco, notadamente se a parte inadimplente é conhecedora dos riscos que assume, tal qual o caso de a dívida dever ser paga em sacas de soja por agricultor e ocorre estiagem no ano de pagamento que atinge a produção. No entanto, impõe-se a aplicação dessa teoria mesmo em casos como o da espécie se do exame das circunstâncias fáticas verifica-se que o inadimplemento deu-se em virtude de fator climático extremamente grave e anormal, tanto que exigiu a intervenção municipal mediante decreto de estado de emergência no local, com o reconhecimento de que as perdas nas lavouras atingiram patamares de 50%, 70% e até 90% da produção.
Agravo Regimental em apelação cível AGR 11299 MS 2007.011299-7/0001.00. Segunda turma Cível do TT/MS. Data do Julgamento: c. Relator: Des. Julizar Barbosa Trindade.
Com efeito, o imprevisível só poderá ser identificado com circuntâncias concretas e, de acordo com os nossos tribunais, com rigor.
A possibilidade de alegação em juízo de desequilíbrio econômico do contrato e sua revisão judicial é um tema de grande importância na realidade dos negócios jurídicos, tendo em vista que as questões suscitadas no Poder Judiciários envolvem justamente a possibilidade de rever um contrato ou até mesmo extingui-lo, devendo ser analisado cuidadosamente nos termos da legislação em vigor.

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