Adoção post mortem do adotado, por Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Pedro Bellentani Quintino de Oliveira
Um
tema que sempre carrega interesse, tanto pela sua peculiaridade como
pela sua complexidade, é o da adoção. Isto porque, em razão do afeto,
que é a essência motivadora nele contido, ultrapassa até os ditames da
lei e alcança situações até então não previstas, mas que exigem uma
definição jurídica. Interessante e inusitada decisão foi proferida em um
processo que tramitou perante a Vara da Infância e Adolescente da
comarca de Itajaí/SC.
Como se trata de
processo acobertado pelo segredo de Justiça, poucas informações foram
obtidas, mas suficientes para que se possa ter a noção do acerto da
decisão. Uma menina foi abandonada pelos pais logo após o nascimento, em
precário estado de saúde, pois era portadora de síndrome de Down, lesão
neurológica, mosaicismo, hipotonia, sucção débil, cardiopatia congênita
e síndrome de West. Todo este quadro desanimador era indicativo de que a
criança seria abandonada à sua triste sorte e figuraria na escala
daqueles que não são aquinhoados com direitos iguais, mesmo não sendo
responsáveis pela sua situação.
Mas há pessoas
dotadas de uma sensibilidade estremada, que se posicionam na escala
superior de outras e que tem o senso voltado para a prática do bem e
vocação para a solidariedade. Assim é que uma pedagoga, solteira,
candidatou-se à adoção e inicialmente pleiteou a guarda provisória, que
lhe foi conferida. Quatro meses após, no entanto, ainda no curso do
processo, a criança faleceu, mas não desencorajou a pretendente à adoção
de levar adiante o pedido, que foi julgado procedente posteriormente.
A adoção realizada
no Brasil é muito semelhante à praticada em Roma, no Direito
justinianeu. O pater famílias que pretendia a adoção e o adotado
dirigiam-se diante da autoridade judicial e, conforme esclarece Alves,
"os dois primeiros faziam declarações concorde no sentido da adoção, a
ela aderindo o adotando com o simples silêncio"[1]. Vigora a regra
adoptio naturam imitatur (a adoção imita a natureza) e, para tanto, eram
exigidos que o adotante fosse, no mínimo, 18 anos mais velho que o
adotando, além da proibição para os incapazes de gerar, como aqueles que
tinham sido castrados.
A legislação que
trata da adoção no Brasil é o Estatuto da Criança e do Adolescente. A
lei menorista, em diversas oportunidades, faz ver que toda criança ou
adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural. A
adoção, portanto, é uma medida excepcional. Com as modificações
introduzidas pela lei 12.010/09, criou-se a adoção unilateral e a bilateral e o direito do adotado de conhecer sua identidade genética.
No caso em questão,
trata-se de adoção unilateral, prevista em lei. Por outro lado, há o
permissivo de adoção post mortem do interessado que falecer durante a
tramitação do pedido, desde que comprovada a posse de estado de filho.
Porém, com relação à adoção post mortem do adotado a mesma lei silencia a
respeito. E até com certa razão, pois cessa o interesse do pedido em
razão do falecimento daquele cuja adoção é pretendida, ainda mais sem
qualquer reflexo patrimonial e direitos sucessórios.
Ora, não é preciso
caminhar muitos passos para se chegar à conclusão de que a pedagoga,
pela sua corajosa conduta inicial, pretendia levar adiante sua
pretensão. O que se leva em consideração nos casos de adoção é
justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que
impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar afetivo.
O tempo de convivência, por menor que seja, estabelece uma coexistência
toda especial. Tamanha é sua força que se encarrega de romper todas as
regras previamente estabelecidas. É o caso típico da menina Marcela,
diagnosticada como anencéfala, que viveu durante um ano e oito meses,
contrariando as previsões médicas. Este tempo de vida pode ser
compatível com o de qualquer outra criança sem a malformação. Afinal, em
um momento se vive uma vida, na fala de Al Pacino, no filme Perfume de
Mulher.
A lei é um
instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita
as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas,
tudo visando um convívio social harmônico. Pode até ser considerada
hostil, mas é necessária para que o homem possa viver numa sociedade
adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental,
vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa
ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao
intérprete fazer o ajustamento adequado. Ela brota no mundo jurídico com
a finalidade de atender determinada situação, mas nada impede que,
dando a ela uma extensão mais dilatada, alcance outra situação que seja
semelhante.
O Direito coloca à
disposição do intérprete a analogia, que vem a ser a aplicação de uma
determinada regra nos mesmos moldes de outra utilizada em caso
semelhante, para fazer prevalecer a igualdade jurídica. Quer dizer,
espécies semelhantes reguladas por normas semelhantes (analogia legis).
"O manejo acertado da analogia adverte Maximiliano, exige, da parte de
quem a emprega, inteligência, discernimento, rigor de lógica; não
comporta uma ação passiva, mecânica. O processo não é simples,
destituído de perigos; facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador
descuidado" [2].
A Justiça, desta
forma, se apoia numa construção intelectual aliada a um sentimento que
vem a ser a expressão dos princípios básicos que revelam as ações
humanas altruístas, impulsionadas por sentimentos de afeto pelo próximo.
Assim, nada mais justo do que conferir a adoção póstuma à pedagoga para
que ela, conforme bem dimensionado pelo arguto julgador, possa
"continuar sendo a mãe e ver o nome pelo qual chamava a filha gravado em
sua lápide, preservando-se inclusive o direito de cultuar a filha que
era sua, e não mais daqueles que renunciaram ao poder familiar".
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[1] Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.258.
[2] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e a aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 172.
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