Breves considerações sobre a responsabilidade civil das empresas de rastreamento de veículos, por Carlos Augusto Tortoro Júnior e Francis Ted Fernandes
Introdução
O objetivo do presente
trabalho é comentar algumas variáveis fáticas e jurídicas que envolvem a
responsabilidade civil das empresas prestadoras de serviços de
rastreamento e auxílio à localização de veículos, longe, obviamente, de
pretender esgotar o tema.
Referidas empresas, em
sua maioria, disponibilizam serviços de rastreamento e bloqueio de
veículos leves e pesados, tais como: caminhões, carros e motos, que
objetivam auxiliar na localização e/ou bloqueio dos veículos dos
usuários contratantes, depois de sua efetiva solicitação, tendo como
contrapartida uma prestação pecuniária específica.
É fato que alguns
veículos rastreados são roubados ou furtados, surgindo, neste contexto,
indagações sobre a responsabilidade civil das empresas rastreadoras de
veículos, bem como os limites desta responsabilidade. A partir dos
próximos tópicos teceremos considerações sobre pontos nevrálgicos que
envolvem a matéria aventada.
Objeto da prestação de serviços de rastreamento
A obrigação estabelecida
geralmente entre as empresas de rastreamento e os usuários destes
serviços possuem os seguintes pilares:
a. Prestação de serviços de rastreamento do veículo, consubstanciando obrigação de meio;
b. Não existe qualquer obrigação de recuperar veículos roubados ou furtados;
c. Não existe qualquer obrigação de impedir roubos ou furtos de veículos;
d. Não há qualquer
obrigação de reparação do valor do veículo, em caso de roubo, furto ou
qualquer outra avaria, já que não se trata de contrato de seguro.
O serviço fornecido pela
empresa de rastreamento, observado sob este aspecto, não pode ser
encarado como um dispositivo que se presta a obstaculizar a ação de
bandidos, tal como uma tábua de salvação para uma questão complicada e
histórica de ineficiência de políticas de segurança pública. Em suma:
pode ser considerado um mecanismo auxiliar de segurança, mas nunca como a
solução definitiva que impedirá o roubo ou furto de veículos
automotores.
Infere-se, desta forma,
que a recuperação do veículo é competência da autoridade pública
policial e não de uma empresa privada prestadora de serviços de
rastreamento. Por conta destas variáveis, as empresas de rastreamento,
ao celebrar contrato com os usuários destes serviços, têm inserido neste
pacto:
a. A previsão contratual
expressa de que a obrigação assumida pela empresa é a de rastrear ou
bloquear o veículo, e não recuperá-lo ou ressarcir o seu valor
correspondente quando verificado o furto ou roubo;
b. O contrato
estabelecido entre as partes não caracteriza ou se assemelha a um
contrato de seguro, pelo simples fato de que a obrigação assumida é a de
rastrear ou bloquear o veículo;
c. O furto ou o roubo do
veículo caracterizam caso fortuito, fato pelo qual a empresa de
rastreamento literalmente não pode ser responsabilizada.
Os usuários dos serviços
de rastreamento que pretendem preservar seu patrimônio sem riscos devem
aderir a um contrato de seguro, cuja engenharia jurídica e financeira
permite, dentro de condições preestabelecidas, reaver o valor do bem
roubado ou furtado.
A prevalecer tese
contrária, segundo a qual as empresas de rastreamento deveriam indenizar
os usuários do serviço em valor equivalente ao bem roubado/furtado,
estar-se-á promovendo verdadeira caça às bruxas, em detrimento de se
exigir do Estado políticas de segurança pública efetivas, visando
encontrar bodes expiatórios para responsabilização civil. Nesse cenário é
possível imaginar, por exemplo:
a. A indústria automotiva
sendo processada por cliente que teve veículo roubado ou furtado,
apenas pelo fato de os ladrões terem conseguido ligar a ignição sem a
chave;
b. A indústria de vidros
automotivos seria processada por cliente que teve veículo roubado ou
furtado, apenas pelo fato de os ladrões terem conseguido quebrar algum
vidro e entrado no veículo;
c. A indústria de alarmes
automotivos seria processada por cliente que teve veículo roubado ou
furtado, apenas pelo fato de os ladrões terem conseguido desativar o
sistema.
A digressão acima é
válida, por mais absurdas que possam parecer às situações delineadas, já
que se mostram análogas às pretensões de alguns usuários destes
serviços, que pretendem responsabilizar em juízo as empresas de
rastreamento pelo furto ou roubo de seus bens, entendimento que,
conforme se defenderá adiante, também carece de substrato jurídico que o
embase.
Reserva Mental
Em regra, o contrato
estabelecido entre as partes contratantes não obriga a prestadora de
serviços de rastreamento a recuperar o veículo dos seus clientes, muito
menos a indenizar o seu valor correspondente no caso de roubo ou furto.
Adotar postura contrária
ao pacto, ou seja, imaginar que a empresa de rastreamento seria obrigada
a ressarcir seus clientes no montante equivalente ao valor do bem
subtraído, caracterizaria verdadeira reserva mental, de que os
contratantes esperavam determinado resultado, apesar de não pactuado, o
que contraria o art. 110 do CC:
Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.
O art. 110 do CC prevê
que, na formação do negócio jurídico, deve ser preservada a declaração
de vontade expressamente firmada entre as partes, em detrimento do
simples desejo de uma delas (no caso a vontade de ser ressarcido pelo
valor do bem), desejo esse que a lei denominou reserva mental.
E a vedação de que a
reseva mental prevaleça sobre a expressa manifestação de vontade tem um
objetivo maior: a segurança jurídica, isso como bem observa abalizada
doutrina pátria, citando o mestre Vicente Ráo:
A manifestação da vontade é imprescindível para a formação do negócio jurídico, entretanto vontade e declaração nem sempre coincidem. A segurança das relações jurídicas, porém, reclama que se empreste eficácia ao que foi declarado e não ao que, eventualmente, for desejado, mas não declarado. Por esse motivo, o que foi objeto da reserva mental, em regra, não é levado em conta.
Vicente Ráo, que, nesse processo, reconhece a existência de três elementos volitivos – vontade, vontade de declaração e vontade de conteúdo -, afirma que “a reserva mental é uma particular espécie de vontade não declarada, por não querer, o agente, declará-la.
É uma vontade que o agente intencionalmente oculta, assim procedendo para sua declaração ser entendida pela outra parte, ou pelo destinatário (como seria pelo comum dos homens) tal qual exteriormente se apresenta, embora ele, declarante, vise a alcançar não os efeitos de sua declaração efetivamente produzida, mas os que possam resultar de sua reserva”, e acrescenta que, “nesta hipótese, nenhum conflito juridicamente existe, porque o direito valor algum atribui a essa atitude omissiva do declarante: a vontade intencionalmente não declarada, no caso, não pode chocar-se com a vontade declarada.(Ato Jurídico. São Paulo, Max Limonad, 1961, p. 210) (Código Civil Comentado, coordenação do ministro Cezar Peluso, Barueri, SP: Manole, 2007, p. 84) - grifamos e sublinhamos.
Desta forma, não se pode
conceber que a reserva mental prevaleça sobre a declaração de vontade
das partes, responsabilizando-se a empresa de rastreamento de veículos
por um risco que não assumiu, entendimento que contrariaria
manifestamente o art. 110 do CC vigente.
Boa-fé objetiva e ato jurídico perfeito
Não se pode perder de
vista que a obrigação assumida pelas empresas de rastreamento é de meio e
não de resultado, pois, a partir de sua atividade, não se propuseram,
em regra, a evitar o furto ou roubo do bem, mesmo porque o sistema
fornecido não é infalível.
Responsabilizar as
empresas de rastreamento pela recuperação do bem, ou por indenizá-los no
caso de furto ou roubo, seria fazer tabula rasa ao comando estabelecido
nos arts. 421 e 422 do CC, os quais estabelecem a liberdade de
contratar e que os negócios jurídicos devem ser celebrados com boa fé:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
E também por não
privilegiar a vontade de contratar, referido entendimento violaria o
artigo 6º da Lei de Introdução do Código Civil, que prevê o respeito ao
ato jurídico perfeito, nos seguintes termos:
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Inexistência de contrato seguro
Ponderar que as empresas
de rastreamento são responsáveis por indenizar o valor correspondente
aos bens roubados ou subtraídos criaria nova obrigação que não foi
estabelecida entre as partes: a celebração de um contrato de seguro, já
que forçaria as empresas a se responsabilizarem pela devolução do valor
do bem, o que é característico desse tipo de relação contratual.
Referido entendimento afrontaria, de forma notória, o art. 757 e seu parágrafo único do CC, que tem a seguinte redação:
Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada.
E mais: geraria demasiada
insegurança jurídica a todas as empresas que prestam os serviços de
rastreamento e bloqueio de veículos, isso pelos seguintes motivos:
a. Imporia à prestadora
de serviços o cumprimento de um contrato que não se propôs a aderir,
qual seja, o contrato de seguro do bem rastreado, o que levantaria o
questionamento sobre a viabilidade da manutenção dessa atividade
empresarial desenvolvida no país, tendo em vista que o risco assumido
seria obviamente desproporcional ao retorno financeiro obtido;
b. Por outro lado, caso a
prestadora de serviços decidisse manter sua atividade, decisões que
reconhecessem seu dever de indenizar os proprietários de veículos em
decorrência de furtos e roubos fatalmente ensejariam o aumento do preço
cobrado pela atividade disponibilizada, em montante próximo ao cobrado
pelas seguradoras, já que o risco assumido seria parecido, o que
afetaria o potencial usuário/consumidor.
Caso Fortuito
O furto ou roubo de veículos deve ser considerado evento capaz de caracterizar caso fortuito1, apto a afastar o nexo de causalidade entre a conduta das empresas de rastreamento e o dano experimentado pelos seus usuários.
Adotar o entendimento
segundo o qual o furto ou roubo de veículos não seria evento capaz de
caracterizar caso fortuito, neste tipo de evento, seria contrariar o
art. 393 do CC, que tem a seguinte redação:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
E obviamente o furto
caracteriza caso fortuito, hábil a afastar a responsabilidade das
rastreadoras de veículos, tendo em vista que as empresas não se
responsabilizaram por esse evento, mas somente por auxiliar na
localização do bem.
Tendo em vista que a
atividade prevista em contrato é o auxílio na localização de veículo e
não a sua recuperação no caso de furto, tem-se caracterizado o que a
doutrina denomina de fortuito externo, ou seja, a ocorrência de um
evento que estava fora do controle da empresa de rastreamento, senão
vejamos:
Informam a responsabilidade do transportador de mercadorias (ou carga) os mesmos princípios gerais do contrato de transporte de pessoas. Também aqui a obrigação do transportador é de fim, de resultado, e não apenas de meio. Ele tem que entregar a mercadoria em seu destino, no estado em que a recebeu. Se recebeu a mercadoria sem ressalva, forma-se a presunção de que recebeu em perfeito estado, e assim deverá entregá-la. Inicia-se a responsabilidade do transportador com o recebimento da mercadoria e termina com a sua entrega. Durante toda a viagem, responde pelo que acontecer com a mercadoria, inclusive pelo fortuito interno. Só afastarão sua responsabilidade o fortuito externo (já que, aqui não tem sentido o fato exclusivo de terceiro, normalmente doloso).
Têm-se tornado frequentes os assaltos a caminhões, apoderando-se os meliantes não só das mercadorias, mas, também, do veículo. Há verdadeiras quadrilhas organizadas explorando essa nova modalidade de assaltos, muitas vezes até com a participação de policiais. Coerente com a posição assumida quando tratamos dos assaltos a ônibus, entendemos, também aqui, que o fato doloso de terceiro se equipara ao fortuito externo, elidindo a responsabilidade do transportador, porquanto exclui o próprio nexo de causalidade. O transporte, repetimos, não é causa do evento; apenas a sua ocasião. Não cabe ao transportador transformar o caminhão em um tanque de guerra, nem colocar um batalhão de seguranças para cada veículo de sua empresa a circular por todo país. A segurança pública é dever do Estado (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 6ª edição, São Paulo: Malheiros, 2004, p. 322-354).
O nexo de causalidade
estaria caracterizado somente se a empresa de rastreamento tivesse
assumido o risco de recuperar o bem objeto do contrato, o que tornaria a
subtração ou roubo caso fortuito interno, previsto e abarcado pela a
atividade da empresa, o que não é o caso2.
Limitação de responsabilidade
Necessário ponderar qual
seria a indenização devida aos usuários do serviço de rastreamento no
caso de falha na prestação dos serviços.
Admitir que as empresas
de rastreamento devem indenizar os usuários em montante equivalente ao
valor do bem – havendo furto/roubo e falha no serviço – seria extrapolar
os limites estabelecidos no art. 403 CC, o qual prevê que a indenização
a título material deve se limitar ao prejuízo efetivo, direto e
imediato relativo ao contrato celebrado entre as partes, vedando-se o
ressarcimento de danos reflexos:
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. – grifamos e sublinhamos.
E, no caso concreto,
concluindo o julgador que os serviços de rastreamento disponibilizados
falharam, há que se considerar, por força da aplicação do art. 403 CC,
que o valor imediato e direto perdido pelo usuário seria, no máximo, o
que pagou pela efetiva prestação de serviços, que deve corresponder ao
teto do montante indenizatório fixado em eventual condenação.
Conclusões
Com base nas premissas anteriormente fixadas sobre o tema, conclui-se:
a. O roubo ou furto de
veículos caracteriza caso fortuito e impede a imputação do dever de
indenizar às empresas de rastreamento, nos termos do art. 393 do CC,
tendo em vista a notória ausência de nexo de causalidade entre o evento
danoso e o prejuízo experimentado;
b. O contrato
estabelecido entre as partes, em regra, é de serviço de auxílio à
localização de veículos. Esta obrigação é de meio e não de resultado, o
que implica dizer que as empresas de rastreamento não se comprometeram a
recuperar o veículo ou a ressarcir o seu valor correspondente,
obrigação esta que alteraria as bases objetivas do contrato,
contrariando os arts. 421, 422 do CC e §1º do art. 6º da lei de
introdução ao CC;
c. A relação estabelecida
na atividade aqui apontada não caracteriza um contrato de seguro, única
relação que legalmente ensejaria o dever de que as empresas de
rastreamento indenizassem seus clientes no valor correspondente ao bem
subtraído ou roubado, nos termos do art. 757 do CC;
d. Considerar que as
empresas de rastreamento deveriam indenizar os seus clientes no caso de
furto ou roubo do bem, em montante equivalente ao valor do veículo,
seria contrariar o art. 110 do CC, posto que a parte contratante
pretendia, desde o início, um contrato de seguro e não um contrato de
meio (auxílio na localização do bem);
e. Caso se entenda, no
caso concreto, que houve uma suposta falha no serviço da empresa de
rastreamento e que gerou danos ao cliente, não se pode falar em
ressarcimento de danos reflexos, mas somente de danos efetivos, por
conta do estabelecido no art. 403 do CC, devendo o valor máximo da
indenização se limitar ao montante pago em contrapartida dos serviços
contratados.
1Os
conceitos de caso fortuito e força maior, apesar de não serem sinônimos,
não são facilmente diferenciados pela doutrina pátria. Em homenagem à
objetividade, evitar-se-á adentrar a essa discussão.
______________
2
(...) há casos excepcionais que se inserem no risco assumido pelo
fornecedor para obtenção do resultado prometido ao consumidor. Trata-se
do chamado fortuito interno, compreendido na própria atividade
empresarial (...) - ( Código Civil Comentado, coordenação do Ministro
Cezar Peluso, Barueri, SP: Manole, 2007, p. 283)
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