No
último dia 23/5, atendendo ao pedido da FEBRABAN, o STJ determinou a
paralisação de todos os processos, em qualquer juízo ou instância, em
que se discuta a legalidade da cobrança de Tarifas de Abertura de
Crédito e de Emissão de Carnê (TEC). A decisão foi tomada no âmbito de
recurso especial recebido no STJ como recurso representativo de
controvérsia (REsp 1.251.331/RS), no qual a FEBRABAN ingressou como amicus curiae.
Segundo a FEBRABAN, posto
que o STJ já tenha pacificado o entendimento pela legalidade da
cobrança dessas tarifas, desde que devidamente contratadas e em taxas
compatíveis com o mercado, há 285 mil processos em curso sobre tema,
pois juízes e tribunais ignoram o entendimento do STJ e declaram a
cobrança ilegal. A decisão a ser tomada no recurso representativo deverá
confirmar o entendimento atual do STJ e implicar: (a) imediata rejeição dos recursos pendentes, quando a decisão recorrida for coincidente com a posição do STJ; ou (b) imediato reexame da causa pelo tribunal quando a decisão recorrida colidir com a posição do STJ.
O caso possibilita
algumas reflexões sobre os limites dos mecanismos processuais de
supressão de incerteza, como os recursos representativos de
controvérsia, em que a decisão proferida em um único recurso é aplicada,
automaticamente, a toda uma massa de recursos que tratem de questões
similares.
A incerteza decorrente da
sujeição do conflito a uma decisão judicial é um problema tão antigo
quanto a própria diferenciação desses processos de decisão que, aos
poucos, substituem os antigos mecanismos de violência e rituais
religiosos. Técnicas para supressão dessa incerteza aparecem de forma
cíclica na história do direito, acionando e moldando sua evolução pela
interação certeza/incerteza.
Entre nós, nas últimas
décadas, a questão adquiriu contorno próprio: como o juiz é livre para
interpretar a lei, as partes seriam incentivadas a levar ao Judiciário
questões em que já há entendimento pacificado nos Tribunais Superiores
(para tentar a sorte na “loteria judiciária), gerando assim sobrecarga
de trabalho, lentidão processual e mais decisões divergentes que
reiniciam o ciclo de incerteza.
As reformas processuais
das últimas décadas partem, em larga medida, desse tipo de descrição da
incerteza. Nesse sentido, a súmula vinculante e os recursos
representativos, além de todo um arsenal técnico voltado a dificultar,
nos Tribunais Superiores, a admissão de recursos que discutam teses
puramente jurídicas. Técnicas similares foram adotadas pelas Monarquias
absolutistas, que viam no interpretativo praticado pelos juízes das nobrezas regionais um obstáculo à centralização do direito (a lex
editada pelo Rei). Essas técnicas compreendiam a proibição da
interpretação do direito (a não ser pelo Monarca), proibição da citação
de doutrinadores em decisões judiciais, compilações oficiais da
legislação, a simplificação do Direito em verbetes claros, curtos e
reunidos em um código completo e harmônico (Codificação) e,
naturalmente, a força de lei conferida aos assentos e estilos (jurisprudência) da Corte, que vai ganhando progressiva competência revisional das decisões dos juízes locais.
Esses recentes mecanismos
possuem ainda limites e perigos, muitas vezes relegados em nome do
objetivo maior da celeridade processual. Em nome da celeridade,
releva-se a vocação desses mecanismos para, por meio da organização
hierárquica dos Tribunais, interferir politicamente no mérito da
atividade jurisdicional. Releva-se também a diminuição do nível de
acesso à justiça, chamada de “desjudicialização dos conflitos”
(ignorando que, desjudicializados, os conflitos tendem a encontrar
outros canais, como o dinheiro ou a violência).
Interessam-me, contudo, os limites desses mecanismos para produzir certeza jurídica.
O direito positivo moderno se define pela própria variabilidade. O
sentido da norma é, sempre, fruto de decisões legislativas, judiciais ou
contratuais e, portanto, se apresenta, sempre, como suscetível a
alternativas. Toda interpretação, está sujeito a uma nova interpretação.
Nenhuma súmula vinculante pode sacralizar o sentido da norma e
impedir futuras interpretações. A par disso, quando se fala em decisões
judiciais, tem-se que o direito nos Tribunais não é um direito de teses
puras, mas também de fatos.
A posição do STJ é
emblemática: ao passo em que fixa a regra (legalidade das tarifas) deixa
explícito (poderia ter deixado implícito, daria na mesma) que: (a) a cobrança deve estar prevista no contrato; e (b) seu valor deve ser compatível com o mercado (AgRg no REsp 1.003.911/RS). Exceções que dependem da interpretação do contrato, do mercado, do que foi prometido, do que foi informado etc.
Em outras palavras, ao
dizer que a cobrança é legal, o STJ não fez muito mais do que o
legislador. Ao menos em princípio, o STJ não decidiu, nem poderá
decidir, a uma só vez, todos os 285 mil processos. Continua necessário, a
partir da regra geral da legalidade da cobrança, analisar os fatos,
contratos etc. Ainda podem surgir outras teses invocando outras
condições para que essas tarifas sejam consideradas legais (por exemplo,
que a contraprestação foi efetivamente realizada).
O exemplo mostra que os
mecanismos de supressão de incerteza, embora arriscados, nem sempre são
aptos a diminuir o número de processos ou mesmo gerar certeza. Na
verdade, a fixação de interpretação a partir de precedentes tende a
gerar a necessidade de mais interpretação, pois o sentido da regra é
atrelado (ou deveria ser) ao sentido do caso que originou o precedente
(do qual se extrai a ratio decidendi que orienta técnicas de distinguishing e overruling para saber quando o precedente se aplica).
Mas, se no direito
moderno a incerteza é inevitável, isso não significa que não se possa
extrair alguma certeza desse direito. A arbitragem contemporânea é um
exemplo bom. Há um consenso de que a arbitragem não só é mais rápida,
mas também menos imprevisível. Mas não há jurisprudência nem (em regra)
instância recursal a vincular a interpretação do direito pelo árbitro. A
certeza do direito que a arbitragem propicia se pauta na racionalidade
inerente ao sistema, isto é, na expectativa de que haverá uma análise
(interpretação) cuidadosa e detalhada de todas as questões e normas
referentes ao caso, com a tendência de favorecer a parte que tem razão.
Gosto de pensar que, em
matéria de certeza, o direito tem mais a aprender com a arbitragem do
que com as técnicas absolutistas de controle da interpretação judicial.
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