O Estatuto do Nascituro
foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara
Federal e agora também recebeu sinal verde da Comissão de Finanças e
Tributação. Necessita, ainda, do aval da Comissão de Constituição e
Justiça para ser encaminhado para o Senado.
Referido projeto, que
tramita desde 2007, traz o nascituro como foco de proteção. Dentre
outras garantias conferidas a ele, pretende ofertar à mulher vítima de
estupro a opção de gerar o filho com a tutela estatal, sem a realização
do abortamento previsto em lei. Para tanto, assegura o direito à
assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da mãe; o direito
de ser encaminhado para adoção, com a concordância da genitora; a
obrigatoriedade do Estado de arcar com os custos da saúde, do
desenvolvimento e da educação da criança, a não ser que seja
identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, que
passará a ser o responsável pela pensão alimentícia, nos termos da lei.
Enquanto a lei estiver
contida no interior do tubo de ensaio como projeto, é o momento propício
para amadurecê-la e colocá-la na pauta dos debates, visando a encontrar
uma solução que seja coerente com o ambiente social e que espelhe, pelo
menos, a maioria das faces da vontade popular. A proposta reacendeu
polêmicas rotineiras a respeito de tema tão turbulento. Não como um fogo
que arde e rapidamente se apaga, mas sim como uma chama crepitante. Daí
que, com o dizia Platão, precisamos seguir até onde o vento dos
argumentos nos leva.
Percebe-se, numa análise
até superficial, que a intenção é oferecer à mulher estuprada a opção de
gerar o filho, com a assistência do Estado, que contribuirá com uma
espécie de “bolsa-estupro”, assim já batizada no projeto. Tal medida
visa a impedir a realização do aborto legal. Prevê também que, se o
estuprador for identificado, a ele recairá a responsabilidade pela
inserção do nome na certidão de nascimento e a prestação de alimentos.
Se não for, a responsabilidade alimentar continua com o patrocínio
estatal.
Aparentemente, a prática
carrega um argumento de sedução social, pois possibilita também o
encaminhamento da criança para adoção. Porém, o entrave maior, sem
qualquer confrontação com grupos religiosos e feministas, reside na
intimidade da mulher estuprada. Será que terá ela condições de registrar
o filho em nome do pai estuprador que, a partir daí, terá a
obrigatoriedade de bancar os alimentos e, consequentemente, exercer,
mesmo que distante, a guarda do filho, podendo, dependendo da situação,
até mesmo pleiteá-la judicialmente?
É uma indagação que
encontra um obstáculo instransponível para a decisão da mulher, vez que o
filho foi gerado com violência ou grave ameaça e não concebido pela
vontade dos genitores. É um sofrimento que carregará para o resto da
vida, com todos os traumas decorrentes.
Ainda quando exercia as
funções de promotor de justiça, atendi uma mulher recém-casada que havia
sido estuprada por um homem não identificado que, sorrateiramente,
durante a noite, na ausência de seu marido que trabalhava, entrou na
casa, imobilizou-a e manteve conjunção carnal, que resultou em sua
gravidez. Desesperada, presa nas barreiras de ordem moral e religiosa,
viu-se como uma assassina e não como vítima ao optar pelo aborto legal.
O Ministério da Saúde,
voltado para as ações norteadoras éticas e jurídicas dos direitos
sexuais e reprodutivos ditados nos planos internacional e nacional dos
direitos humanos, normatizou os procedimentos para o abortamento em caso
de gravidez com violência sexual, através dos documentos “Norma Técnica
de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual
contra Mulheres e Adolescentes” e “Atenção Humanizada ao Abortamento”,
ambas publicadas em 2005.1
Assim, quando se tratar
de abortamento proveniente de estupro, a mulher não se vê obrigada a
noticiar o fato à polícia e muito menos exigir qualquer providência
judicial. Basta narrar o fato a uma junta médica credenciada, que
inicialmente observará a ela a possibilidade de levar adiante a
gestação, com os cuidados pré-natais adequados e as alternativas após o
nascimento, que incluem a permanência com o filho ou a inserção em lar
adotivo. Esgotadas as opções, a junta médica decidirá sobre a realização
do ato cirúrgico, que deverá vir acompanhado do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido e, ainda, neste ato, a orientará a respeito das
providências policiais e judiciais cabíveis, se forem do seu interesse.
Os documentos médicos
referidos conferem à palavra da mulher a presunção de veracidade. Em
Direito, nos crimes sexuais, em regra, também a palavra dela vem
revestida de importância vital, pois ninguém se exibirá publicamente
fazendo denúncia de violência sexual, submetendo-se a exame de conjunção
carnal e sujeitando-se a uma série de perguntas que, no mínimo,
afrontam a privacidade pessoal. Se, no entanto, a mulher relatar
inverdade para a junta médica encarregada, no sentido de que não foi
vítima de estupro, a responsabilidade criminal recairá somente sobre
ela, isentando os profissionais da saúde de qualquer ilícito, pois o
erro foi justificado uma vez que, se realmente existisse a situação de
fato narrada, a ação seria legítima.
O CP, por sua vez, pela reforma introduzida pela lei 12.015/09,
criou em seu Título VI a denominação de Crimes contra a Dignidade
Sexual e estabeleceu para o estupro a persecução penal intentada pela
representação da vítima, por se tratar de ação pública condicionada.
Vale dizer que a mulher vítima oferecerá a condição de procedibilidade
se for de seu interesse e conveniência. Será, no entanto, incondicionada
se tratar de vítima menor de 18 anos ou pessoa vulnerável.2
O STF, a título de
argumentação concorrente, por oito votos contra dois, decidiu que as
mulheres grávidas de feto anencéfalo, assim clinicamente comprovado,
podem optar pela interrupção da gestação, por acarretar risco à saúde
física e psicológica. Isto porque o anencéfalo, apesar de biologicamente
vivo, juridicamente pode ser considerado morto, por não ter vida em
potencial, a spes vitae dos romanos.
Finalizando, o assunto
aborto vem carregado de força e peso e deve ser moldado sob o ângulo da
dignidade da pessoa humana. O espaço é densamente povoado de ideias a
serem depuradas e reequacionadas à realidade da mulher brasileira, que
deve ser prestigiada no exercício do seu direito à saúde sexual e
reprodutiva. Mas é sempre bom lembrar que nem sempre as propostas que
carregam incentivo financeiro apagam as marcas de uma agressão.
Resta uma derradeira
observação a fazer: o nome da lei, com de nominação incoerente e
incompatível com a natureza humana, deve ser alterado para bolsa-embrião
ou bolsa-nascituro, pois se prevalecer a denominação atual, a tutela
será conferida ao estuprador.
___________1 Referidos documentos são apresentados na série sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, de responsabilidade do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do Ministério.
2 Artigo 225 e seu parágrafo único do CP.
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